Nova Série

 
 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
No aniversário do falecimento de Max Ernst (dia 1 de Abril)

“A MORTE NO JARDIM”

 

Hoje os pássaros não cantam como dantes

nem as portas batem como antigamente

nem os gatos, que tanto amavas

como dantes vagueiam no lar dos homens.

 

Partiste

e algo terminou, que não era

simplesmente o teu vulto de príncipe renano

traçando a rota primordial

ou apenas

a tua boca sussurrando nas planuras encantadas

les hommes n’en sauront rien.

 

Foi aqui que tu morreste, Max

nesta rua portuguesa onde as crianças brincam

neste pátio de casa provinciana a que as plantas conferem

a dignidade e o medo

a beleza interior de algo humilde que se evoca

foi bem aqui

nesta Cidade Inteira

repleta de inocência e de amargura

neste Café que se alonga como se quisesse devorar o espaço

neste quarto alugado onde os amantes se encaram

como se se vissem pela primeira vez

nesta praia policiada pela maldição das pátrias

neste silêncio

neste espanto

nesta ignomínia.

 

Alguém um dia desenhará nas paredes derruídas

o coração escondido da tua Ninfa Echo

com o ar de quem volta de uma grande viagem

com as mãos humildes e já serenas

sem que ninguém lho impeça

Algum dia, no doce recanto duma madrugada

alguém entenderá porque sabias tu que é bem real a Vila Petrificada

e então será possível o caminho até ao mar

e os homens saberão finalmente

qual a melhor mais bela delirante floresta

guarida para os cavalos e os animais nocturnos

E que será na penumbra das ruas desse mundo

onde cantamos, comemos, bocejamos, padecemos

que a alegria submersa se haverá de descobrir

paciente e subtil como uma estrela abrindo

sobre uma antiga casa.

 

Há gente que fala, dizias tu. Há gente que fala

mas as palavras sabem a azebre e a limalha

e a tristeza e o remorso percorrem-nos os ombros

como um pedaço de um qualquer metal maldito

pois a cidade violenta devora a sua própria cauda

como se fosse ainda existir centenas de anos..

 

É nas coisas reais que morres em cada minuto.

 

Neste pedaço de pão a que uns dentes ofereceram um sinal de fogo

nesta janela aberta como se aqui tivesse sido posta para um acto teatral

neste incrível Abril de vozes sonolentas

chamado muitas vezes a ultrapassar o tempo

É aqui que tu morres com as palavras por companhia

em cada hora de desespero organizado

nas vagas caravelas sulcando o mar oculto

para as ilhas para os momentos para os sonhos.

 

Não morreste pela razão das armas

como essoutro teu irmão Garcia Lorca

nem te foste pelo postigo octogonal

que Jacques Rigaut escolheu lucidamente

partiste, apenas partiste como um fruto demasiado maduro

como um ovo que se quebra no minuto habitual

como uma cama revolvida pelos espasmos da solidão

e que já nada dará  nunca mais   a quem a abriu.

 

Por isso Max para ti não tenho mais que um olhar longínquo

ou um breve uivo de raiva à altura do coração

para a tua fresca libertação

para a tua máscara e para o teu cinzel que soube construir

e desconstruir de seguida

todos os Napoleões do Deserto

mas mesmo assim dói

e persiste

porque ficámos mais sozinhos ante a solenidade e a ganância

e não mais nos dirás que a vida reside no segundo degrau.

 

Porque quase ninguém tem a coragem de brincar

como tu a sério dizias defronte ao teu chemin mistérieux, debaixo

da tua eternité des mondes

nós continuaremos com os nossos frágeis cigarros

lançando o fumo da nossa dor revoltada de encontro às sombras

que já se vêem surgir no tempo

do derradeiro arrepio

como um tremor na montanha distante

no mundo que permaneceu

 

nesse teu universo adivinhado

tantas vezes sonhado, no plenilúnio

 

pintado e escrito. 

 

                                                                                               Nicolau Saião

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/