NICOLAU SAIÃO
Assembleia Geral

U m dia o lirismo veio ter comigo

não me recordo já se de tarde se de manhã.

Mas lembro-me que havia um estranho ruído nas ruas

de gente que subia que descia

e do antigo tempo – como nos sonhos –

saía uma luz como que de farol de automóvel

e o verde-escuro dos rostos crescia a cada segundo

como que para estabelecer uma atmosfera de amargura

todavia amável.

 

O lirismo a princípio apareceu

como um simples habitante

quero eu dizer: com figura de homem

o que não deixa de ser perfeitamente natural

se nos lembrarmos que os andrajos e as cartolas

constituem ora mistério

ora logro

ora elemento transfigurado

- culinário, diga-se assim -

seja na Poesia que se enrola sobre si

seja na Música como um braço tatuado

ou até na Pintura cuja ternura nos acompanha

como um canivete de infância.

 

Bastou um modesto aceno com os dedos da mão direita

que nem sempre ao contrário do que se diz

tocam ao acaso um dos pontos cardeais

para estabelecer o natural nestas coisas: o lirismo

tinha de facto um coração atormentado

perdoai-me a ironia, ó amantes

perto do lago Léman

e com um ar triste tocou-me ao de leve no braço

mas não havia árvores por ali

nem casas

nem pessoas

naquele momento como que estávamos em certo núcleo interior

- o assunto era já outro -

estava de repente muito claro e os jarros sobre a mesa

apagavam-se pouco a pouco.

Mas como durante anos utilizei palavras evidentes

(como saleta tuberculose amendoim)

foi-nos permitido reentrar no ambiente de todos os dias

que não tem mal nenhum: há zumbidos de moscas

e um olhar súbito de face surpreendida branca

e alguns garotos que todas as manhãs passam por nós

a caminho da escola na rua da Fonte do Penedo

(estamos todos no mesmo barco, ia dizer

mas nós é que riscamos o derradeiro fósforo

e o olhamos contra a silhueta das casas)

e seja-nos permitido

guardar uma fugaz circunspecção

para não enovelar toda a conversa.

 

Chegou e fez

coisas impossíveis

e não havia já barulho no corredor

porque lá as diferenças não são acentuadas

uma pedra aqui, outra pedra acolá

e a nossa voz reflecte-se como se recordássemos

e se algo brilha (ou não brilha) sabe-se que ali

é o corpo

Sabes dizia ele foi tudo uma maravilhosa aventura

ó os anos na quinta que tinha aquele grande pinhal

sombra dedilhada, que é como quem diz

perfeitamente posta num caminho de saibro

e o Pai com o seu grande chapéu de alquimista

afeiçoava os dias

e uma penumbra de mão na estrada vicinal

Não há coisas fora do mistério de arbustos desconhecidos

o que já foi já é retrato ou natureza morta

mas sempre com as cores necessárias.

 

E de repente estávamos todos com a mesma cara

havia uma cara de apreciador de calendários

como nos tempos de Abu-Bakr

ou dos antigos egípcios

aqueles que nos confins do deserto divisavam ondeando

a molécula primitiva – para bom entendedor – ou figueiras

noutras terras, com um sol no labirinto

ou com a cara que se usava nos anos cinquenta

Os Citas, a propósito, eram cavaleiros exímios

e de acordo com Sir Vivian Fuchs

“foi no dia 26 de Dezembro que realmente começaram as dificuldades

é evidente que

se trata da viagem de travessia da Antártida

- lá ao longe as montanhas ligeiramente negras, o barco

uma breve mancha negra como um animal gelado

(a horta era em socalcos e havia um tanque

e havia uma pequena estátua num nicho seria a deusa

das ervas?)

Ora portanto

o lirismo queria dizer-me coisas e sentámo-nos

num degrau das escadas da capela do Miradouro

de São Cristóvão

dali vê-se a cidade inteira

e durante alguns minutos nada dissemos um ao outro.

 

Lembra-te

os ramos das videiras

brilhavam

- nada de perdões fora do tempo –

dentro de ti ficará sempre qualquer coisa inescrutável

mas é preciso falar e dizer que em Novembro há uma rua em Coimbra

e muitas outras ruas no mundo para muitos anos

As cerejas comidas numa azinhaga a oeste

do clube de ténis (a casa

recorta-se como um barco silencioso de encontro às sebes do monte

que antecede São Mamede) vão vivendo pelo tempo fora

e tudo flutua

 

Lembra-te

as rosas que nos sábados bem cedo te traziam do mercado

lá estão elas sobre a velha cómoda

 

Lembra-te

os pequenos cactos na janela da moradia defronte são o penhor

de um silêncio íntegro e solitário.

 

Agora um aparte: às vezes

Deus começa a meter-se nas coisas

ultrapassado o negrume entre os castanheiros

um escrito como de até à vista

Que aqueles que viram Deus face a face me entendam

e me escutem fala por mim a voz da justiça

não me façam rir mais, por favor, ora ia

eu dizendo que o lirismo tinha agora cara de rapariga

tinha uns olhos cor de avelã não completamente madura

coisas que servem para ler o jornal

poder ir sem tropeçar ao mictório e ao super-mercado

olhar a Lua em terça-feira gorda

os desenhos sempre alucinantes da vegetação antiga nos

livros de ciências de antes da guerra

Ora bem

pôs-se a olhar para mim

e contou devagar: setenta e dois, trinta e sete, quarenta

(mas dizia tudo de trás para diante, como Calígula no teatro

ou como se recitasse aquele poema de Rilke que se refere às

peras maduras que uma criança devorará)

não era nada disto

estou a brincar convosco ou antes a delimitar

este é o mapa

aquele é o mapa inteiramente cobertos

o que disse, asseguro-vos, foi muitíssimo diferente

Falava, segundo ouvi, nas idades mortas da Terra

e na altura do oceano que só existe nas fábulas

e em como era grato sentir no plexo solar o ar de Setembro

- na praia há, sensivelmente, tanta areia como astros na

Via Láctea

li num livro do Asimov personagem singular

não há somente areia mas estranhas figuras evanescentes

carne de cefalópode, de tyranossauro rex

e de rynocerus ou lá como se chamava

porque tudo vai morrer em frente do grande mar

cor de vinho como na Odisseia

- e, a propósito, sabiam que se sobrepusessem

um mapa do Pólo Sul

à Europa a base de Shackleton ficaria quase sobre Lisboa

e a de Scott sobre Estocolmo? – e o lirismo

dizia-me que por dentro tinha ora a neve ora a treva

e sinais de que não se conhecem coordenadas

sob o firmamento apreciem a cagança desta frase, flor inicial

que vos vendo pelo preço que me custou e que vos ponho

à consideração de jovens animais do Terciário. No começo

era o vento

(e chega-te para lá, ó eterno Adão

senão levas um chuto nos tomates

falo como quero e onde quero

significando então que há palavras intraduzíveis

e faço os trocadilhos de acordo com as Estações)

que não inclui lepra ou estátua de sal ou cancro atómico.

 

Os inteligentes que me perdoem mas é sempre

entre Tel al Amarna e Lagash que se sente o apelo

e subitamente ante nós aparecem imagens irreais

e a montanha da primeira estrela dupla

- uma criança passa, com o seu boné de lã cinzenta

junto ao alpendre da taberna –

porque uma coisa está por detrás da outra e há

um choro que se ouve vindo das traseiras do velho estábulo

entre a neblina ao pé do tanque

quando ainda existia a azinhaga onde cresciam

fetos e plantas incógnitas.

 

Ora bem

dizia eu que os caldeus adoravam o equinócio de Verão

e nem tu meu amor soubeste entender o que havia

de terrivelmente distante ou seja

vivo e sobre os velhos sinais de betume e tijolo

passe o exagero

uma que outra vez fico muito calado e do alto caiem figuras

ou chegam mansamente as antigas

faces dos filhos, de todos os nossos

pais e mães, mulheres e amantes, pois que todos

têm mais que um só significado

digo um rosto fugiu-me a boca

para a grande espiral dos planetas exteriores

é cá uma maneira de dizer nada de sustos

ora aconteceu então que tudo ficou como as cartas de jogar

cara de valete para baixo, cara de valete para cima

e o Outono anunciava-se e um garoto trepava pelas paredes.

Como dizia aquele zé dos anzóis

esse da legenda mais que tudo parisiense

se o meu intento era louro

era suficientemente desembaraçado

para ir à pesca e trazer um bacalhau de oitenta quilos

(mantenho-me jovem porque por baixo da camisa

trago não apenas o esqueleto e os tendões

mas inúmeros sonhos de gatos e cães

que sempre são mais solenes que o vulgar homo sapiens)

e já agora, antes da pista final

uma história: em Alexandria

dizia-se frequentemente que de Hébron a Nippur

eram duzentos dias de marcha

e havia bosques de palmeiras a toda a volta

e o ar era frígido de noite como nos plainos da Bretanha

e por detrás de nós havia passos docemente retinindo

e também, como o recordo, aves no negrume que se avizinhava

Iremos, pergunto eu, mais depressa que a estrela

que em Belém anunciou o nascimento do Cristo

E será verdade que no tronco das bétulas brancas

as borboletas alitreus bombex mudam de cor através dos anos

o que corresponde não só a uma mudança de habitat

mas dos hábitos da espécie

uma estratégia para sobreviver?

Neste universo de duas

mãos dois pés não subsiste o grande sonho

ainda que o contrário seja possível admitir

O que há é um muro de quartel ao longo da Calçada da Ajuda

e flores e frutos no pino do Inverno

o que afinal está certo por razões desconhecidas

os grandes sáurios morreram em pouco tempo o que deu

possibilidades para que a cadeia da vida continuasse a rolar

e depois nascesse o Homem o castor a rena

nossos bons companheiros de vida sublunar. Apesar de tudo

vos digo, ó alturas de Machu-Pichu

que gostaria de saber-vos loucamente amadas

com todos os números pares, com todos os números ímpares

sulcando o céu cor de cobalto

ou entre a ponte e o rio, pois há sempre um rio e uma ponte

entre possíveis e impossíveis

entre luz que diminui e lâmpada que imita

a voz do antigo deus Dionisos ou Chukulkan, esses que numa

rotação milenar navegam intemporalmente.

 

Sob um qualquer momento divino

entrai no campo – o lugar das plantas vai mudando

o vosso corpo fede, a unha estreita cobre-se de baba

nada parece belo e nada parece horrendo

nesse princípio que é futuro e passado. Procurem

a palavra que faça zunir

lâminas de carne entre bancadas depois limpas

- a boa terra grumosa assemelha-se ao papel

de súbito povoado por figuras atónitas

Porque desde os caldeus e os gregos, os persas e os assírios

a certas horas da noite em certos lugares das cidades

um virar de vento agita um minúsculo fio de lã

um farrapo que um dia existiu em qualquer lado

- a lua nas vidraças não existe é uma recordação

onde entram de juntura um cântaro e um lábio sangrento

meditados com alegria. O cheiro da chuva é agora

como um coração cheio de moscas. Passo e repasso

sucumbo como através duma montanha

a luz de um camião na estrada da vertente. O que Scipião

Africano fazia era juntar por sobre as rochas o

que à natureza é defeso: a fúria da língua, o

hálito fortuito numa cama aberta

entre as eras.

Sabeis a pergunta? Um lápis como um arado arrasta

o perfil de alguém que com uma faca separa

tendões e ossos. Uma caixa de fósforos e uma folha rasgada

onde se pode ainda distinguir

algo que poderia ser uma flor branca –

e alguém corre e murmura um nome

e nada do que no homem é nossa proximidade

é o contrário da lenta estranheza que na manhã nos antecede

pois o orgasmo não é uma pedra mármore ou uma esponja

e há por vezes de noite, naquela quinta a sul da terra dos pais

um súbito cheiro de curral

um joelho que seria possível ver nos declives da cidade

mas que desaparece minuto sim minuto não.

O que é certo é que a verdade atravanca os séculos

não, não atravanca os séculos, os séculos

são uma hora dividida entre Julhos, Janeiros, Agostos

e a verdade atravanca-se a si mesma

reflectida no pó é de repente pó e de repente cera escura

para que algo incolor se despeje e inicie

uma atmosfera exposta

ao brilho dum pulso queimado.

 

Saúdo-te, antiga melancolia

que não és melancolia pois pelas ruas há filhos que vão

e filhos que vêm

como se um limpa-parabrisas fosse um arco-íris no Verão

Distingo do lado esquerdo uma parede romana

mas é um quadro de Van Gogh

mas é o vestido de uma holandesa num texto de Paracelso

e passo-te a mão sobre a cabeça

e acontece que a electricidade flui em toda a casa

belamente erguida e que me diz espero.

Renoir morreu aos sessenta e tal anos

e no último momento pediu que virassem uma perdiz de lado

no seu delírio para a pintar melhor.

 

(Agora, vejam bem, já não pertenço à ilha

não sou nem Sagitário nem Virgem, nem Peixes nem Aquário

não trago comigo o cão e a aranha, acima dos outros seres

e a capa que nunca bordarás e os couros vermelhos desfeitos

e a lebre e o cavalo e a folhagem de Janeiro

sou talvez como

uma noz que nunca morrerá

uma almofada de veludo amarelo

inerte como um aparador ou um armário de cozinha

sem tristeza mas também sem o leve cacarejar suscitado

pelo azul, pelo roxo, pelo anil ou o índigo

cor que pouco aliás emprego em qualquer circunstância

porque para desporto bem basta a garrafada na cabeça

e, dizes bem, afinal

se nada é uma questão de retórica

muito menos é questão de apaixonada sonolência

quando os seres adormecem contentes nos braços um do outro

depois de terem passado a Neptuno e Mercúrio

a rasteira mais que tudo concebível).

 

Olha

disse o lirismo

não temas

tu és a verdadeira bíblia dos homens

porque morreste e reviveste, porque morreste e tornaste a morrer

e a porta onde uma criança pintou letras e corpos

vai-se desfazendo lentamente

não temas

Sabias que sobre uma rocha numa quinta do Frangoneiro

uma raposa pelas noites de Verão certamente se sentava

- assim o indicavam os excrementos depositados num

pequeno côncavo da pedra – e lá por cima (como dizê-lo)

o negrume entre os astros continuava como se nada fosse?

E sabias ainda

que os mergulhões de uma charca saem subitamente da água

e voam alucinados para um bosque de árvores ali de perto

e sob uma romãzeira existe um poço fresco afeiçoado

em cimento para que de lá se possa tirar a água com um côcho

se é assim que se diz, pois por vezes a memória falha-me

e não sei já se este automóvel passou no sonho xis

ou passou na realidade ípsilon

(o piano lá continua a executar qualquer coisa de Bach)

e, meu caro lirismo, tu que tens ossos de milhafre ou pintassilgo

diz-me de novo: não temas

tua é a imagem da mão que apodrece

e o ruído de uns pés por cima da cabeça

diz: não temas

apesar de estares absolutamente só

num certo ponto, sob certa forma

ainda é tua a certeza de que existem reposteiros e lâmpadas

como se fosse por encomenda. Por exemplo: primeiro – o fogo e o ar

interpenetram-se

a escolha inclui esqueletos e colinas

e se não existe amor talvez exista um pouco de piedade

um destino, uma sombra, um pedaço de sombra, um pedaço de destino

e segundo – corre um bocadinho mais depressa

entra-me já em Junho, mesmo que os pólos se atropelem

e não esqueças – de línguas não fales uma só

diz boa tarde em inglês, olá em aramaico

e cresce umas vezes para baixo outras p’ra cima

“a cidade é uma represália à natureza selvagem”

como dizia o Papini uns tempos antes de patear.

 

Não te vendarão os olhos com um lenço de seda

disse o lirismo

não te meterão na mão esquerda uma vara benzida

não terás mil portas para olhar

mil janelas para ornamentar

mil degraus para subir e queimar

mil cadeiras para destruir

mil espelhos mil âncoras mil alfarrábios

para trocar as voltas a quem te leia

a quem minimamente te tivesse querido

te tivesse agarrado pelo espírito ou pelo corpo

- o que é a mesma coisa, deixem que diga

excepto quando se consegue algum adiamento

que afinal nunca chega, porque nisto de paraísos

a chama equivale o alfinete, a couve-flor e o insecto

mesmo com certificado, testemunhas abonatórias

e algum incenso a acompanhar. No tempo dos grandes veleiros

Sírius estava seguramente no mesmo sítio.

As palavras fazem sentido pense-se o que se pensar

embora nada modifiquem, porque o saber

aquele que permite

que se veja a relação entre a raiz duma cidade marítima

e o tremor de uma macieira

não é um infamante cartapácio rasgado

que altos são os desígnios de Deus (um traque)

e altos os caminhos do Senhor (outro traque)

com o devido respeito, porque café há-o de várias marcas

- lentamente a polpa da mão passeia

e sente o minúsculo relevo da tinta, o azul, o vermelho

depois novamente o vermelho e, por fim, o preto.

O lirismo

de repente adormeceu

pensava então em Esculápio e em Sosóstris

o tal que comprava e negociava tecidos multicolores

ou em Don José Maria de Hinojosa

porque diabo me lembrei deste agora

- sendo certo que uma ou outra página teria

em que falasse da alegria de viver –

pensava nada o que ele queria era descansar

refastelar-se de todas as maneiras

(o ânimo não ousa erguer-se

ele finge agora que é um gémeo com a boca cheia de sangue)

pois não se pense lá que alguém perdeu isto ou aquilo

ou se perdeu procurai lá entre as ervas

e dizei-me depois se algo haveis encontrado.

Mas se há brisa ou não há brisa

isso compete ao taumaturgo

agora sentado entre laranjeiras e favais.

(Agora

ele escuta

ruídos difusos, leves, incorpóreos

É gente que executa os ritmos habituais de quem se deita

de quem tira a camisola, lentamente as cuecas

e brandamente coloca sobre o espaldar da cadeira

uma gravata, um cinto, um lenço de pescoço).

Sim

longe está o país

onde o nosso cérebro bate como um coração novo.

 

Não há resíduos sobre a pedra de mármore

da cozinha

ali nunca ninguém estrelará ovos às duas da manhã

com um pouquinho de pimenta que faz os olhos bonitos

ninguém lançará para a lata do lixo com alguma pena

uma que outra garatuja incomensurável

Se doze são as figuras do mundo

vinte e quatro serão os clarões do universo

a despeito das imagens que se agitam na água

mesmo sabendo-se que no continente se perdeu

entre as ilhas

a cabacinha branca conservará o seu poder oculto

e olharemos ainda os soalhos de madeira

para aí vermos os passos dos que viveram antes

- lentamente, muito lentamente

do chão se vão apagando os vestígios que os animais

encaram como palpáveis, como se fossem desenhos

impressos nos azulejos à semelhança daqueles

que os romanos pintavam por pirraça

por antiguidade clássica.

 

Contaram-me ou não sei bem se li

que entre as pedras das casas dos Aqueus e Átridas

crescem plantas domésticas, a camomila e a papoula

limite para que tende o divino e o humano

Não temas, não temamos, disse o lirismo a pensar no almoço

é preciso calar, calar muito e a boas horas

mas se acaso for de dizer coisas, que elas saiam

com serenidade e alento

(cheias de gripe, que é como quem diz)

pois que a poesia, para além de ser

um aparelho circulatório, um calhau solitário

e um rio fértil e majestoso

é também para que conste apesar do métier

a velhice e a adolescência misturadas

uma cócega na orelha, um arrepio na anca

e agora façamos uma pausa

Calados o lirismo e eu olhávamos a rua

alguém que passava com a cabeça palpitando com a ventania

outro que olhava ondeando gravemente úteis composições

uma que se tinha cabelos chapéu é que não tinha

e muitas coisas mais que me dispenso de referir

Sabiam que as montanhas de Théron

no seu ponto mais elevado atingem

quatro mil e quinhentos pés de altitude

e que logo a seguir para além de um largo glaciar

outras se elevam a cerca de sete mil pés? O lirismo

estava evidentemente cansado

ouvira entrementes a história de dois irmãos apaixonados pela

governanta mais idosa que eles

e que no sótão todos três celebravam ritos tenebrosos

a escuridão ficara no jardim e formava como que obeliscos

Estava cansado, tinha andado de barco

tinha ido comprar papossêcos

distraído tinha mijado para cima das botas

e pensava lá para ele inúmeras situações comovedoras. Passe

o exagero dir-se-ia

que conhecia o nome de todas as coisas vivas

porque tudo, sem resumir, se igualava às vinte e tantas letras

do alfabeto e o amor é tão transparente como opaco

- usavam um corpete, uma touca branca, um guardanapo sujo

lentamente os olhos iam seguindo os movimentos

sobre tudo descia um silêncio decisivo –

por vezes dentro dele encontram-se vagos objectos ornamentais

vestígios de um dedo cortado, um beijo dado no vácuo

um pedaço de baton

uma meia rasgada.

Mas o lirismo sem se fazer rogado

dizia

o sueste e o nordeste, a silhueta axial

de, por exemplo e sem compromisso, a Lua, um satélite de Júpiter, as

primeiras memórias duma infância

qualquer ela seja

e, como de propósito, as diferentes parcelas

 

em que se dividem os números e as cores.

Mas não era isto

a nossa hipótese de sobrevivência não se compadece com o real

e o irreal é como que o resíduo de um mínimo que se atirou

fora

- bastaria o amor, encontrado ou procurado

e que afinal sabe bem onde ficam as florestas

mas bastaria um invólucro de bolos

ou uma limonada conscienciosamente feita

bastaria na madrugada um gesto simples de mãos

um soberano movimento de outonos e primaveras

(aqui o lirismo tropeçou no seu próprio manto

a pergunta colara-lhe na testa um papel de cor incerta)

e era estranho e belo aquele tecido

 

- de várias matérias composto:

havia a lã, a boa lã de Norfolk que nos primeiros anos

era muitíssimo popular

(a Mãe tricotava pacientemente

puloveres, carapuços, meias compridas)

havia a seda, que se nos descuidamos cobre os mortos

havia o linho

que faz funcionar os diferentes aparelhos

e o algodão, feminino no singular

e tudo estava unido a ponto cruz

e de repente o lirismo

que agora era uma espécie de porteiro de pensão com cara de médico

percebeu que nada tinha dito que se aproveitasse

e, vai daí

começou devagarinho a despir-se

fazendo ao mesmo tempo uns sinais cabalísticos

para significar, lá no seu entender, que jamais

discutiria a necessidade eventual

de dizer sim ou não

uma vez que se dispusera a referir que a verdade

tanto é curta como comprida

se é natural que um verso seja mais ou menos intenso

conforme o calor e o frio

e as formas do milénio. “Faço os meus cálculos

executo as operações

aqui é a soma, ali a diminuição”

disse baixinho e compassadamente

e de repente caiu para o lado

e dos seus ouvidos saíram algumas sombras

que se espalharam em torno e afeiçoaram uma auréola

uma irisação de orelha a orelha

entre o risonho e o sinistro. E eu

que já não estou totalmente deste lado da vida

mas que estou mais que nunca no que existe e não existe

recordo que em certas grutas

da Andaluzia e da Provença

foram um dia encontrados

vestígios

de estranhos seres

que – dizia-se – teriam amado a corça e o cavalo

Supôs-se até, mesmo devido ao fumo

inexistente nos tectos das cavernas

que pertencessem à raça outrora amaldiçoada

dos deuses

que no frio lunar tocavam lentamente nos lábios

(eram homens e mulheres, cheios

da sua própria existência

que limpavam as unhas

à pelagem dos pequenos animais do bosque

às últimas horas do dia)

o que me faz perguntar com singeleza: há nessa casa

alguma mesa branca de madeira de pinho

com uma toalha aos quadrados por cobertura

ou uma pedra antiga como a que eu mesmo possuo, pedra vinda

de longe

do Paleolítico

pedra que ainda conserva na superfície áspera

vestígios que poderão ser de lume, ou ser de sangue, assim a luz

seja de um foco eléctrico ou do sol e estejamos

por exemplo perto da porta

ou a norte da vidraça entreaberta e velada

por uma branca cortina de renda?

E então

como a tarde começava a chegar ao fim

com o seu tom habitual de algarismo entre milhares

ele tomou-me pelo braço e fomo-nos sentar na esplanada de um Café

e com uma expressão lamentosa e indizível

disse-me serenamente: “Você, meu caro

foge à reflexão. Ora venha cá. Ora prove

e depois cuspa, ou então

finja que não é nada consigo. E diga-me: ele tem ou não tem

só a saudade que é dele

só o corpo que é dele

- que é aliás alugado –

sim, aquele corpo que estende para nós asas libertas

e é alma (mas sê-lo-ão mesmo

em vez de asas não serão lençóis batidos pelo vento?)

no quintal ou na sala de estar

Mas adiante

porque se de tão pequeno começa o espanto a não nos deixar

existir

tudo se complica excessivamente. Mas dizíamos

foi este o mistério que sempre nos cruzou a mente

sem deixar contudo que o seu voo chegasse à altura dos nossos olhos

de tão escuro, tão sem sentido na orla das nossas narinas

perto ou frente a frente com o animal que nos observa

dia após dia, hora após hora

sem desfalecimento e sem, claro que não, remorso

- o solo falhando sob o tapete, o soalho sob

as pantufas –

(esta do remorso dá que pensar: se ao mesmo tempo

o tal anjo começasse a… mas deixemos isso)

tal qual boa terra arável. Só a nossa indisfarçável paciência, só

a extrema e corajosa calma

que nos permite trocar o bê e o jota

as calças, o colete, os suspensórios

as diferentes espécies de açucenas e malmequeres

que nos rodeiam a cintura

é que sustentam o impulso de correr

altas e infinitas, ó figuras de correr para o vosso regaço

incomensurável e molhado. Talvez

ainda não tivessem sequer pensado

que antes de nós havia luzes nos caminhos e eucaliptos

com pequeninos flocos sobre os ramos

- só um momentinho que já bebo - abarcando entrelaçados

movimentos de pulmões. Prefiro uma cerveja. E mande o criado

buscar um outro género de crepúsculo, que este

dá-se mal com o tabaco. Se tivesse morado em qualquer parte

que não as partes em que este mundo acaba

(não consinto que pague!) e tivesse saltado

inventando e desinventando outro género de reinos

gostaria que então me contasse dessas. Possa

como aos que demandaram as terras do Prestes

o destino um dia cravar-lhe nas costelas

um centímetro de areia dos desertos. E agora cantem-lhe

assobiem-lhe às botas

como um passeante que nunca aparece

mais do que a conta. Por aí

penso que não irá lá, mas enfim

- nós somos os herdeiros

não simples espectadores

e muito menos estofadores ou carpinteiros

meros videntes ou construtores esperando

numa escada que não se conhece

dum edifício confusamente olhado

alguém que daí a minutos descerá

com uma mala na mão.

Lá onde o mar bate e se desintegra

admirado com o tamanho da Terra

iremos como sempre, as sobrancelhas acentuando o negrume

que já nos cobre toda a cabeça. Iremos no nosso próprio

girar”.

 

E pronto, acabou-se o contarelo

já de há muito se ouviu o sussurro do cuco

e da poeira nocturna

entrando na órbita dos planetas menores

Os animais, agora, vêem através dos nossos corpos:

olham na direcção do fígado e por detrás divisam

um relógio antigo

olham através duma perna e do outro lado

está uma máquina de lavar

olham através do antebraço esquerdo e distinguem

um casaco de criança no cabide

As nossas figuras cresceram

e são breves e intensas como um astro. Agora

é-me lícito finalmente dizer

- objecto ou escultura o meu coração permanece

discreto e impenetrável

antigo marinheiro, antigo tecelão acocorado num escuro

compartimento

onde pouco antes passou o silvo duma serpente

Ele viaja até aos lugares mais secretos

ele sabe o que está por dentro dos diminutivos

a matemática de espirais e elipses

Obscuro viajante ornado apenas com um chapéu e um colar

agita-se devagar como uma abelha maldita

e não toma a realidade por uma pomba cubista

Às vezes visita-me

como um turista afeiçoando um idioma

injuria-me se visto o meu casaco escuro

porque o botão de cima não lhe agrada

O meu coração é não só o alfa e o ómega mas a linfa e os humores

o que cresce entre placas ósseas finas como um tronco consagrado

é um desconhecido de quem só sei o nome oculto

- duplo nome caído numa masmorra –

O meu coração

ressona de noite

sabe que a lua é um arbusto adormecido

e que um desmaio nem sempre é

aquilo que parece

entre os signos de Caranguejo e Capricórnio

O meu coração

é um vulto embuçado que de repente salta e ri

é um pedaço de carvão de pedra

uma planta de pé atravessando

os minutos

 

uma linguagem morta e primordial.

Novembro de 1987
Foi publicado em edição personalizada, para distribuição gratuita sob o signo do B. Surr. Alentejano, em Novembro de 87 - para assinalar 1 ano sobre a noite em que, no lab. da afastada e rural Monte Matos, sob o olhar dos laboureurs au four Frater Canis, Frater Vilalba e Frater Josephus, o Doutor Lionel Crabowe executou as operações de chegada e conclusão da Segunda Obra da Santa Via Seca (tace ut potes).