Nova Série

 
 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
"Um longo e duro olhar"

  Há um filme, espécie de bíblia do mundo dos “gangsters” a sério, que a certa altura nos dá uma cena crucial.

  Já lá vou, mas convirá referir que nessa fita (“Dillinger”) o papel principal é sustentado por um Warren Oates superlativo – esse mesmo, o do “Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia” do nosso estimado “Bloody Sam” Peckinpah.

  A talhe de foice eu aconselhava o seu visionamento a deputados, magistrados, secretários de Estado, etc e juro pelas alminhas santas que estou de boa-fé. Porque ficariam esclarecidos sobre o que é que um arquétipo dos “enragés”, dos “gangsters” honrados (ou seja todos nós, às tantas, numa sociedade torpe como a que temos) pensava sobre as suas deles profissões de risco. Mas adiante…

  E a cena é esta: estando o Dillinger - na clandestinidade, é claro - num bar a tomar uma refeição com a amante, calha de ser topado inteiramente por acaso pelo Ben Johnson, que faz de chefe detective e perseguidor-mor. Cavalheirescamente este entende que ali e no momento se está em território neutro e deve haver contemplação. Por isso, depois de uns segundos de umas estocadas de conversa, estende a mão nobremente ao seu adversário – que pura e simplesmente não lha aperta e o olha de maneira que demonstra que a vida para ele não é uma comédia de cavalheiros.

  Este episódio cinematográfico ocorreu-me ao meditar nas sensuais esgrimas discursivas entre a estimável e a respeitável confraria de políticos adversários uns dos outros, talentarrões como dizia Eça, que se querem mutuamente dar o pontapé pl’a escada acima que é o caricioso destino que espera estes brilhantes cidadãos quando saem do redondel da confraria pura e dura em que se enfronham e mergulham.

  Porque, vejamos, este pugilato mais ou menos platónico tem-no havido sempre, na nossa saborosa democracia tendencial, protagonizado pelos que pertencem ao jet set (um pouco rasca, convenhamos) de que estes afidalgados têm sido um brilhantes ornamento de retórica e de conversa fiada. Porque estes senhores barafustam e chegam a enxovalhar-se, quer em privado quer em público, mas no fim tudo acaba em bem…

  As chatices práticas e os desfechos sanguinolentos estão guardados para os cá de baixo.

  A tristeza é que é sempre a população, as gentes do povo, que ficam com as barbas de molho. E não se tem esperança de que venham em breve a acordar indignadamente. Dando-lhes o proverbial e rijo pontapé no traseiro, como nas fitas do Charlot.

  O cinismo de que são possuidores, bem servido por uma contra-informação que principalmente se apoia no arbítrio, na intimidação e no descaramento (por o povo ter brandos costumes entendem que lhes assiste o direito de tripudiarem sobre ele impunemente) mantém-nos no trono dos cinzentos corredores onde têm o seu habitat.

  Meus amigos, meus confrades, meus manos: atiremos ao menos a esta gente, com a dose quanto baste de altivez e de dignidade enxovalhada, um longo e duro olhar.

  Se eles (ainda) tiverem alguma vergonha(?) decerto entenderão.

 

                                                                                                                Ns

 

Nota – O título desta crónica aponta para o célebre romance de Malcolm Gair, um dos especialistas do “hardboiled” moderno, publicado entre nós na famosa colecção Olho de Lince e que é um thriller emocionante versando o tema da corrupção e do abuso – coisas muito apelativas e extremamente portuguesas a alta escala…

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Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/