REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS

 

MARIA IRENE RAMALHO
Maria Irene Ramalho é professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras e investigadora do Centro de Estudos Sociais (Universidade de Coimbra) e International Affiliate do Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Wisconsin-Madison, onde frequentemente é professora/investigadora convidada. É autora de Atlantic Poets: Fernando Pessoa’s Turn in Anglo-American Modernism (2003; ed. br. 2007, pt. 2008) e co-org. de Translocal Modernisms (2008) e America Where? (2012). Tem publicados inúmeros ensaios sobre poesia e poética comparada, Estudos Americanos e Estudos Feministas. A sua publicação mais recente é “Difference and Hierarchy Re-visited by Feminism” (2013). 

O desvio oblíquo (1)

                   Um desvio ou uma interrupção pode gerar um mundo
                    
António Ramos Rosa,
Volante verde
, 48

 

Philosophie et modernité dans l’oeuvre poétique d’António Ramos Rosa é uma publicação resultante da tese académica sobre o poeta português que Jorge Augusto Maximino defendeu na Universidade de Paris IV-Sorbonne em 2009. Como Silvina Rodrigues Lopes salienta logo no início do prefácio que escreveu para esta publicação editada em Paris quatro anos mais tarde, Jorge Maximino mergulhou no pensamento filosófico da modernidade ocidental para oferecer uma exegese detalhada da poesia e poética do grande poeta português que é António Ramos Rosa. Ramos Rosa, a quem alguém chamou já “poeta cúmplice da filosofia”, prestou também particular atenção a muitos dos filósofos que Maximino convoca para reflectir acerca do entendimento que o poeta desoculta na sua obra sobre o ser, o tempo, o espaço, a modernidade, a língua, o sujeito, a alteridade, o poético, a estética, a representação, a criação, a origem. Citar aqui alguns desses filósofos dar-nos-á uma ideia do vasto âmbito teórico do estudo de Maximino. Maximino traz consigo, entre outros, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche, Kierkgaard, Weber, Freud, Sartre, Heidegger, Lacan, Bachelard, Deleuze, Lyotard, Foucault, Merleau-Ponty, Derrida, Ricoeur, Lévinas. E ainda, como não poderia deixar de ser, o nosso Eduardo Lourenço, um filósofo e um leitor arguto de poesia – e da poesia de Ramos Rosa muito em particular.

Embora a extensa bibliografia apresentada pelo autor indique um amplo conhecimento das análises crítico-literárias existentes sobre o poeta, em Portugal e no estrangeiro, Maximino está menos preocupado em dialogar com a já vasta crítica rosiana, de que de resto dá escrupulosamente conta, do que em construir, a meu ver correctamente, o seu próprio pensamento sobre Ramos Rosa através das fontes filosóficas da modernidade que lhe são mais congeniais e que, em seu entender, são de igual modo mais congeniais ao seu objecto de estudo. Sem, evidentemente, deixar de lado a própria escrita teórica e crítica de António Ramos Rosa sobre o poético e a arte em vários volumes de ensaios: Poesia, liberdade livre (1962), título a evocar a liberté libre de Rimbaud e de que eu destacaria “A poesia e o humano” e o envolvimento do poeta com o surrealismo; os dois volumes de A poesia moderna e a interrogação do real (1979, 1980), Incisões oblíquas (1987), em que o poeta se debruça sobre poesia portuguesa contemporânea); e A parede azul (1991), em que trata das relações entre a poesia e as artes plásticas (e não esqueçamos, como Maximino bem salienta, que Ramos Rosa se notabilizou igualmente como desenhador de grande mérito).

A estrutura muito cuidada de Philosophie et modernité dans l’oeuvre poétique d’António Ramos Rosa facilita a leitura de um livro cujas dimensões e fundamentação científica poderiam tender a intimidar um público mais alargado.  O livro consta de duas partes, por sua vez divididas em quatro capítulos, cada uma dessas partes antecedidas de uma introdução substancial e rematadas por uma breve mas esclarecedora conclusão. Aliás, cada um dos capítulos fecha sempre com uma brevíssima conclusão, que muito pedagogicamente ajuda a pôr em ordem as ideias anteriormente absorvidas. O mesmo se dirá, por maioria de razões, da conclusão que encerra o estudo. Se articularmos esta conclusão final com a introdução geral que inicia o livro, ficaremos de posse das coordenadas teóricas e críticas que orientam o pensamento deste atento e bem informado leitor de Ramos Rosa ao longo das duas partes principais do corpo do trabalho: na primeira delas, o autor debruça-se sobre o pensamento estético-filosófico da modernidade ocidental, traçando pertinentes relações entre o discurso filosófico e o discurso poético, com especial ênfase nas problemáticas do tempo, do sujeito, da alteridade e da morte, dando assim conta do que nesta tradição se entende por “modernidade”; na segunda, com uma epígrafe de Proust a presidir-lhe (L’oeuvre d’art est le seul moyen de nous faire retrouver le temps perdu [100]), Maximino contextualiza social e politicamente o poeta António Ramos Rosa, sublinhando o empenhamento explícito dos primeiros poemas contra a ditadura e salientando o seu envolvimento posterior com as repressões mais subtis da língua que nos obrigam a falar (e que o poeta des-fala em seus poemas). Procede, de seguida, com minúcia, a uma análise fenomenológica da imensa obra poética de Ramos Rosa, desde O grito claro (1958) até A rosa intacta (2007). Assim, depois de comentar o primeiro empenhamento social do poeta (o qual lhe chegou a custar brevemente a liberdade), Maximino debruça-se sobre o compromisso do poeta com a língua (112), nesse processo desvelando a experiência estética da temporalidade que, em seu entender, funda a dimensão ontológica da poesia rosiana.

Percebemos logo no início da tese (24) que Maximino parte à descoberta do poético em Ramos Rosa com base na experiência do tempo e da língua, e da relação social e ontológica entre os dois; mais adiante entendemos também quão importante é para este estudioso de Ramos Rosa a resistência milenar da poesia à racionalidade ocidental cimentada por Platão e Aristóteles. Parafraseio da conclusão do livro de Maximino: a obra poética de Ramos Rosa constitui-se enquanto ruptura contra o lugar da razão na modernidade e contra o pensamento lógico-representativo (323).  De facto, Ramos Rosa falou muitas vezes com ironia dos críticos “muito representativos”, esses que se empenham em decifrar o “sentido” do poema na sua relação mimética linear com o real. (Como quando os nossos alunos escrevem nas suas provas de exame, “o que o poeta quis dizer foi…”)

A verdade é que a poesia lírica, e é dessa que aqui falamos, não é representação, como bem explica a “lógica da metáfora” de Hart Crane.[1] Muito menos é a poesia filosofia. E muito menos ainda se deixa a poesia colonizar pela filosofia. Claro que por “poesia” não quero dizer versos com metro e rima, e nenhum poeta da nossa modernidade melhor para o demonstrar do que António Ramos Rosa, com vários livros de magníficos poemas em prosa no seu currículo (por exemplo, Quando o inexorável [1983] Clareiras [1986], O deus nu[lo] [1988], O aprendiz secreto [2001]). A verdade é que já os modernistas portugueses distinguiam “poesia” de “literatura”, uma distinção que nada tinha a ver com a distinção entre verso e prosa. A poesia era para Pessoa e Sá-Carneiro a arte suprema da escrita criativa, a vanguarda artística, a luz da desocultação do novo, o desassossego da existência. A literatura, por sua vez, era a re-escrita do existente a uma luz alheia, dela cativa como uma borboleta, por isso reconfortante. Assim distinguiam os nossos modernistas poetas de lepidópteros. A literatura, assim entendida, pode reconfortar, acomodando; ao passo que a poesia, assim entendida, como a de António Ramos Rosa, por mais “feliz”, (2) só traz desassossego. Esse desassossego que nos faz perguntar constantemente por aquilo que supostamente é e supostamente tem de ser como é.

 Disse Platão que o espanto (thaumazein) está na origem da filosofia. Talvez – num primeiro momento. Mas logo a razão acomodadora do philosophein se impôs, obrigando a pôr de lado o assombro do que não é explicável. Só a poesia fala “o pasmo essencial” perante a “eterna novidade do mundo”.

Acabo de aludir a Pessoa/Caeiro em “O meu olhar é nítido como um girassol”, mas também Ramos Rosa escreve lapidarmente sobre esse thaumazein/deslumbramento em Deambulações Oblíquas (2001):

Se escrevo é porque nunca vejo mesmo quando vejo
e porque o que sinto mesmo quando me deslumbro é sempre indefinido

mas não escrevo para chegar a uma conclusão
nem para determinar o que é inexprimível

 

E ainda no mesmo volume:

… o poema é um desvio oblíquo

uma distância que avança para outra distância

um movimento sem resultado numa estrela ou num zero

e tudo o que aparece nele é a diferença incomparável

 

Entendo este “desvio oblíquo” de Ramos Rosa como o clinamen lucreciano que os grandes poetas (e alguns filósofos) nunca deixaram de abraçar contra o totalitarismo de um centro de autoridade absoluto e concludente (3). Onde a filosofia deseja arrumar, ordenar, conformar, confortar, concluir, fixar, totalizar, em suma, onde a filosofia deseja saber, a poesia abraça aquilo que é, para Ramos Rosa, “não-saber”, e a que o poeta chama a “ignorância acesa” ou “a ignorância viva” (Livro da ignorância [1988], 22, 33), e rasga fundas clareiras de liberdade e desassossego em um “saber” que é pessoanamente “sabor” (O volante verde, 19) e se realiza tão-só na materialidade “de beijos” (O livro da ignorância, 33, 25). Dois anos antes, em Clareiras (1986) tinha o poeta já escrito: “Sei a fundura do não-saber: embrieguez perfeita” (11). Por alguma razão se refugiava Hölderlin em Kant, que é como quem diz na filosofia, essa tirana (dizia o poeta), sempre que não conseguia tolerar o seu próprio desassossego-de-ser, que lhe vinha da inquietante poesia e que acabou por levá-lo à loucura.

Ramos Rosa teve destino menos trágico. Soube aceitar a materialidade do “imperecível” no “efémero” (Clareiras, 9) e descobrir a positividade do “desvio” ou “interrupção” que “pode gerar um mundo” (Volante verde [1986], 48). É a redescoberta, na imaginação do poeta, da “coincidência perfeita” de “Estou vivo e escrevo sol” (1966). Maximino fala de “harmonia” e “equilíbrio” na poesia de Ramos Rosa (166) e, de facto, a “coincidência perfeita” é uma feliz imagem de ôntica harmonia que se encontra também em Clareiras, um volume de poemas em prosa, onde repetidamente se canta o tranquilo espanto do poeta perante a reencontrada experiência inefável do ser total: “Estou completo como uma onda do mar, como uma árvore, como um muro branco” (13). A escrita dá aqui testemunho de uma completude redonda, que torna o ser-poético indistinto do puro existir na materialidade das suas imagens:  “Sou tudo aquilo em que estou. Folhagem e água, ar, pedras, o sono verde da terra, as cores, os muros, as árvores e as casas adormecidas, rugosas, tudo, o todo inteiro, aqui, na coincidência feliz de ser, ebriamente límpido, misteriosamente idêntico” (13). Esta plenitude perfeita (“escrevo na coincidência e na amplitude do aberto”, 8) vem a ter a sua mais bela expressão em Volante verde,  o volume, saído no mesmo ano que Clareiras e que, a meu ver, se propõe realizar o programa erótico-poético proposto por Caeiro na célebre fórmula epicurista do radical desejo da terra: “Se eu pudesse trincar a terra toda/E sentir-lhe um paladar”.

Onde a filosofia se faz de conceitos, que respondem ou resolvem e encerram, a poesia faz-se de imagens, que interrogam, perturbam e abrem mundos. “Os poetas podem compreender o mundo sem conceitos”, disse o grande poeta brasileiro Manoel de Barros (O livro das ignorãças, 1993), e Ramos Rosa escreve em Clareiras: “Escrevo, não para confirmar, mas para descobrir, para iniciar”, 27). E, mais próximo ainda da materialidade do ser-poeta, assim define Ramos Rosa o poeta em Volante verde (1986): “Ele prepara os incertos lugares. Escreve / o que escreveria um réptil pulsando sobre as pedras” (54). Em Quando o inexorável (1983), um poema em prosa a que oportunamente alude Maximino na sua conclusão final (325), a imagem do poema torna-se mais animal ainda, ou, dir-se-ia tamvez agora, pós-humana: “Há uma linguagem originária que é a da própria ignorância animal, a linguagem mais equívoca, tão sinuosa e esquiva como uma serpente” (35). Ao longo do seu trabalho, Maximino detém-se com evidente deleite nas imagens que se impõem ao poeta, algumas dando origem aos seus títulos mais célebres – o grito, o sol, o deserto, a água, a palavra, a clareira, o cavalo, o clamor, a folha, a lâmpada, o vinho, a pedra, o pássaro, a amêndoa, a árvore. Ou o pessoano volante, que em Ramos Rosa é, como já vimos, ecológica e alegremente verde. E aquelas outras imagens que, como resulta da análise de Maximino (152), são falsos conceitos, como o silêncio (que é “desenhado” em Volante verde, 24), o branco (que é um “livro” e um “animal” em Quando o inexorável [1983], 29, 39), o inexorável (que “a voz paciente e sôfrega ardente e impaciente” “atravessa” [49]), o intacto (que é de “sabor aceso e espesso” em O livro da ignorância [1988] (25) ou a palavra (que não diz “a alegria do vento” mas é tão material e concreta como a árvore ou a pétala ou a lâmpada [Volante verde, 31, 27]). Em Clareiras, as “pobres palavras tornam-se ardentes, unificadas, vivas evidências de uma nudez enigmática” (8) e “correm … querem nascer entre os cabelos e o mar, como lâmpadas verdes, como latidos nupciais” (41). As palavras do livro com esse título (As palavras, 2001) são desejo de corpos-de-ser: “ramagem” ou “pétalas” ou “cavalos de desejo” (13) e “caminham com a agilidade inaugural do sémen da língua” (14).

A poesia não é senão a constante reinvenção do antes-do-pensado, como Heidegger aprende com Hölderlin. Percorrendo com Maximino todos os caminhos da filosofia ocidental, chegamos inevitavelmente a esta conclusão com base igualmente na poesia de António Ramos Rosa: a poesia não é filosofia – e continua a resistir-lhe e a não deixar-se colonizar por ela.

Há muito tempo venho dizendo também que a língua da poesia é sempre a mesma, e é sempre estrangeira. E eis que Ramos Rosa me corrobora magnificamente em Deambulações Oblíquas: 

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

António Ramos Rosa morreu em Setembro passado. Na altura, escrevi um pequeno texto para o JL, que começava assim: “Morreu o homem. O poeta não morre nunca. O leitor que Ramos Rosa, poeta, sempre disse ser, perdura na leitura que dele continuamos a fazer. Não disse Pessoa que o poema é sempre escrito no dia seguinte? E quem finalmente o escreve senão nós, seus leitores?” A poesia de Ramos Rosa é um insistente convite à sua leitura, como neste quase-soneto de As palavras (55):

Múltiplos parecem os caminhos do poema

mas o seu percurso talvez seja só um

e será preciso inventá-lo ou descobri-lo

através do silêncio liso da página

 

Quem sabe onde nos conduz a ténue linha

que começamos a traçar entre a ingenuidade e a dúvida

mas talvez pressintamos a integridade branca

de um indivisível corpo que nos foge adiante

 

Às vezes como uma lâmpada fragrante

uma palavra exala um aroma de lua

ou uma frase cintila como uma constelação frágil

 

Mas o desejo do poema é encontrar a clareira nua

em que o inexprimível seja o puro tremor

da sua inextinguível sede e água que nele se adivinha 

Neste livro que tive hoje o gosto de aqui apresentar, Jorge Maximino, leitor de Ramos Rosa, descobre palavras para dar voz a mais um magnífico “dia seguinte” dos poemas deste poeta. Faço votos para que uma edição em língua portuguesa, porventura em versão menos academicamente pesada, abra aos seus leitores muitos outros “dias seguintes” para Ramos Rosa. Resta-me o grado dever de agradecer a Jorge Maximino ter-me convidado a reler este grande poeta pela sua mão.

 

(1) Refiro-me à carta em que Hart Crane “explica” as imagens de “At Melville’s Tomb” a Harriet Monroe, directora da revista Poetry, que ponderava publicar-lhe o poema.

(2) Alusão ao meu “Verde coincidência. A poesia feliz de António Ramos Rosa” em Letras com Vida. Literatura Cultura e Arte (no.4, 2. semestre 2011)183-186.

(3) Harold Bloom, aqui se recorde de passagem, viria a servir-se do desvio (clinamen) como uma das metáforas da génese poética nesses poetas a que chamou fortes.

Jorge Maximino, «Philosophie et modernité dans l'oeuvre poétique d'António Ramos Rosa»