Nova Série

 
 

 

 

 

 

PAULO AZEVEDO CHAVES
Maria, Maria

Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor à alegria

(Trecho da letra de Maria, Maria,
do cantor e compositor Milton Nascimento)

Ela costumava adentrar em minha sala com seu  sorriso largo em busca da barra de chocolate que sempre tenho junto ao computador. “Meu lindo, o senhor hoje está  protegido pelos espíritos que lhe querem bem”. Além de chocólatra, Maria também era espírita, via os mortos perambulando pelos corredores, tinha visões do presente e antevisões do futuro. Inclusive conversava com o ex-chefe, pai de nosso presidente atual, e que morrera havia dois anos.

Minha sala é ampla e nela trabalho sozinho. Pelas grandes vidraças, se tem uma ampla visão da cidade e do rio Capibaribe, já que o escritório da empresa fica no 21º andar de um prédio à margem do rio. Maria, que sempre me visitava em companhia da secretária do chefe, naquele dia estava sozinha. Ela me fez os elogios de costume e me deu um abraço tão forte que pensei que fosse sufocar.

Maria fazia o mesmo com alguns outros homens da empresa, embora se dissesse bem casada. Gorda, feiosa, de longos cabelos castanhos soltos sobre os ombros,cerca de 30 anos, parecia uma índia com seus grandes olhos amendoados e pele morena escura. Naquele dia em especial,  estava mais excitada e falante do que de costume.  Parecia feliz. Avisou-me então que havia cupins do lado de fora de minha janela. Pegou uma das cadeiras da sala, abriu a vidraça e com gestos ágeis – apesar do excesso de peso – subiu no largo parapeito do lado de fora. O tempo estava chuvoso e um vento forte e frio entrou na sala. Fiz gestos para que descesse dali. A essa altura, outros funcionários da empresa assistiam à cena e alguns entraram, angustiados, em meu local de trabalho. Todos faziamos gestos e gritávamos pedindo que Maria  descesse do parapeito. Ela abriu os braços generosos como os do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, deu o sorriso largo de costume e depois daquele dia nunca mais a vimos nos corredores com aquela sua esfuziante alegria, distribuindo abraços nos colegas de trabalho. Nunca mais ela me chamou de “lindo”, comeu um pedaço de minha barra de chocolate, me sufocou com seu abraço  generoso. “Nevermore” – como o corvo lúgubre de Edgar Allan Poe.

  Hoje eu me pergunto: foi suicídio ou minha amiga realmente pensou, em seu delírio psicótico, que havia cupins no parapeito da vidraça de minha sala e quis exterminá-los? Nunca saberei com certeza absoluta a resposta verdadeira. Mas as notícias dos jornais impressos e televisivos informaram no dia seguinte que ela se suicidara, atirando-se do 21º andar de seu local de trabalho.

Paulo Azevedo Chaves nasceu no Recife, em 1936. Advogado, jornalista e poeta, assinou no Diário de Pernambuco, nos anos 70/80, a coluna cultural Poliedro e, de meados dos anos 80 até 1993, a coluna Artes e Artistas, no mesmo jornal. Entre 2002 e 2004, assinou artigos bimensalmente na seção Opinião do Jornal do Commercio (PE). Livros publicados: Versos Escolhidos (Ed. Pirata,1982, traduções); Trinta Poemas e Dez Desenhos de Amor Viril (Pool Editorial Ltda., 1984, traduções); Os Ritos da Perversão (Ed. Comunicarte,1991,poesias); Nus (Ed.Comunicarte,1991, coletânea de poesias); Réquiem para Rodrigo N (Ed.do Autor e digital, 2011, prosa e poesia); Poemas Homoeróticos Escolhidos (Ed. digital,ISSUU, 2012); Os Ritos da Perversão e Outros Poemas (Ed.digital, ISSUU, 2012).