Nova Série

 
 

 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO
O jogo de janelas do cantor

    Francisco Ceia tem sido, preferencialmente, cantor e homem de teatro. A sua biografia encontra-se, pode encontrar-se, na rede e em lugares da mesma traça com anexos em DVD e outra - como costuma dizer-se – soma de pormenores.

   Mas não é a isso que agora vou, espero que adequadamente, reportar-me.   

   Com efeito, este pequeno bloco tem a ver com outra circunstancia que não tomaria como fortuita ou, mesmo, subsidiária.

  Visto o interesse que o autor pôs na sua efectuação – já pela edição em si, já pelo cuidado posto na sua divulgação que foi acompanhada de actuações – percebe-se que FC tem esta sua nova feição como fundamentada, diria mesmo nuclear e pelo menos paralela àquelas outras apontadas no início deste trecho.

  E assim foi que este músico por extenso, congregando muito naturalmente um trabalho de diversos anos, deu recentemente à estampa um livro – razoavelmente volumoso e tocando em diversos pontos da sua experiencia pessoal como homem de palavras (é um cantautor, também e como decerto saberão) e do que o lirismo lusitano repercute nele – intitulado “Jogo de Janelas”, que excursiona pela inflexão poético-memorialistica, sendo a poesia do hacedor, como no fundo é sempre, uma viagem pela memória própria visando tocar as memórias vivenciais dos outros (que é esse o veículo da partilha, da comparticipação que une autores e leitores).

    Janelas são lugares de onde, por onde, se pode aceder ao universo das imagens exteriores, mas também das concepções que lhe subjazem, das propostas que lhe estão inerentes e, por tudo isso, que situam quem as abre num plano privilegiado para observar o tempo – o que foi, o que é e o que irá chegar – num jogo incessante e ainda que fragmentado de reflexões e de desejos que estão somente dependentes da capacidade com que aquele que contempla, que simultaneamente as abriu e nelas se consubstancia, efectiva com maior ou menor justeza mas sempre filha duma liberdade que se auto-concedeu na busca de uma apropriação bem cimentada.

    O discurso poético de FC, que se inicia formalmente com textos enunciados duma maneira habitual  - estrofe seguindo estrofe, à guisa do que Tomás de Figueiredo usou fazer no seu longo poema “Viagens no meu Reino” (parente próximo creio que apenas por acaso, pois era capaz de apostar que FC não o conhecerá) – a breve trecho se vaza em compactos blocos de prosa que, sendo de facto prosa poética, não afasta as estórias que neles se contêm -e que o leitor facilmente apreenderá no decorrer da sua incursão através das páginas que as janelas lhe oferecem e que, realce-se, possuem dentro o timbre do cantor que Francisco Ceia continua, mesmo num livro assim dado, a ser.  

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Francisco Ceia
(Da Janela V)
 
 

“(…) Eu, a ver o caldo entornado, bem agarradinho á tigela balouçante,

A voz rude do contra-mestre a insistir: Estás na lua, meu farsante?

Nunca, em tal façanha, tinha pensado, mas até não seria má ideia,

Que raio, ou vento teria de soprar, mais o fogo de quanta candeia,

Para de porto seguro, içar este casco de tábuas a ranger, céus arriba,

É pensar atrevido, para que moço da planície neste tempo, o exiba,

A emperrar tal feito, não faltariam vozes de burro e cães ladrando!

Enfeitados na gordurosa sanha de incapazes palradores, aterrando,

Todos em cortejo: Só um parvo, pretenderia lobrigar naquele vazio,

Ouro, especiarias, seda, marfim ou a precisar de cruz, preto gentio!  

Um safanão, tirou-me do delírio: Viste o demo, ó, vadio duma figa?

Vou dar à coberta, estão murchas, as velas, e o bafo que as fustiga;  

Invadiu-a uma poalha húmida que a todos embacia, da cor do leite.

Cauteloso, espreito da amurada, o mar está um alguidar de azeite,

Cirandam marujos como fantasmas, o barco estagnou prisioneiro,

Horas a fio, como se esperássemos a salvação, vinda do nevoeiro.

Se calha, esta saga vem de mais longe, a correr na massa do sangue.

Desta feita, quem irá ser o salvador que nos liberta o peito exangue?

Só restou acesa acima dos mastros, lá no alto a candeia do mundo,

Mas não passa de um pirilampo, neste oceano branco e profundo.

Se o sol se lembrou de acordar como sempre faz, no céu admirável,

É bem grande o mistério para onde foi recolher-se, o vento amável,

Umas vezes enche os panos, assobiando alegre, as naves empurra,

Outras, dá-lhe tamanha moleza no sopro, é um anjo que sussurra,

Presos neste ardil da mãe Natureza e extraviados das outras naus,

Manda quem pode, vai de bombarda para assustar espíritos maus,

Mas qual quê, o manto branco não se rasgava, nem a aragem bulia.

Nos confins do porão, espantava-se um boi, sem saber para onde ia,

As galinhas no cacarejo, refilavam, sem disposição para por o ovo,

Para o casalinho de borregos de olhar morto, tudo aquilo era novo,

Até o galo ficou de trombas, por não poder o cavername balançar,

A chinfrineira aniquilava-lhe a concentração, nas alturas de galar,

Pelos vistos, não há bolina que nos acorra, nem truques de verga,

Só bruma esvoaçante, mais nada, a um palmo do nariz se enxerga,

Ô! Mestre parece mesmo que arribámos ao tranquilo mar da lua! (…)”. 

(Da Janela V)

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.

Blog : Ablogando, em: http://ab-logando.blogspot.pt/