Nova Série

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
Duas palavras sobre António Salvado: o homem e o cidadão, o autor plural

(Intervenção de NS no Colóquio Internacional de Castelo Branco dedicado a AS)

      Muito boa tarde minhas senhoras e meus senhores. 

   Ao iniciar a minha comunicação, saudando os presentes com muito apreço, peço licença para citar um trecho da carta que há dias enviei aos confrades com que habitualmente me correspondo e aos quais vou dando conhecimento dos tratos públicos em que me envolvo: 

   No dia 25 estarei em Castelo Branco - entre muitos outros autores -  a apresentar uma Comunicação no âmbito da homenagem (Colóquio internacional) a António Salvado levada a efeito pela autarquia albicastrense, a quem felicito vivamente pela iniciativa. 

  A minha intervenção encarará o poeta nas suas vertentes de homem solidário, cidadão honrado e autor excelso, cuja estatura e cuja figura nunca se macularam com o cinismo do politicamente correcto, a hipocrisia e a pedante sofreguidão de  notoriedade apoiada num vazio frequentemente muito em voga.

  A sua obra de tradutor, de ensaísta, de poeta, de professor e de museologista aí está para o certificar. 

  E é assim que, embora excursionando em universos conceptuais-literários diferentes, ainda que próximos e irmanados – tenho todo o gosto (além da natural subida honra pelo convite que me dirigiram) em estar presente e dar testemunho conferido por muitos anos de convívio intelectual e pessoal com o Autor de "O extenso continente" e tantos outros importantes textos suscitadores, pois o verdadeiro poeta é não só o inspirado mas também aquele que inspira.

 

1.

   Disse um dia o filósofo Anacársis, (século VI antes da nossa era) numa frase depois célebre, que "Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar".   

   Estabelecia ele, assim, uma  excepcionalidade que séculos mais tarde John Milton completaria juntando-lhe outra espécie de navegadores: os poetas.  

  O grande autor de "O Paraíso perdido", sem ironias ou inflexões de efeito mas pautado por razões muito próprias (Milton cegara, o que não o poupou contudo a espúrias hostilidades de outros mais cegos que ele...) e não esquecida decerto a proposta platónica de que os poetas deviam ser expulsos da polis, afixava a pergunta - como já se fez na nossa época mais ou menos fáustica mas corroída por estranhezas: serão os poetas sobreviventes? Sobreviventes de uma espécie muito própria e num continente de qualidade, pelos menos os que o são efectivamente e não meros rimadores ou proto-líricos estipendiados ou capturados por interesses de sector a que se juntam, coincidindo, os seus interesses próprios... 

   E, nesta perspectiva e uma vez que a agenda dos poetas, em todas as épocas, não só estabelece um perfil como propõe uma figura significante das incursões que o ser humano efectua tanto por dentro como por fora, digamos que essa sobrevivência é afinal o sinal mais claro da sua permanência no tempo e do seu direito a existir nos tempos que lhe foram dados viver. 

   O que permanece os poetas o fundam”, disse Novalis. E, além de o fundarem, o propõem a toda a humanidade, acrescentaríamos nós na linha do que um dia pensou e exarou Lautréamont para conferir que na verdade o que está em baixo é como o que está no alto, para que se faça o milagre de uma só coisa. 

Anos se leva a descobrir a pátria:

a terra onde existir   p´ra sempre a salvo,

o barro que há-de    modelar a alma,

a língua a ser sabida   a ser falada.

E que os rios e serras e que mares

e que cidades grandes    ou lugares,

que plantas  animais   vão habitar

essas paisagens virgens   a brotarem.

 

Porque o amor  — uma conquista lenta —

precisa de passado e de presente

quando constrói os elos do futuro;

 

que a pátria seja    em ânsia   toda a gente —

de mãos nas mãos   e olhos indif´erentes

a quem não queira partilhar o fruto. 

    Como disse num dos seus ensaios Jorge Luis Borges, “A linguagem não esgota a expressão da realidade”.  

    Efectivamente é necessário mais qualquer coisa. E essa qualquer coisa afinal tão poderosa e criadora e que poderíamos definir como o íntimo fulgor de uma iluminada inspiração visando o que está fora e o que está dentro, é do inteiro conhecimento de António Salvado.  

  Eu diria: sem alardes, sem sobressaltos até, granjeada e fruída duma forma tão natural e tão serena, tão filha duma quase silenciosa maneira de existir, que me apeteceria trazer aqui à colação – e porque estamos a contas com um amigo de Marcial e de Juvenal – a frase de um grande cultor dos clássicos, Lord Halifax:” O verdadeiro mérito é como os rios, quanto mais profundo menos ruído faz”.

 

 2. 

  Em 2010, na revista do espaço literário TRIPLOV dei a lume sobre o poeta de “Interior à luz” um bloco que, um par de anos após, sairia na forma de antologia mínima sob a chancela da Sirgo.

   Permitam-me que cite a pequena introdução.

   Referi eu nela Há, neste acervo, um verso que a meu ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).

  Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia – pela comovida desconstrução da escrita.

  E, assim, é um contemporâneo tanto dos que se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo”.

  Acrescentaria agora: poeta da nostalgia e da memória, duas linhas de força que norteiam grande parte da sua poesia, ainda que a sua lira se envolva noutras, quais sejam o apego àquilo que se observa na senda dum realismo caldeado pelas presenças do amor aos pequenos ritmos – aparentemente pequenos, sublinharia – à grande contemplação do que nos rodeia a todos e ao autor o rodeou em momentos que ele cifrou para lhes guardar a singularidade.

É NOITE, MÃE

As folhas já começam a cobrir 
o bosque, mãe, do teu outono puro... 
São tantas as palavras deste amor 
que presas os meus lábios retiveram 
pra colocar na tua face, mãe!... 

Continuamente o bosque se define 
em lividez de pântanos agora, 
e aviva sempre mais as desprendidas 
folhas que tornam minha dor maior. 
No chão do sangue que me deste, humilde 
e triste, as beijo. Um dia pra contigo 
terei sido cruel: a minha boca, 
em cada latejar do vento pelos ramos, 
procura, seca, o teu perdão imenso... 

É noite, mãe: aguardo, olhos fechados, 
que uma qualquer manhã me ressuscite!... 
 

   Versos esses que atingem noutro registo a fundíssima lembrança de presenças amadas e onde se percebe, para além do que se pressente, o sinal maior duma comoção que as palavras permitem evocar e, diria, tornar figura intensa duma re-ligação.

EPITÁFIO


Porque
sabias os caminhos

que encontrarias na viagem,

sem desaires nem labirintos

a tua vida foi a simples

maneira de atravessares

no mundo brenhas e neblinas.

 

Não precisavas de milagres

para aqueceres a tua crença:

afagos de serenidade,

os dias chegavam passavam

com a mesma limpidez quente

e mansa que a fé torna clara.

 

Desfolho rente à tua campa

os ramos de malvas: lembranças

do cálido peregrinar

das contas puras do rosário

que os dedos do amor rezaram

à espera de um céu alcançado. 

   Um outro timbre na obra de António Salvado é-nos dado pelo senso de humor crítico e pela ironia, crespa mas afável (como sabem uma por vezes não  desdenha a outra…até a implica)  bem patentes nos seus epigramas e quadras (im)populares, como ele as designou. Mas eu preferiria colocar o acento tónico na sua atenção às coisas simples, a essas coisas simples da natureza reconfigurada e dos quotidianos transmutados pela apreensão do que de verdadeiramente imenso têm em si.

Foi nas perenes coisas que aprendi

a ser: a casa do amor cercada

de ruas que subiam junto ao fim

do céu que sempre mais se prolongava,

 

de longo mudos maternais jardins

onde as eternas flores eram lagos

de fragrância ofegante colorida

e os lagos sol em água mergulhado.

 

E nela: o pão cantado sobre a mesa,

a bilha da ternura a renascer,

a pureza do linho a dedilhar

as palavras nos lábios entoadas…

 

deito longe a saudade: permanece

a casa do amor, em mim, perene. 

  Não poderei nem quererei passar de forma leve sobre a sua figura de tradutor. E dou relevo à maneira como colocou em língua portuguesa, salubre e luminosa, autores como Ricardo Paseyro, Cláudio Rodriguez, Harold Alvarado Tenório ou o aqui presente, em boa hora, Alfredo Pérez Alencart. Nem a mão certeira com que colocou em verso, por exemplo, o bom e jucundo Apuleio. 

   A finalizar estas necessariamente breves reflexões, eu gostaria de dar também relevo, duma forma tangível, ao homem solidário, ao companheiro que, no que me diz parte, por duas vezes assumiu fraternidade frontal e pública e ao qual cabem inteiramente as palavras de António José de Almeida que rezam:” Não basta apenas possuirmos a posição erecta, é necessário que firmemente nos mantenhamos nela”.

   Pelas nossas obras, pelo todo com que iremos passar para o pouco ou o muito que nos couber de permanência no porvir? Sem dúvida, arrisco dizer, mas também pela qualidade humana, de ligação aos grandes temas da existência, a saber: a dignidade, o respeito pelos outros e por nós próprios, tudo o que é honrado e que permite que respondamos, a alguém que um dia disse: “O autor de talento não é necessariamente uma boa-pessoa!”, desta maneira muito simples, muito concreta e assaz acertada: “Sim. Mas cremos que será sempre uma pessoa boa!”.

   E como as grandes realidades da vida não podem ser, nunca são afinal, ultrapassadas ou postas de lado com piruetas ou com esquivanços, eu afixo aqui a minha consideração, a minha estima e o meu apreço intelectual e humano por esta pessoa boa a quem endosso o meu abraço firme e a quem tomarei a liberdade de chamar, a terminar: meu querido Poeta, meu querido Amigo António Salvado!

 

Portalegre, Casa do Atalaião em Outubro de 2014

Nicolau Saião

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/