TERESA FERRER PASSOS
O acordo ortográfico

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (assinado pelos 7 países lusófonos - Portugal, Brasil, Angola, S. Tomé e Príncipe, Guiné, Moçambique e Cabo Verde) em 12 de Outubro de 1990, a que se juntou Timor em 2004, oferece a Portugal a memória do descobrimento do Brasil em 1500, após as descobertas ao longo da costa ocidental e oriental africana e da parte Oriental da ilha de Timor, hoje independente.

Oferece à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) uma nova solidariedade, uma nova unidade. Só nas terras de Santa Cruz (Brasil) são 190 milhões, a falar a nossa língua, há mais de cinco séculos.

Na XII reunião do Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em Lisboa no dia 2 de Novembro de 2007, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luis Amado, considerou que o protocolo modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, iria ser aprovado até fins de 2007. Contudo, este prazo foi, mais uma vez adiado. O Estado português espera agora, que o Acordo,  já modificado várias vezes (Segundo Protocolo Modificativo), seja aprovado pelo Presidente da República Cavaco Silva ainda no ano de 2008, para entrar efectivamente em vigor no ano de 2014.

Com vista a reflectirmos um pouco sobre o significado desta unificação da ortografia dos países de Língua portuguesa, vou referir alguns dos maiores cultores da lusa linguagem, nas suas versões diversificadas, conforme a geografia em que se inseriram.

E aqui está Carlos Drummond de Andrade com a sua emoção e musicalidade no poema «Além da Terra, Além do Céu»: «Além da terra, além do céu / no trampolim do sem-fim das estrelas, / no rastro dos astros, / na magnólia das nebulosas. / Além, muito além do sistema solar / até onde alcançam o pensamento e o coração, / vamos! / vamos conjugar / o verbo fundamental essencial  / o verbo transcendente, acima das gramáticas / e do medo e da moeda e da política, / o verbo sempreamar / o verbo pluriamar, / razão de ser e viver»

 A história da língua portuguesa iria alterar o rumo da, então, ainda colónia, quando D. João VI escolheu o Brasil para se refugiar do conquistador da Europa, Napoleão, representado pelas invasoras tropas do comandante Junot.

 D. João VI elevou o Brasil de colónia a reino em 1815. Ao subir ao trono, na cidade do Rio de Janeiro, vago pela morte de sua mãe, a rainha louca, em 1816, criava as condições políticas para que o Brasil  fosse, em 1822, independente da metrópole.

No célebre grito junto do rio Ipiranga, ao lado dos adeptos da independência, o príncipe D. Pedro, filho primogénito de D. João VI, gritou com eles: «Liberdade ou morte!». Em 1822, o futuro maior Império da língua portuguesa, tornava-se, pelas suas dimensões – hoje, é noventa vezes maior do que o Portugal europeu – o baluarte da língua portuguesa. Nascia sob a égide de D. Pedro, príncipe de Portugal, elevado pelos brasileiros a 1º Imperador do Brasil.

O novo Acordo Ortográfico dignifica e dimensiona a «pequena casa lusitana» à qual se referiu Camões em Os Lusíadas:

«As armas e os barões assinalados, / Que da ocidental praia Lusitana, / Por mares nunca de antes navegados,  / Passaram ainda além da Taprobana,  / Em perigos e guerras esforçados,  / Mais do que prometia a força humana,  / E entre gente remota edificaram  / Novo Reino, que tanto sublimaram (...)».

Este novo diploma da língua lusa oferece também aos portugueses um culto novo da língua de Torga, traz uma simplicidade gráfica que o povo brasileiro foi construindo com criatividade e espírito de tolerância. A língua de Sophia de Mello Breyner Andresen adquire, agora, a plenitude, ao ligar a ortografia sem barroquismos à pureza do pensamento. 

Neste Acordo Ortográfico, a assinar, brevemente, pela Comunidade Lusófona, vemos o quanto pode ainda enriquecer-se o mundo da língua portuguesa, ao qual se referia Fernando Pessoa, quando dizia: «minha pátria é a língua portuguesa». A sua frase ganhou a grandeza que merecia. A língua portuguesa é uma expressão unívoca, a sua forma quase não diverge do som.

Hoje, estamos todos unidos por uma língua comum, com uma escrita sem "antiguidades gráficas", no Brasil como em Portugal.

Em Angola, toda virada para o ocidental Atlântico, lemos os patrióticos romances de Pepetela: «e indo chocar em baixo da Fortaleza contra a antiga ponte que os portugueses encheram de entulho e pedras e cimento, fazendo a Ilha deixar de ser ilha para ficar península (...) e se misturando as águas que vinham da lagoa com as águas do mar e as cores vivas se espalhando a caminho da Corimba, agora que a Ilha de Luanda voltava a ser ilha e Kianda ganhava o alto mar, finalmente livre.» (in O Desejo de Kianda).

Nas terras de Moçambique, a vislumbrar o oriental Índico lemos o «Fogo da noite», um dos muitos inspirados poemas de Domi Chirongo: «Ia dormir / desconsegui / tentei sonhar / acordei / com rajadas / borbulhentas / fortemente / localizadas, / era o fim / das ideias brilhantes... / para trás / ficavam planos / de uma vida / inacabada / ficava a planta / de uma casa idealizada / para trás / ficava o jardim / que um dia / quis construir...»

Na Guiné, envolta nas ilhotas perdidas e nos rios desenhados entre palmeiras e alto capim, ouvimos a música da palavra com que o poeta Julião Soares Sousa nos sensibiliza em «Cantos do meu país»: «Canto as mãos que foram escravas /  nas galés / corpos acorrentados a chicote / nas américas // Canto cantos tristes/ do meu País / cansado de esperar / a chuva que tarda a chegar  //  Canto a Pátria moribunda / que abandonou a luta /  calou seus gritos / mas não domou suas esperanças // Canto as horas amargas / de silêncio profundo / cantos que vêm da raiz / de outro mundo / estes grilhões que ainda detêm / a marcha do meu País».

Nas paradisíacas ilhas de Cabo Verde, a parecerem perdidas no grande mar, escutamos José Luís Tavares para quem «nenhum destino está contido nas estrelas» como disse ao receber o Prémio de Poesia atribuído, em 2004, pela Fundação Calouste Gulbenkian: «Nenhum destino está escrito nas estrelas. O meu, construí-o por caminhos de cabras e de pedras, ouvindo perto o rugido do mar e os gemidos dos ventos da serra, entre gente de humilde condição, porém, de uma altivez tal apenas comparável aos impassíveis penhascos que outrora me vigiaram a infância. (...)».

Em S. Tomé e Príncipe, o canto belo da língua portuguesa ecoa nas margens a soltarem-se em Portugal, desse Atlântico das epopeias trágico-marítimas, com o encanto e o rigor do pensamento poético e romanesco do grande pintor José de Almada Negreiros. Veja-se este brevíssimo texto. Como à maneira de Esopo, é uma palavra cheia de sabedoria e que intitulou «A Flor»: «Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. (...) Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: Uma flor! Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!»

Em Goa e Macau, tão distantes, nascem canções de amor a um Deus que Cristo revelou e foi a Sua Imagem, a um Deus cansado de esperar e com a alegria de elevar S. João de Brito aos altares da Fé e do Império.
Em  Goa, lembramos a poesia de Adeodato Barreto «Canção do Bhául »: «Teus caminhos, Senhor, / teus caminhos de amor, / perdidos, / oculta-os a Mesquita, / a cobiça infinita / da Igreja, / do Pagode... / Aos meus ouvidos / vibrou, há muito já, o Teu apelo, / e a minha alma deseja,/ mas não pode, / recolhê-lo (...)

Na Cidade do Santo Nome de Deus, Macau, em que a cultura e a língua portuguesa sobrevivem sobretudo através do Instituto de Macau e da Revista Oriente Ocidente, não esquecemos o macaense Luís Gonzaga Gomes e as suas narrativas das lendas  e superstições de Macau, de fundo chinês, a que não faltou nunca o mítico dragão: «há quem assevere  que não obstante esse dragão encontrar-se moribundo, as suas pulsações são ainda sensíveis, sendo ainda capazes de, no seu estertor, soltar alguns arrancos, daqueles capazes de transformar a colónia em novo El Dorado».

E em Timor Lorosae, há ainda o poema «Gerações» de Xanana Gusmão, a respirar a tragédia de um tempo que parece ainda não querer passar: «(...) uma mãe que gemia / sem forças seu corpo desenhava / marcas da angústia / esgotada // Os farrapos que a cobriam / rasgados / no ruído da sua própria carne / sob o selvático escárnio / dos soldados indonésios / em cima dela, um por um (...)». Não quero perder ainda uma referência à memória de um Fernando Sylvan, a voz fagueira de Oan Timor. Aí seerguem os versos de um povo-infância a olhar a língua dos descobridores e a tentar cultivar a língua do verdadeiro Descobridor: «as crianças brincam na praia dos seus pensamentos / e banham-se no mar dos seus longos sonhos // a praia e o mar das crianças não têm fronteiras // e por isso todas as praias são iluminadas / e todos os mares têm manchas verdes //mas muitas vezes as crianças crescem / sem voltar à praia e sem voltar ao mar»

Já mais perto das praias da «ocidental casa lusitana», as ilhas do arquipélago da Madeira, têm Herberto Helder, um dos poetas da língua portuguesa, nas suas vertentes fantástica e surrealista. E transcrevo excertos de um dos seus poemas: «De repente, as letras. O rosto sufocado como / se fosse abril num campo da noite. / O rosto no meio das letras, sufocado a um canto, / de repente. / Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços / sufocados, lembrando letras, levando / lenços, letras ­ nas patas / negras, grandiosamente abertas. / Como se fosse abril, sufocadas no meio. / Era o som delas, como se fosse abril a um canto / da noite, lembrando.» (in Ou o Poema Contínuo - Súmula, p.15).

 Agora, no mais vasto arquipélago dos Açores, aqui ao nosso lado, ao nosso ocidental lado, em ilhas isoladas pelos vulcões tenebrosos e afáveis, num incêndio a flamejar ou escavados nas solitárias cinzas fumegantes, pontifica Vitorino Nemésio, sempre oportuno e a não errar em tempos sem «limite de idade». Evoquemos estas palavras: «Como sempre, a norma linguística infringida irrita inutilmente [...] os guardiões do purismo, que os há aqui em nome de Machado de Assis como entre nós de Camilo. Nem esqueçamos que o "caldo de Vieira" é tão português de Portugal como português do Brasil. [...] A verdade é que a língua só lucra com os desaforos dos utentes. Quanto mais desmanchada, mais rica ao voltar à ordem. A sede de sentido acompanha e persegue o caos aparente do grafómano, e até o erro de sintaxe e de ortografia é fecundo: o primeiro porque dá uma ordem nova às palavras; o segundo porque regista a livre realidade dos fonemas.» (Jornal Observador, 22/9/1972).

Aqui estamos a escrever com a língua de partes tão distantes. A língua aproximou-as; a língua poderá afastá-las. Mas se a lusografia for uma única, tanto mais difícil será esta última consequência. Esperemos que o Acordo Ortográfico, que deverá ser assinado em breve, nos traga a certeza de que em tão diversos continentes e entre culturas tão dispersas a beleza da Língua Portuguesa, em que escrevem, hoje, António Lobo Antunes (Portugal), José Eduardo Agualusa (Angola), Baltasar Lopes da Silva (Cabo Verde) ou Paulo Urban (Brasil) será o sustentáculo de uma autêntica comunidade lusófona de cariz, maioritariamente, afro-luso-brasileira.

10 de Abril de 2008
Teresa Ferrer Passos

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