NICOLAU SAIÃO

OS VERBOS IRREGULARES

Um republicano em terras monárquicas

Tão depressa não caio noutra, isso vos garanto eu!

Mas vou já explicar tudinho para, como numa estória de proveito e exemplo, morigerar as eventuais gentes que, como eu, tenham ingenuidades como eu tive.

Foi o caso, como estarão decerto recordados pois dispõem concerteza de boa memória, que anteontem houve uma cerimónia comemorativa do 5 de Outubro. Cerimónia luzida, ao que constatei posteriormente. Pois que eu, como republicano dos quatro costados, resolvi comemorar também – como já o fazia o meu pai durante décadas, correndo o risco de ser amavelmente aconselhado pela Pide a não andar nesse dia, como ele costumava, de gravatinha vermelha...

Mas, matutei com os meus botões, que relevo teria isso no seio dum país que já é, de si, republicano acho eu? Ninguém iria afrontar-se! E, vai daí, resolvi ir até Espanha, país distante onde vigora uma monarquia.

País distante para quem mora longe, claro, que para nós alentejanos é mesmo logo ali. Mas continuando – fui até lá principalmente para chatear os nuestros hermanos com o berrante da minha gravata (temo que, contudo, ninguém tenha percebido a branda provocação) e, adicionalmente, para apreciar umas tapas pundonorosas ajudadas por umas cañas coroadinhas de bela espuma.

E nestes suaves propósitos fui. E nestes encantadores projectos me refastelei. Por uma tarde gostosa?

Nem isso... É que por azar – é uma maneira de dizer - assim que cruzei a fronteira calhei logo de entrar num dos meus poisos preferidos, o entreposto simpático do señor Artur Pérez, ali no jucundo El Marco e que, sendo meio português por afinidade humana e comercial, é adepto do Benfica!

E, é claro, à espera de notícias da bola, tinha a TV numa estação lusitana.

Zás, apanhei logo nas narinas e nos lúzios com o nosso estimado Prof. Cavaco Silva, que os mais avisados referenciarão de imediato como o excelso presidente da República lusa.

Estava Sua Excelencia botando, como é seu timbre, sensato e bem articulado discurso.

Que fui ouvindo emocionado.

Apesar de ser, geralmente, no resto um céptico.

Dizia ele e muito bem, com voz firme e bem marcada, que e cito: “O país está atravessando uma crise que os políticos não podem iludir”. Iludir...ó que palavra perturbadora!

Entre cañas e entre o discurso, tenho no entanto de vos confessar que me deu uma soneira...e adormeci. Que querem, sucede aos mais precatados patriotas!

E logo sonhei – vejam o que nos faz o despaisamento – que estava a estribar, através do consabido “Portugal Diário” onde por vezes espanejo meu estro, umas linhas referentes ao dito estadista:

“ É bem conhecida a estorinha contada por Eça de Queirós, que refere aquele maometano que, convertido ao cristianismo, diz para um antigo correlegionário: "Não queres comer toucinho? Mas quando deixarás tu de ser mouro?".

Ou seja: Cavaco, que até agora não fez o que devia já ter feito há muito tempo, que era ter chamado Sócrates a capítulo e dizer-lhe sem papas na língua: "Ou o senhor se deixa de tretas, de malabarismos, ou demito-o sumariamente! O senhor não pode continuar a deixar o país mergulhar na desgraça e na revolta e continuar a dizer que isto é um éden de equilíbrio, raios!".

Falo coloridamente, mas creio que faz sentido.

É competente um governo que deixa que a dívida às Forças Armadas atinja, como os mídias noticiaram, 100 milhões de euros??! É sério um governo que deixa que o sistema judicial atinja um ponto crítico onde se chega a disparar a matar mesmo dentro duma esquadra? Onde a própria PJ é assaltada? Onde, muito justamente, o bastonário dos Advogados afirma que é mais fácil e exequível contratar gangsters que ver um tribunal da República colmatar uma dívida através da lei? Onde se multiplicam os assaltos, os roubos, os atentados contra o direito do cidadão sem que a polícia possa judiciosamente disparar contra os criminosos? Onde...Mas fico-me por aqui, para não maçar quem leia, pois toda a gente sabe o que se passa!

E vem Vossa Excelencia agora dizer que os políticos não devem esconder a cabeça, como os avestruzes???

Tarde piou V.Exa., como sói dizer-se em português vernáculo.

Ponha essa gente, através dos mecanismos que a Constituição lhe garante e o povo sancionou ao elegê-lo, na ordem!

Porque quem merece deferencia e respeito é o povo, não esses sujeitos que continuamente, baseados no poder de que disfrutam, tripudiam sobre os cidadãos e fazem pouco de todos nós!

Creio que é notório que a Nação, senhor Presidente, espera de V.Exa. mais que simples paliativos...

Ainda não percebeu que o tempo começa a esgotar-se?”.

 

Acordei estremunhado. Paguei e, de rabo entre as pernas e a boca a saber-me a papéis de música, meti-me no carrito e abandonei aquele pedacinho de país vizinho – rumo à República que, por vezes, tão mal servida tem sido por este, aquele, aqueloutro protagonista...

 

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Nicolau Saião. Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "Elvas-Caia", "Abril em Maio", "Saudade", "365", "Os arquivos de Renato Suttana", "Imagoluce", "Judo e Poesia", “Colédoco”... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível" (teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.