NICOLAU SAIÃO

APONTAMENTOS DE VIAGEM
– Fragmentos de uma incursão pelo Canadá

Anteontem, com júbilo, recebi de Gérard Calandre (que vive no Canadá) uma pequena oferta que o poeta, para me comprazer, mercara aquando da sua mais recente deslocação ao Ontário numa quitanda da Shawn Street, extensíssima rua de Toronto repleta de lojas as mais diversas onde lojistas dos cinco continentes efectuam o seu comércio.

Constituiu o presente um trio de gatos afeiçoados e pintados – aqui dados em anexo, pois merecem a pena ser vistos – do mais puro artesanato tradicional …da ilha do Bali (em Toronto, megatown cosmopolita, encontra-se de tudo).

Foi um gosto tê-los recebido. E o gesto, ligando-me à memória, fez-me recordar uma viagem que efectuei por aquela região dos Grandes Lagos, de que aqui vos deixo um fragmento.

Artesanato da ilha de Bali

1.

    Como escreveu Étienne de Sénancour em comentário lançado ao papel antes do seu périplo famoso por Itália e pelos países do centro da Europa, “as viagens são sempre um sonho”, refazem um pouco o nosso imaginário e aproximam-se sem cerimónia da descoberta ou, menos importunamente, da redescoberta de mundos apenas entrevistos, de raças e de credos.

     Dizia-me Pedro Henaro, no decorrer duma intensa jornada a pé por Paris que deixou o autor de “Los Amigos” a meditar no facto de que provavelmente são os alentejanos grandes caminheiros, que “os povos pobres não fazem turismo nos países ricos, são os povos ricos que o fazem nos países dos outros, os primeiros quando muito fazem viagens…”. Tal parece-me uma evidência, embora nas últimas décadas o panorama tenha mudado um tanto: é que nos países pobres – e se calhar por isso é que estes são pobres – existe uma coorte de privilegiados, de membros da classe possidente que, mais ou menos conscientemente, excursionam a seu bel-prazer pelos rincões mais inóspitos do planeta para seu consolo e nossa nefanda inveja… E, ainda, o denominado “turismo social” - invento do omnipresente mercado para as classes médias-baixas que são uma fatia considerável em que havia que meditar - já permite que se passem fragmentos de férias por aqui e por ali, da compenetrada Suíça às paragens improváveis das Caraíbas e do Magrebe, que por enquanto lhes estão algo defesas as arribas da Nova Zelândia e as planuras arenosas do Kalahari.

   Não vai nisto nada mais que não seja uma simples constatação. Pois por mim, que não tenho fantasmas embora tenha muitas nostalgias, sempre viajei - medite-se na suprema ironia do destino – à custa da poesia, da arte e fazendo meu trabalhinho, executando meu labor, à guisa daqueles maestros dos tempos vienenses de Maria Teresa ou do grande Francisco José, que recebiam sua paga e seu jantar por terem encantado, como aperitivo mavioso, a aristocrática assistência com trechos a carácter.

    É que a poesia, ajudando-nos a viajar por dentro também nos permite por vezes viajar por fora, principalmente nas alturas em que os dirigentes da nação, sejam eles locais ou nacionais, já integraram positivamente a ideia acertada de que os artistas não-enfeudados e com argumentos reais de obra feita não são simples importunos beliscando as chamadas “forças vivas”, mas embaixadores legítimos duma cultura que muitas vezes com dificuldades e entraves ultrapassam as coordenadas mentais de uma região e de um perfil social e humano, constituindo também e ainda uma fotografia adequada dum ambiente de relação.

   O Canadá…Quantas vezes nas minhas horas de adolescente ele povoara a minha imaginação! Em frente do “Mundo de Aventuras”, do “Cavaleiro Andante”, de outros jornais para gáudio de “gente dos 7 aos 70 anos” como publicitava inspiradamente um deles, eu seguia com desvelo as aventuras dos exploradores de ouro do Yukon, no território do Klondike, dos mounties (nome popular dos membros da Polícia Montada) dos índios hurons e delawares, dos terríveis iroqueses de cabelo em crista, como se fossem “freaks” antes do tempo, das jornadas por entre os bosques da península do Erie e do Ontário, sulcada de rios, povoada de veados e de esquilos, de lobos e de fogueiras luzindo ao longe!

  Quem me diria a mim que haveria de conhecer um vero “polícia montado”, o comandante Augusto do Rosário e de excursionar na sua companhia de juntura com outros confrades pelas intermináveis planuras da Hurónia, de provar a água do lago Huron na Georgian Bay e de conversar com índios e pioneiros contemporâneos nos arredores de Toronto e em Sainte Marie des Hurons onde ainda há bosques iguaizinhos aos desenhos do sonho antigo e, p’ra turista e viandante sentir, paliçadas e cercas de vigia donde eu contemplei, já sem inimigos ardilosos, preferencialmente as estrelas ao entrar do crepúsculo sobre as copas daqueles arvoredos, num silêncio emocionado. 

2.

   Mas nem só de referências da adolescência foi criada a minha simpatia pelo Canadá e a minha expectativa, concretizada num encontro multidisciplinar, com aquela parte da América; paradoxalmente, no entanto, tão diferente e tão semelhante ao seu vizinho do Sul. Com efeito, se as semelhanças físicas e territoriais são evidentes, o perfil interior das duas nações é completamente diverso: mesmo nos estados do Leste – e não devemos esquecer que o Canadá, realmente, é sim os “estados unidos do Canadá” – se sente uma presença palpável das suas origens europeias, ainda não dispersas. Sendo um país de imigração, hoje como ontem, os Estados Unidos têm características de lugar definitivo, com uma estrutura cimentada e previsível. No Canadá, que é manifestamente um país ainda em construção (possuindo contudo uma individualidade muito própria e peculiar) ainda se sente um ar de aventura, de espaço aberto à imaginação e ao livre empreendimento.

   Até na Arte e na Literatura tal se nota – e daí o seu grande encanto. Semelhante, só a sensação de segurança que ali se respira, que é paralelo ao sentimento de liberdade e de cidadania. Não se sente, pelo menos eu não senti e creio que não estou só nesta minha opinião – nem violência, nem racismo, nem miséria. Sociedade assumidamente capitalista, nota-se na administração pública, entretanto, um respeito pelos direitos individuais dos cidadãos, uma devoção – que talvez seja incentivada pela consciente opinião pública – à causa comum de quem ali vive e trabalha. Pude constatar, por conversas mantidas com causídicos, escritores e simples particulares, que ali seriam impensáveis actos de prepotência e de desrespeito como existem noutros países, quer da parte dos mandantes e das forças de segurança, quer de jornais de chantagem ou de associações duvidosas.

  Ali, tanto quanto pude aperceber-me, as leis – todas elas elaboradas para visar o bem comum – são mesmo para cumprir. Nem os pequenos delinquentes nem os “colarinhos brancos” se vêem desresponsabilizados por uma caricatura de Justiça, nem os próceres do poder, por seu turno, abusam das prerrogativas de mando. Sempre o podem tentar, uma vez que o ser humano – evidentemente! – não é constituído por seres angélicos, mas o preço a pagar é elevado. Nem há abusos dos célebres “policiais montados”, assim como seria impensável o desrespeito a qualquer sua indicação. Assim, por exemplo, há uma integração harmoniosa, pacificante, no quotidiano citadino, cruzamo-nos a cada passo com as mais diversas figuras humanas: do negro com trajos da sua comunidade familiar ao empertigado britânico, louro, escarolado, com aspecto típico de súbdito de Sua Graciosa Majestade; do esquimó ao alentejano, da loura filha do Norte europeu à chinesinha coleante e à indiana hierática. Naquela “megatown”, como é dito até nas indicações de mapas, fervilham etnias e comportamentos, concepções de vida e de espiritualidade (há, por exemplo, templos de inúmeras confissões e, sem conflitos, respeitando-se mutuamente).

   Para quem chega de fora, creio eu, o primeiro e mais forte sinal que se recebe é pois este: o de uma Democracia que funciona e onde, salvas as naturais diferenças de talento ou capacidade, nos sentimos donos da nossa própria personalidade e do nosso destino.

  Mas não haverá, pois, aspectos menos conseguidos? Naturalmente, e em textos avulsos de autores diversos eles são analisados. Mas constituem pequeno sinal obscuro, são de reduzida monta. Dar-vos-ei antes sinal palpável, esvoaçante, do périplo quotidiano, social e cultural que durante aquela incursão fui achar dando, ainda, alguns perfis mesmo que esboçados de coisas e de pessoas que o leitor decerto gostará de conhecer. 

3. 

   “É este rio, Senhor, mui largo e de boa feição. As margens, no verão, estão cobertas de grande soma de árvores das mais variadas cores. Há ursos, castores de boa pelagem e veados de forte corpulência. Entre as plantas rasteiras e de média altura retoiçam uns animalinhos a que chamamos esquilos e que alegram a vista pelo correr e saltar nos ramos e troncos. As aldeias dos pagãos são mui numerosas, os homens de boa estatura e as mulheres graciosas posto que pouco recatadas”.

    Estas palavras, a que naturalmente dei o cunho português daquela época, escrevia-as o Sieur de Postallet a um seu correspondente fidalgo que ficara em França, ao descrever-lhe as imediações da que seria mais tarde a grande e bela cidade de Otawa. Repare-se no pormenor da descrição, que não esquece inclusivamente o pouco recato das mulheres índias – pouco recato, acrescente-se com a dose exacta de ironia, de que os mais ou menos recatados filhos da Gália usavam tirar bom proveito…

    No resto, a descrição – que constitui na verdade uma pequena tela – mantém-se ainda hoje fiel à realidade. O rio, o Otawa, ainda é largo e de boa feição, os horizontes que dali se descortinam são fascinantes, ademais de coloridos com todo o prestígio da lenda. Foi por estes lugares que se desenrolaram ferozes combates entre franceses e britânicos, mas foi também por aqui que viveram índios de alto grau de civilização e excelente traça que, tendo pouco a ver com os postulados ocidentais, eram a expressão duma vivência em que a terra, as árvores, o firmamento, a chuva e os frutos da terra, os animais e os seres humanos se integravam harmoniosamente, adequadamente, de tal forma que muitos exploradores, como nos refere o canónico Herbert Wendt no seu livro de análise e divulgação “Tudo começou em Babel”, tomavam costumes índios e habitavam com eles nas aldeias e nas florestas, numa adoptada fraternidade que mais tarde os ”ventos da História” iriam aniquilar.

   Mas os vestígios ficaram, acrescentados de muitos outros de gerações posteriores, o que está magnificamente espelhado no Museu do Conhecimento do Quebec, que tive ensejo de visitar num dia inesquecível, acompanhado pelo poeta Juan Ribeyrolles que na ocasião se encontrava no Canadá por motivos culturais mas também familiares e transportado pelos sócios da Casa do Alentejo em Toronto, Mariana e João Candeias, que na noite anterior no decorrer do jantar havido nas acolhedoras instalações da agremiação se prontificaram, com a energia desempoeirada de habitantes do Novo Mundo, a levar-me a conhecer a capital do Canadá. Pois não era longe, explicaram-me com desenfado, ficava apenas a cerca de 400 quilómetros de distancia…

    Pelas cinco horas da manhã, uma manhã em que como durante toda a estadia tivemos a sorte de gozar o chamado “verão indiano”, me foram buscar à Shaw Street onde eu ficara na casa de outro confrade, quase no cruzamento com a Dufferin se bem me lembro ou digo bem, uma vez que os nomes das ruas, de vinte quilómetros ou mais, vão-se-me esgarçando no meu proverbialmente distraído sentido da toponímia… E enquanto a cidade que nunca dorme descansava no entanto, passados os bairros periféricos e entrados na auto-estrada de Leste, esplendia nas luzes cintilantes, como de cenário de science-fiction, dos seus arranha-céus de aço, de vidro e de cimento concebidos por arquitectos com o sentido da beleza, nós atravessávamos a noite canadiana, as grandes planuras cortadas de ribeiros e de bosques onde as herdades de extensos trigais eram agora a rota que sulcávamos como modernos exploradores visando os territórios desconhecidos.

    Desconhecidos para mim, naturalmente, poético maçarico do Velho Mundo. Que eles, além de por sua profissão de donos de uma agencia de viagens conhecerem razoavelmente o país, que de tão extenso nunca se chega a conhecer absolutamente, também por seu gosto o visitam tanto quanto podem com desvelo, museus e monumentos incluídos, desde as paragens da mítica Saskatchewan até aos lugares menos distantes da cidade de Montreal. “Preparem-se para uma grata surpresa – preveniram-me com unção – pois o museu é uma maravilha!”.

   E é, asseguro-vos. Desde os toténs índios às pirogas, das barcas dos “voyageurs” aos tipees de pele e os wigwans de madeira, desde os artefactos indígenas e étnicos às pinturas dos que chegavam, às esculturas em pedra macia dos índios do norte, muito de belo ali se vê. Mas também um “museu dos Correios”, com espécimes variegados – de carroças para pequenos trajectos até às carruagens para maiores lonjuras, passando por automóveis e camionetas do princípio do século vinte e, mesmo, uma dessas avionetas tão familiares aos cinéfilos, que cruzavam os céus da realidade e das películas e das histórias de quadradinhos.

    Noutro sector, estava um razoável acervo de arte naif mais actual composto por várias salas com esculturas em lata, madeira, cerâmica, tapeçarias com materiais diversos, do trapo ao entrançado, pinturas sedutoras na sua assumida ingenuidade… E, maravilha das maravilhas, uma “cidade” do tempo dos pioneiros com simulação exacta de ruas e o céu em trompe l’oeil de plástico especial, com a padaria, a igreja, a retrosaria e o célebre “saloon” no estilo do Klondike, a enfermaria, os carroções das viagens pelas planícies e os próprios para o comércio, a estação dos comboios com uma locomotiva a vapor e, como corolário, um barco baleeiro dividido em três parte sobrepostas, autêntico, saindo da enorme parede numa simulação de grande efeito, com o capitão e os marinheiros de madeira ou de cera, o desfazer da baleia, os grandes caldeirões para a derreter, as barricas do óleo…

   Jantámos num Cofee retintamente americano destes sítios e pude apreciar as especialidades locais, que me locupletaram sem excessivo custo, servidos por duas senhoras que juntavam a boa aparência à cordialidade sempre de estimar.

   Sem intuitos publicitários, mas apenas de fruição cultural e artística, sugiro-vos uma visita a Otawa, a cidade que é por si mesma um museu, no decorrer de uma viagem ao Canadá. Num voo charter isso hoje pode fazer-se com uma perna às costas e sem irreparável dispêndio – e os lusitanos sempre tiveram e creio que ainda mantêm o gosto pela aventura mesmo assim, urbana e civilizadamente.

 

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.  

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc.   

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).    

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).       

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).  

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”. 

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz), “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas” (Brasil), “Revista Decires” (Argentina), “Botella del Náufrago”(Chile)...  

Prefaciou os livros “O pirata Zig-Zag” de Manuel de Almeida e Sousa, “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras), “Estravagários” de Nuno Rebocho e “Chão de Papel” de Maria Estela Guedes (Apenas Livros Editora). 

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Co-coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003. 

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).  

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.  

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.  

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.