RICARDO DAUNT

Sobre algumas raízes profundas do
Movimento do Orpheu

16. O empirismo

Ao contrário do racionalismo, que enfatiza os universais, construindo-os antes das partes em sua ordem lógica, o empirismo "fundamenta a ênfase explanatória na parte, no elemento, no indivíduo, e trata o todo como uma coleção e o universal como uma abstração" (1). A filosofia de James principia, como ele assevera, pelas partes, tratando o todo como um ser de segunda ordem. Sua filosofia é em essência "uma filosofia de mosaicos, uma filosofia de fatos plurais", e que não admite em sua construção qualquer elemento que não possa ser diretamente experienciado (2).

Acresca-se a isso o fato de que enquanto o empirismo comum sempre demonstrou uma tendência a não levar em conta as conexões das coisas e a insistir sobretudo nas disjunções, o empirismo radical de James aceita a conjunção e a separação, "cada qual com seu valor evidente. [...] [fazendo] justiça completa às relações conjuntivas", sem tratá-las como os racionalistas o fazem, ou seja, como se pertencessem a uma ordem distinta de verdade (3).

Um dos pontos centrais do empirismo radical é o seguinte: se admitimos que exista uma única matéria-prima no mundo, um único 'estofo', do qual tudo é composto, e se o denominamos 'experiência pura' (4), "o conhecer pode ser explicado como uma espécie particular de relação mútua entre estofos, relação esta em que partes da experiência pura podem entrar." Faz parte da experiência pura a própria relação mencionada, em que um de seus termos é o sujeito, o portador de conhecimento (5).

Para os neokantianos, a experiência exerce o papel de testemunha dos acontecimentos temporais, mas não toma parte neles, visto que é desprovida de tempo. "Ela é [...] o correlativo lógico de 'conteúdo' em uma Experiência, cuja peculiaridade é que o fato vem à luz nela, que a conscientização do contéudo toma lugar" (em itálico no original). Para os neokantianos a consciência é totalmente impessoal. "O 'eu' e suas atividades pertencem ao conteúdo"; admitem eles "a consciência como uma necessidade 'epistemológica', mesmo que não tivéssemos evidência direta de ela estar lá" (6).

No entender de Paul Natorp, a consciência é um elemento ou momento, ou ainda um fator de uma experiência de constituição interna dualista em sua essência, da qual ao se abstrair o conteúdo, ela ficará revelada (7). Em outras palavras, admite Natorp que por intermédio de uma subtração mental se possa separar os dois fatores envolvidos, conteúdo e consciência, distinguindo-os suficientemente para saber que são dois. James refuta essa posição.

A experiência, acredito, não tem tal duplicidade interna; e a separação dela em conteúdo e consciência não se efetua por meio de subtração mas por meio de adição -- a adição a uma parte concreta dada da experiência de outros conjuntos de experiências, em conexão com os quais rigorosamente seu uso ou função pode ser de dois tipos diferentes (8)(em itálico no original).

Natorp, para defender seu ponto de vista dualista, utilizara um paralelismo, tomando como exemplo a constituição da tinta: também ela possui uma constituição dual, envolvendo uma massa de contéudo, na forma de um pigmento em suspensão, e um mênstruo, que pode ser óleo ou um espessante. O mênstruo pode ser obtido simplesmente permitindo-se que o pigmento se deposite; este, por seu turno, pode ser recuperado depurando a substância espessante, ou o óleo.

James fez também uso da tinta, em outro paralelismo, para ilustrar sua rejeição à idéia de Natorp e demonstrar que a dualidade da experiência ocorre por adição, não por subtração, como queria Natorp.

Num pote numa loja de tintas, juntamente com outras tintas, ela serve em sua totalidade como algo vendável. Espalhada numa tela, com outras tintas ao seu redor, ela representa, ao contrário, um traço numa pintura e desempenha uma função espiritual. Dessa mesma maneira, uma porção não separada da experiência, tomada num contexto de associados, representa o papel do que conhece, de um estado da mente, da 'consciência', enquanto num contexto diferente a mesma porção não separada da experiência representa a parte de uma coisa conhecida, de um 'conteúdo' objetivo. Numa palavra, num grupo figura como um pensamento, em outro grupo como uma coisa. E, desde que ela possa figurar em ambos os grupos simultaneamente, temos todo o direito de falar dela como algo subjetivo e objetivo ao mesmo tempo (9) (itálicos nossos).

Em outras palavras no ponto em que a experiência se efetiva interseccionam-se segmentos de contéudo (objetivo) e de consciência (subjetiva). Nesse ponto hipotético o pensamento, que é subjetividade, recebe o influxo da objetividade. Ou vice-versa. O influxo da objetividade se manifesta quando 'a coisa' surge, e esta recebe o sopro particular, especial, que lhe confere subjetividade. Uma paisagem, por exemplo, pode ser apreendida com a frieza descritiva de um naturista que a captou pela primeira vez; mas pode ser capturada como uma forte evocação de uma vivência passada. A experiência é a intersecção desses vertedouros díspares.

A experiência que tem lugar quando um observador depara um objeto de seu interesse pode pertencer a vários pares de associações oriundas cada uma do cruzamento de um segmento de conteúdo com outro, de consciência, o que se torna evidente quando nos damos conta de quantas formas diferentes experienciamos na presença de algo que nos é familiar, como uma surrada poltrona, ou uma sala de jantar em que estivemos inúmeras vezes ao longo de nossa vida. Em ambos os casos, poltrona e sala de jantar estão ligadas tanto à biografia pessoal do observador, como à realidade física exterior, de cunho funcional ou cultural, entre outros.

E isso é válido tanto para os perceptos (do qual já falamos, e que, não nos custa repetir, são estados de consciência duradouros intensos de objetos complexos), como para os conceitos (estados de consciência duradouros fracos de objetos complexos).

Vejamos o que diz James:

se tomamos [...] lembranças ou fantasias conceituais, elas também são, em sua primeira intenção, simples partes da experiência pura, e, enquanto tais, são simples aquilos que atuam num contexto como objetos e em outro contexto figuram como estados mentais. Tomando-as em sua primeira intenção, isto é, ignorando sua relação com possíveis experiências perceptuais com as quais elas podem estar ligadas, às quais podem conduzir e nas quais podem terminar, e que, então, elas possam supostamente 'representar', confinamos o problema a um mundo meramente 'pensado' e não diretamente sentido ou percebido. Este mundo, assim como o mundo dos perceptos, nos aparece, em primeiro lugar, como um caos de experiências, mas se alinha em ordem assim que é traçado. Verificamos que qualquer parte dele que possamos isolar como um exemplo está ligada com distintos grupos de associados, assim como nossas experiências perceptuais o estão, que estes associados se ligam a ele por diferentes relações e que um forma a história interior da pessoa, enquanto o outro atua como um mundo 'objetivo' impessoal, seja espacial e temporal, seja meramente lógico ou matemático ou, de outra forma, 'ideal' (10).

Um advertência talvez desnecessária, mas útil: "o caráter de não-eu" das nossas recordações individuais não implica em que os objetos externos sobre os quais cada um de nós tem consciência objetivem-se da mesma maneira para todo indivíduo, haja vista que os objetos comuns, para os alucinados, são desprovidos de validade geral. "Não existisse o mundo perceptual para servir como seu 'redutivo' (...)nosso mundo de pensamento seria o único mundo, e gozaria realidade completa em nossa crença."(11)

 

(1) JAMES, William --"Ensaios em empirismo radical". In : Os pensadores. Op. cit. , p. 116.

(2) Cf. ibid. , p. 117.

(3) Cf. ibid. , p. 117-8.

(4) Mas o que vem a ser experiência pura? James define-a como "o campo instantâneo do presente, em todos os tempos". Ibid ., p. 109.

(5) Cf. ibid. , p. 102.

(6) Cf. loc. cit.

(7) Cf. NATORP, Paul, apud JAMES, William -- Op . cit ., p. 103.

(8) I bid. , p. 104.

(9) Ibid ., p. 104.

(10) Ibid ., p. 106.

(11) Cf. ibid ., p. 108.