Nova Série

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
MIRADOURO

Os gatos e as lebres

De há uns tempos a esta parte tem andado a verificar-se neste país um fenómeno curioso: um bom ror das gentes do perímetro da cultura, principalmente no sector autárquico, como se de repente - devido a um eventual uso imoderado de “pitéus” – tivessem ficado fartas de repastos espirituais de gabarito, resolveram dedicar-se aos aperitivos e ao material primário.

E assim é que por todo o lado há municípios, sem que isso signifique discernimento em relação ao fenómeno das artes naif, que desataram a descobrir (a incentivar!) “poetas populares”, cujo primeiro traço é serem ora barbeiros, ora cozinheiras, ora pastores, ora sapateiros, ora cavadores – como se tivesse descido sobre a cabeça dos protagonistas do artesanato e das profissões laboriosas uma súbita qualidade imaginativa ou uma espécie de milagre mental…

Mas, perguntar-se-á: a profissão tem assim tanto a ver com o talento de encadear as palavras que enformam o lirismo? Ou o caso será de outra feição, menos amável e na verdade mais arteira e sinistra?

Poderia pensar-se, com a conveniente dose de ironia: será que a classe dominante  – e dentre esta os que detêm as rédeas dos ritmos do mando – como se de repente tivesse remorsos por durante anos ter tratado mal essas profissões industriosas pretende ressarcir-se dessa discriminação, não oferecendo-lhes melhores condições de vida mas sim amáveis coroas de louros?

Ou seja, por outras palavras mais directas: dando-lhe afectos proporcionais ao que o estro destes humildes aedos lhes possam granjear?

O panorama seria interessante se não tivesse com ele uma inflexão que nos faz ficar desconfiados…

Senão, vejamos: numa nação que tem deixado no olvido do grande público poetas como Sebastião da Gama, Cristóvam Pavia, Victor Matos e Sá, António Maria Lisboa, Maria Valupi, Fernando Alves dos Santos e tantos outros, vir-se conferir a distinção de poetas populares, difundindo-os com nobilitações e antologias ou programas televisivos da mais baixa qualidade, mas bem enroupada, só porque são de profissões humildes e, muitos deles, quase analfabetos, assume foros de truque e de manipulação. Chamar-se “poeta popular” a um indivíduo, qualquer ele seja, só porque encadeia tradicionalmente frases rimadas envoltas frequentemente em filosofias de fancaria, patrioteirismo regionalista e, na maior parte das vezes, propaganda rasa ou crendice básica – é tentame manobrador, de cariz primarizante que urge desmascarar. O que está por detrás disto é a tentativa desses mandantes de rebaixarem a cultura que vivifica, formatando a mediocridade e pondo ao serviço da banalização que lhes convém pessoas de boa-fé que, dispondo de alguma vontade de versejar, lhes servem (ingenuamente a princípio e depois já com interesse pessoal) os intuitos duvidosos. Não podendo exterminar a poesia real, que é conquista interior, labuta específica, fulcro luminoso da imaginação (em suma, um rio majestoso e fértil parafraseando Lautréamont), usam estes ersatz, estes sucedâneos mal-ajambrados, utilizando ora a demagogia ora o cinismo sem rebuços. Ou seja - visando infantilizar “as massas”, tornando-as maleáveis. E sem critério ou capacidade crítica.

Para além dos que, sendo de letras grossas e deficiente entrosamento cultural, acham na sua tontice que é assim que a “paisagem” está linda e compostinha...

É necessário partir deste tópico de entendimento, desta “banalidade de base” como referia Umberto Eco: poetas só há uns, sejam ricos ou pobres, sejam calceteiros ou empregados de escritório, médicos ou queijeiros, etc – verdadeiros poetas porque sabem utilizar interior e exteriormente as palavras e as frases que radicam no movimento mágico e salubre do seu mundo interno e da sua sensibilidade. Que podem perfeitamente ser oriundos das classes laboriosas e humildes, como o era António Aleixo. Ou um Tomé Canteiro, um Chico da Vila ou um Vianinha. Mas esses não eram meros alinhavadores de moralismos de pacotilha ou populismo ideologizante insulso. Pois o que é preocupante é que nessa tal versalhada em “moldes tradicionais” quase nunca se vê a celebração dos grandes ritmos da estações, os mistérios do mundo e dos seus acasos e maravilhas – como foram cifrados na verdadeira poesia popular de uma Marie Noel ou de um Jean Rictus, primos colaços dos apontados ali acima.

Tal como sucede noutro sector – o artesanato, que tem magníficos exemplares criativos, mas que não esgotam a assunto da Arte, como os mandantes desejariam – o Poder actual, sempre calculista e verdadeiramente reacionário, tenta epigrafar este tipo de rimação como o que interessa ao povo, às populações, sendo a arte elaborada uma espécie de madureza, de excentricidade, de jogos para insensatos. E, aqui, veja-se o que paralelamente tentam apresentar muitas vezes como Arte Moderna: gatafunhos e inanidades de calendário, protagonizadas em geral por pedantes ou descarados, com o talento ao nível do desconchavo – o que lhes serve de contraponto para o resto da prestidigitação.

Foi assim que, a partir do consulado de Jdanov, se espalhou pelos países, a coberto da propaganda mais grosseira, a ideia da chamada “arte que todos entendem”, a arte “progressista e bem perto das pessoas”. Que nem de facto valia a pena entender – o que se entendia, e facilmente, era a demagogia, o oportunismo e mesmo o autoritarismo – nem estava perto de ninguém a não ser nos seus aspectos retrógrados que deu os resultados que todos conhecem mas que enquanto não tombou praticou estragos de décadas. E ainda continua a praticar…

A desonestidade intelectual tem muitos rostos e muitas fardas e indumentárias. Ora se disfarça com a máscara hirta e digna dos que se distanciam dos cidadãos quotidianos, ora se encena em afectos e popularidades de entertainers duma traquinice para indrominar as “massas”. Os condimentos são, como no caso vertente, o espectáculo de camuflagem de buscar fazer passar por líricos legítimos pobres diabos ingénuos ou ligeiramente oportunistas pela ordem “natural” das coisas…

 É preciso não entrarmos neste malabarismo. Ou seja, manter a lucidez que, afinal, é sempre irmã da dignidade de gente que se respeita.

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/