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MIA COUTO
OS SETE SAPATOS SUJOS

Quarto sapato:
a ideia que mudar as palavras muda a realidade

Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc…

Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé.

Há toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma língua simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o português. Na realidade, não é uma língua mas um vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto é, para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:

- desenvolvimento sustentável
- awarenesses ou accountability
- boa governação
- parcerias sejam elas inteligentes ou não
- comunidades locais

Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint. Outro segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.

Sou de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos. Hoje o que somos é medido pelo espectáculo que fazemos de nós mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a bibliografia de publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece sugerir uma coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.

Muitas das instituições que deviam produzir ideias estão hoje produzindo papéis, atafulhando prateleiras de relatórios condenados a serem arquivo morto. Em lugar de soluções encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos estudos.

Quinto sapato -
A vergonha de ser pobre e o culto das aparências

A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O termo é curioso: “compatível”.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

Sexto Sapato -
A passividade perante a injustiça

Estarmos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular à:

- violência domestica (40 por cento dos crimes resultam de agressão domestica contra mulheres, esse é um crime invisível)

- violência contra as viúvas

- à forma aviltante como são tratados muitos dos trabalhadores

- aos maus tratos infligidos às crianças

Ainda há dias ficamos escandalizados com o recente anúncio que privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.

Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par de qual é a tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por 5 pessoas, temos que o numero de leitores é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora ?

É verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não é não resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse “bairro” das 60 000 pessoas é hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada na escrita.

Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retro-virais a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos, chegar aos 50 000. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de um pequeno grupo técnico?

Sétimo sapato -
A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.

O resultado é que a produção cultural nossa se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald’s.

Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.

O nosso corpo social tem a uma história similar a de um individuo. Somos marcados por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o fim da vida.

Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraizada na terra e na tradição moçambicanas.

Meus Senhores e minhas senhoras

Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.

A minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como um receita financeira.

A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutor da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento não se encomenda, não nasce sozinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em África e no mundo.

A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a SIDA, a droga, o desemprego).

Senhores e senhoras

Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o naufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.

Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos sabíamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas motivados por dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente um universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940 o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não chegava a 11 000. Hoje, a situação melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.

Aos poucos de torna claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a produção de soluções profundas então todo esse investimento não produzirá a desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite então de pouco valerá termos mais quadros técnicos.

A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, nos ensina a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.

Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto e é oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a auto-estima não pode ser construída apenas de materiais do passado.

Na realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.

Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.