NICOLAU SAIÃO
CESÁRIO REVISITADO

Foi há 120 anos que ele partiu. Mas tão fresco que está - tão viçoso de versos e de perfil como os belos legumes, as flores e os frutos que celebrava nos seus poemas!

E segundo se noticia vem aí de novo, por estes dias, uma excelente reedição do seu “Livro”, que a cada ano que passa é livro de todos nós, seus enlevados e persistentes leitores.

À guisa de fraternal mirada – a esse confrade-mestre cujo registo é sempre de olhar atentamente – aqui deixo um pedaço de horizonte que dele tracei, numa tarde creio que igualmente de Março, há já alguns anos.

Com o apreço e a frequentação que não esmorecem, como as sucessivas estações em que humanamente se recreava.

Um armário, quando se abre, faz sair

de qualquer prateleira sonetos ou memórias.

E então é assim: deverá dizer-se infância?

Ou burguesa dengosa? Ou repolhos franceses?

Ou manjericão, que alinda as estrofes várias?

A palavra é, como se sabe, inútil

se pelo meio perdemos anos ou dedos impacientes

pondo-se em tudo: sentimentos nutridos

de coisas que encontramos ou buscamos achar

em seios parisienses ou vamos lá lisboetas

connosco em férias numa esplanada de manhã

ou seja em Carcavelos fumando o velho cigarro

ligeiramente a Sul da loja onde guardava

a memória dum Pai, a côdea manducada

no verdadeiro “Sentimento dum Ocidental”. Sim

moçoilas, saudáveis e prestantes

como nos louváveis alexandrinos

de bastante coleguia p’ra depois

do desmaio amoroso ou antes manuscrito

na Quinta se calhar de Linda-a-Pastora

que é recanto onde laranjas bem se encontram

como versos roubados e que logo

após se recomendam aos fregueses

do poema próprio ou alheio. Indiferente substância

desta e doutras

comerciais casas. O vate

procura em diversos estancos sua matéria

de viver ou morrer com chapéu na cabeça

e exegetas ao lado, perna fina

de escrita ou surrobeca nacionais. Peixe pôdre

afinal e rimas inglesas bem ferradas

com algum leve foco de infecção

bem para dentro dos versos e das cores: azul

ou verde ou vice-versa (como na anedota)

onde deviam estar violeta

ou branco nocturno. E é bom dizer-se

- para quem saiba destas coisas singulares -

que o Mestre o querido Mestre o tal do corpo

setentrional e sapiente (um pouco

digamos ao jeito do António Nobre, que por pirraça

habitava caspité! outro Parnaso)

nos seus melhores momentos dorme agora

entre braçados de camélias

ou erros tipográficos

- espinafres, beldroegas, pimentões

que é esse o melhor prato da Poesia. E isso tem

uma tal melancolia, podeis crer

que a mostrar-se em Lisboa explodiria

e rimas que aparecessem lhes chamaria um figo.

NS

in “Flauta de Pan”

NICOLAU SAIÃO
Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Colunista de O Liberal, jornal de Cabo Verde, tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "A cidade", "Abril em Maio", "Saudade", "Callipole", "Os arquivos de Renato Suttana", "Tempo Dual", "Quartzo, Feldspato & Mica", "Tribuna do Douro"... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível"(teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.