TERESA FERRER PASSOS
Notas à margem de
Santa Teresa do Menino Jesus

A palavra e o amor
A palavra

A PALAVRA E O AMOR
«Olhai o céu, erguei-vos do chão
[a liberdade vem para os pobres.
O fim é o nome que vai ser preciso dar ao hoje.
Deus está às portas. Deus está no tempo que corre.
Que o Espírito afeiçoe o nosso ouvido à sua passagem»
José Augusto Mourão, Declinações, www.triploV.com, 2004

«Supliquei-lhe que guiasse a minha mão para que não trace uma única linha que lhe não seja agradável», escreve Santa Teresa do Menino Jesus ao iniciar a redacção dos manuscritos que seriam conhecidos pelo título de História de uma Alma (1) .

Estas são palavras preocupadas com as possíveis leituras interpretativas, talvez abusivas, talvez despropositadas, de que uns manuscritos autobiográficos podem sempre vir a ser motivo. Essa preocupação com as palavras, com cada palavra escrita, é uma constante nos seus cadernos manuscritos…

O peso das palavras ditas é grande, mas quanto não é maior o das palavras escritas... Como é difícil registar pensamentos que podem vir a ser conhecidos por uma outra sociedade de intenções diferentes, de mentalidade oposta ou mesmo divergente do espírito cheio de pureza da autora de História de uma Alma.

Santa Teresa escreve a pedido da Madre do convento das Carmelitas. Mas a escrita não é apenas fruto dessa solicitação. A jovem Teresa do Menino Jesus e da Santa Face (como se passa a chamar após o ingresso na Ordem Carmelita) gosta de dividir os seus actos, mas também os seus pensamentos com os outros. Ela gosta de os partilhar, sente que ficam enriquecidos. Afinal, nada é absolutamente nosso, só nosso. Tudo o que passa por nós é, quantas vezes, o que passa também pelos outros, que nos magoam, que nos atropelam, que nos confrontam com os seus pressupostos, os seus juízos, as suas censuras, alheados das nossas razões mais fundas.

Desagradar a Deus - o Pai/Criador do Universo - é desagradar ao divino Jesus, a única Face conhecida do Pai. E isso atormenta-a. Ela só quer fazer a Sua vontade, agir conforme aos seus ensinamentos, declarar-Lhe com gestos, acções e com todas as palavras possíveis, o seu Amor.

Como é pesada a responsabilidade do significado incerto de cada frase, de cada expressão menos clara, como a preocupa a medida, nem sempre transparente, de cada palavra.

A escrita em prosa ou poética de Santa Teresa do Menino Jesus é luminosa, é toda clareza, mesmo quando a metáfora, expressa pela analogia e pela imagem, é mais frequente. As páginas dos três cadernos de Teresa, Professa no Carmelo de Lisieux com apenas quinze anos de idade, são linhas escritas um pouco descuidadamente, ao sabor da corrente da memória, referindo os momentos dolorosos e os felizes, e estes, a mais das vezes, vorazes, pouco duradouros.

Nos Manuscritos Autobiográficos (2) cujo primeiro caderno data de Janeiro de 1895, confessa: «Supliquei-Lhe que guiasse a minha mão». Na verdade, era indispensável, para a jovem carmelita Teresa, que cada palavra não incorresse em desajustadas interpretações, em imprevistas e erradas conjecturas que prejudicariam e até desacreditariam, esse Céu que a Irmã Teresa do convento de Lisieux tanto desejava louvar. Com o pedido de protecção a Jesus e a Sua Mãe, sente-se guiada, crê na força da inspiração divina. Então, cheia de confiança na Santa Face do Salvador e no auxílio de Maria, acredita ter as condições para transmitir uma mensagem fidelíssima da Vontade de Pai Celestial que Jesus Cristo soubera transmitir maravilhosamente aos seus discípulos.

«Se Deus é por nós, quem será contra nós?» (Rom 8, 31), escreveu S. Paulo na sua carta aos romanos. Nesta pergunta, inscrevia S. Paulo a sua certeza na plena confiança que devia ter em Deus. Com o mesmo espírito, começa Santa Teresa do Menino Jesus a escrever as suas memórias, os seus pensamentos. Na História de uma Alma está toda a sua espiritualidade fundada no sentimento do Amor, que o próprio Deus representava na pessoa de Jesus. Essa Face de Deus e, ao mesmo tempo, essa Face de Criança, essa Face de Deus a tomar a forma muito pequenina de uma criança, a nascer há dois mil anos, da Virgem Maria, em Belém.

O Amor que Teresa do Menino Jesus aprendera na primeira infância com o grande afecto que recebera da sua mãe, que perdera aos quatro anos e meio; o Amor que lhe comunicara seu pai, sempre envolto na saudade de sua esposa; o Amor que recebeu de sua irmã Paulina e depois, quando esta ingressou na Ordem Carmelita, de sua irmã Celina, também, anos mais tarde, na mesma Ordem religiosa, foi o seu máximo guia. O Amor que Teresa de Lisieux soube transmitir admiravelmente a todos aqueles que a conheceram na acção ou na palavra viva dos seus escritos. Porque o Amor sempre fora uma constante no seio da sua família, foi esse sentimento que mais inflamou e tornou imperecível a sua belíssima História de uma Alma.