NICOLAU SAIÃO

A Poesia para além dos montes
– algumas palavras a propósito de “Fora de portas”

INTRODUÇÃO

“Fui-me deitar. E levei toda a noite a sonhar com o deserto,
diamantes e animais ferozes e com o
desafortunado aventureiro morto de fome
nas vertentes geladas dos montes Suliman”

H. Ridder Haggard, “As minas do rei Salomão”
                                                                                       

É preciso ver a poesia muito ao longe. Ou antes: é necessário, por vezes, ver a poesia como se estivéssemos muito longe, do lado de cá dos montes com desertos misteriosos pelo meio. Muito longe do poeta, das suas palavras, das suas razões ou desrazões, muito distantes da sua figura, dos seus secretos motivos, dos seus motivos quotidianos e reais – das suas quimeras ou das realidades que lhe crestam a face, dos segredos todavia muito próprios, dos seus pavores e dos seus encantamentos. Como se, magoadamente, serenamente, o encarássemos como o aventureiro legítimo, cuja imaginação clara e concreta nos vai talvez salvar, nos vai talvez fornecer a pista inquestionável para a viagem mais rara. Para a viagem que iremos fazer, cruzando as lonjuras que frente aos nossos olhos se patenteiam.

Mas será isto possível? Será mesmo efectivável, por maioria de razão se com ele convivemos durante décadas, se lhe conhecemos muitos dos mitos e dos quotidianos em que se envolveu ou se deixou envolver, dos sonhos que lhe permeiam o espírito, daquilo que viu e que o suscita para que se permita escrever sem desdouro e sem desfalecimento? Se o estimamos, se vemos nele um companheiro de jornada, um confrade na rota que é própria de quem vive, que é única mas também nos seduziu?

Pode, pelo menos, tentar-se. Efectuar essa distanciação que é como uma boa regra vital, que é assim como que um olhar lançado na direcção de algo que já vimos mas não esgotámos, como acontece nos grandes passeios que não planeamos ao pormenor mas que ficam em nós para sempre tal qual as memória de ritmos imarcescíveis.

E, afinal, não pode esquecer-se que há no poeta, como em qualquer outra pessoa, sempre uma parte velada, uma espécie de continente desconhecido que nunca chegaremos a descriptar perfeitamente.

Perene regra que deverá ser observada, mesmo escutada quando iniciamos uma demanda. Para além dos horizontes, em pleno território da escrita que doravante não nos será alheia.

LINHAS DE FORÇA
       “A lua, que começa a mostrar-se, ilumina
os ramos mais altos das árvores”
                                    Emílio Salgari, “A montanha de luz”
O mapa da vida

Ao entrarmos na poesia de Carlos Garcia de Castro deparamos de imediato com aquilo que é, a meu ver, uma marcada característica dos seus versos: a celebração dum certo real muito terra a terra, daquilo a que se usa chamar os movimentos inscritos num quotidiano mensurável, tudo o que afinal está disperso nas horas exteriores e interiores - o corpo, os utensílios recorrentes, os ritmos de uma existência em família ou em comunidade, os amigos que passam ou que o poeta frequenta e frequentou, os lugares domésticos ou de passeio que viu, tudo isso que nos enrola em nostalgia se mais tarde recordamos ou, então, que nos permite confirmar nos mapas da nossa existência os minutos que por nós passaram e, perdendo-se embora, passam a viver em nós para sempre.

Em suma, as presenças de gente e de momentos que nos dão notícias disso que é o mundo, do que vai pelo mundo ou o poeta intui que exista (e nós com ele) nesse universo de complexidade a que é costume chamar “os outros”. Muitas vezes isso que se envolve em pequenas inflexões, “as frágeis miudezas e chatices/ pequenas nicas úteis, dispensáveis/ que ao dia-a-dia dão sustentação” (1).

No entanto, não nos deixemos enganar: esse mundo de notações é apenas o invólucro em que CGC acondiciona um outro universo que se projecta noutro espaço, mesmo noutro tempo, esse verdadeiro núcleo duro do que constitui de facto a sua poesia, “tudo o que há na Cidade e fora da cidade – principalmente do que há dentro deles” (2). Por detrás desse quotidiano de gentes aparentamente sem recantos sombrios com que o poeta vai vivendo em Portalegre - cidade amada mas também claramente divisada enquanto lugar onde, eivada de pequenos sevandijas e suaves infâmias, a “virtude é ter esperteza, um desenlace/ ”deitar à frente quando a cama é estreita”(3) - há um outro cenário que muitos não querem nem podem ver e que outros, os mais espertos e perigosos, muito bem vêem mas buscam ocultar ao geral dos cidadãos que habitam naquela que é uma das mais belas, mas também uma das mais corruptas eticamente, cidades do Alentejo e do país (4).

Daí que na poesia de CGC se sinta um intenso travo de humor negro, tanto mais negro quanto mais sofrido, uma ironia magoada que o autor deixa que a percorra “assim como quem não quer a coisa”, uma vez que, sendo um cidadão reconhecível (5) não pode no entanto abstrair-se das correntes de ar frio e ameaçador que lhe passam à volta, uma vez que “nós não choramos só por nossa conta/ mas é por nossa conta que choramos” (6). 

A nascente no meio das areias

Não dissimulemos, nem mesmo para sermos simpáticos para com os que eventualmente nos lerem com maviosa ingenuidade: o poeta, ainda que tenha de se tapar um pouco enquanto cidadão de “cloak and dagger” (que o é e de que maneira!), não é de facto um cavalheiro amável (7). Nele se agitam todos os fulgores e as negridões dos tempos e, se ele for simplesmente honesto para com a espécie (leia-se: se for tão simplesmente um tipo à altura da sua própria figura) não terá mais do que não rasurar o mundo que vai descobrindo, que vai inventando à medida que capta o som das palavras, o sabor da letra de forma.

Na poesia de Garcia de Castro sente-se passar uma forte brisa que corre por vezes o risco de escandalizar os ditos “homens de bem”, ou seja, os figurantes duma sociedade que na “província magna” (8) depende muito de instituições sociais, políticas e religiosas cujo peso – apesar de estarmos já para além da meia-dúzia de anos do século vinte e um – é tão marcado como nos tempos do salazarismo que muitos apenas travestiram para usos de pós-democracia, mas que são da mesma talha e do mesmo traço grosso. Aqui dentro de portas, onde os pequenos ritmos das conveniências são firmemente acalentados por uma burguesia tão relapsa como nos anos cinquenta mas donde vão extravasando escândalos e farândolas que todos conhecem na perfeição, a poética de CGC é percorrida por um erotismo que como se dissimula em discretas tiradas cujo poder apelativo se multiplica precisamente por isso. Sensual e amante dos prazeres da vida, apreciador assumido dos “frutos terrenos” assim como dos espirituais que os antecedem ou se lhes seguem, o autor de “Rato do Campo” acolhe salubremente nos seus poemas esses ritmos que certificam o homem como um ser equilibrado e mesmo verdadeiramente civilizado. Nada tendo a ver com preconceitos ou beatices, tem contudo nele a pessoa para além do simplesmente material. Sendo um epicurista, é-o porque essa é também uma das faces do sagrado, um sagrado re-ligado mas não passa-culpas ou mesureiro.

A subida da montanha

Na poesia de CGC assume-se plenamente a nostalgia, a tristeza da “vida breve”, o que nos é dado em marcações e em ritmos mediante as frases por vezes sincopadas que tomam o leitor como interlocutor inteligente, familiar – como se fosse um amigo ou um vizinho – no fundo um cúmplice ou pelo menos um confidente privilegiado das deambulações do autor, esse autor que vai passeando connosco por uma rua conhecida ou, abancados a uma mesa de café ou de restaurante, vai degustando connosco uma agradável ou retemperadora bebida enquanto nos conta estórias, nos desfia reflexões, mementos, pensamentos apenas advertidos de iluminações fortuitas que apanhou enquanto a vida transcorria. Sinto em muitos trechos de Castro, por debaixo de níveis diferentes de leitura propiciados pelo quebrar do discurso, pelo jeito de mão nas frases dispostas como numa sinfonia peculiar, um quente halo de alegria, de maravilhamento por esta coisa surpreendente que é viver, ter podido viver com tudo o que foi por vezes amargura mas também poderoso contentamento e, ainda por cima, ter podido comunicá-lo aos seus pares de caminhada e aos seus semelhantes, mesmo que muitos estivessem distantes ou distraídos.

Tenho visto neste poeta, enquanto pessoa na polis e na existência, um ser comparticipativo, empenhado na clarificação do mundo e das suas criaturas, essas que o habitam sem que o tivessem pedido e que frequentemente não acham em si armas miraculosas para a rota adequada. A sua escrita, que por vezes conscientemente incursiona por versos que só em aparência são uma pura sequencia do realismo caldeado por outras experiências, nomeadamente o senso de humor surrealista e do lirismo da melhor cepa lusitana, perpassa-se da certeza de que, se é duro e complexo viver, mesmo com o auxílio da religiosidade que não rejeita porque vivencialmente salubre, há sempre razões para não desistir de, após a subida da montanha onde se sentiram as fomes, os frios e os calores devastadores dos sertões e do deserto, se encontrar o rincão onde correm as fontes e a luz é seguro penhor dos melhores momentos que nos esperaram no país encontrado.

Nicolau Saião   

Nicolau Saião. Nascido em 1946 em Monforte do Alentejo (Portalegre). Poeta, pintor, publicista e actor/declamador. Tem colaboração diversa em revistas e publicações como "águas furtadas", "DiVersos", "Bíblia", "Bicicleta", "Elvas-Caia", "Abril em Maio", "Saudade", "365", "Os arquivos de Renato Suttana", "Imagoluce", "Judo e Poesia", “Colédoco”... Autor de "Os objectos inquietantes", "Flauta de Pan", "Os olhares perdidos" (poesia),"Passagem de nível" (teatro), "Os labirintos do real - relance sobre a literatura policial" . É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Até se aposentar recentemente, foi o responsável pelo "Centro de Estudos José Régio"(CMP). Vive em Portalegre.