NICOLAU SAIÃO

AS CRÓNICAS EVENTUAIS
1. O prazer de citar

  Tenho um gosto pronunciado pelos provérbios e as citações.

  Os provérbios porque, independentemente da sua justeza, por vezes são pérolas de fantasia verbal; as citações porque correspondem a momentos excepcionais no espírito dos autores das frases, quando a mente, em fase ascendente e profundidade fecunda, traça girândolas que jamais se apagam.

  Além disso, ambos são úteis. Os primeiros servem muito bem para nos acautelar o dia-a-dia, tornando-nos mais atentos às eventuais ciladas; os segundos, além de serem uma homenagem reconhecida a quem as pronunciou ou escreveu, dão sempre sinal sonoro que ilumina tudo em torno.

  Assim, por exemplo, quando um político astuto e cheio de ronha vem prometer mundos e fundos, tirando o pigarro uma pessoa pode responder-lhe parafraseando Churchill: " Pois... Como se eu não soubesse que a política é a arte de ajudar o público a não tratar dos assuntos que lhe interessam...". E, se um malacueco qualquer até nós vem com falinhas mansas para nos interessar num negócio chorudo e de mão-beijada, podemos raciocinar: "Tá bem, deixa...Como se eu não soubesse que não dá o frade do que bem lhe sabe!". Se alguém se queixa de que, num estabelecimento, comprou um produto bom e barato, desses que a perclara televisão nos mete pelos lúzios adentro e que a breve trecho pifou, pode pensar com equilíbrio: "Fui um saloio... Então não sabia eu que as pechinchas dão em requinchas?". E, ao saber que num determinado serviço público certos funcionários andaram a lesar o contribuinte mediante actos de pequena ou grande corrupção, abafados pelos superiores factuais, pode comentar com filosofia: "Os javardos, na lama, são donos como el-Rei no Paço...". E a alguém que se admire de que num areópago os representantes populares passem o tempo a bulhar por dez réis de mel coado, esquecendo os interesses da nação, pode responder-se com sensatez: " Deixe lá... Se se pusessem de acordo é que se calhar era mau. Pois não sabe o meu amigo que quando os barões se abraçam quem leva as pauladas é o servo?". Espanta-se uma pessoa porque os inquéritos sobre os casos das contas de… e de... demoram a deslindar-se? É referir-se-lhe, com bonomia: "Tenha lá tento! Então nunca ouviu dizer que a roupa suja deve ser lavada em família?". E ao fabiano que comente o ar patibular de certas figuras públicas, pode esclarecer-se sensatamente, a exemplo de Oscar Wilde: "Note, meu caro, que cada sujeito tem a cara que merece. Aliás, a partir dos trinta anos cada um é responsável pela cara que tem...". Vem um tipinho, muito moralista, metido na sua indumentária a dar conselhos à gente, pela televisão e pela rádio, alertando-nos para a nossa falta de contenção na fala e para o nosso amor ao mundo, ao dianho e à carne? É repontar-se-lhe de pronto: "Sim, sim...Bem prega frei Tomás". Ou, como escreveu um dia Benjamin Péret, "Quando eu tinha 20 anos, os espertalhaços avisavam-me: vais ver quando tiveres 40 anos! Tenho 40 anos - não vi nada...".

  Pela minha parte, digo que embora os ditames e as citações sejam inúteis para ultrapassar certas situações de facto (vejam, por exemplo, se é possível acabar com o abuso de poder de certos donos dos grandes dinheiros com um provérbio jogado à cabeça do argentário) o que não admira pois lá reza o ditado sobre o trinta-e-um de boca,  e sabe-se que cantar é bonito mas não enche barriga, serei sempre apreciador de tão concisos conceitos.

  Bom, mas calo-me já para não correr o risco de algum leitor mais afoito me dizer fique-se com a sua sabença que eu fico-me com a minha mantença ou, pior ainda, vozes de jerico não chegam ao firmamento.

   E não me assistiria, está de ver, o direito de ficar torpemente desagradado, como fazem certas coléricas personagens que nos tratam do quotidiano...

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

  Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

   Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

  No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

  Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

  Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

  Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

 Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

   Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

  Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

   Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

  Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

     É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.