MARCIA FUSARO´.

O amor pela leitura e a superação de desafios

A leitura está em crise. A reclamação dos professores sobre a falta de interesse dos alunos pela leitura aqui no Brasil é constante.  Mas será somente a falta de interesse dos alunos o problema? A falta de interesse de professores, pasmem, também é fato, embora isso nem sempre queira ser assumido. Lendo o delicioso e memorialístico Leituras: do espaço íntimo ao espaço público (Lectures: de l'espace intime à l'espace public), da antropóloga francesa Michèle Petit, publicado aqui no Brasil pela editora 34, percebe-se que a questão é bem mais complexa. Primeiro o espanto ao sabermos que na França há também a falta de interesse dos jovens pela leitura.

Em meu país, todo mundo se lamenta:  “Os jovens não leem nada”, “se lê cada vez menos”, “como fazer para que leiam?”. (...) Em um estudo publicado no ano passado [1999], sociólogos escreveram, de forma lapidar e provocadora, essa frase terrível: “Quanto mais os alunos vão à escola, menos lêem livros”. Segundo eles, o ensino do francês contribuiria para um processo de rejeição à leitura. Em particular, ao passar do ensino fundamental para o ensino médio, o que ocorre teoricamente por volta dos quinze anos, se exige dos alunos uma verdadeira “conversão mental”, para que se situem em relação aos textos com uma atitude distante, erudita, de deciframento do sentido, o que marca uma ruptura com suas leituras anteriores (PETIT, 2013, pp. 21 e 59).

Dito por uma antropóloga francesa com muitos anos dedicados a pesquisas sobre a leitura, não há como negar, é de causar espanto. Então na França também não se lê tanto quanto os literatos gostariam? E eu que pensava que somente por aqui, em terras brasilis de terceiro mundo emergente, estávamos fadados a esse destino lamentável, e também pelos mesmos motivos...

Entretanto, ao que parece nem tudo está perdido, pois Michèle nos mostra, ao longo de oito capítulos, a maioria deles abordando suas conferências sobre leitura ministradas pelo mundo, que há outros interesses atuantes e relevantes sobre a leitura e que acabam não sendo considerados pelos registros acadêmicos e nem como dados de pesquisa. Inúmeros tipos de leitura não são considerados em pesquisas, mas se mostram tão importantes e formadores de um olhar libertador para o indivíduo quanto as leituras valorizadas pela academia. Em nenhum momento, registre-se, a pesquisadora deixa de lado a importância da leitura dos clássicos e dos livros de formação intelectual, inclusive apontando muitos que ela própria leu em sua formação. Todavia, um dos aspectos inovadores que ela traz nessa abordagem é o frescor de outras leituras, inclusive as mais fugazes, que às vezes lemos ao longo da vida, depois deixamos de lado, ou mesmo esquecemos, mas que são tão importantes quanto as demais em nossa construção como sujeitos. Ou então pessoas que leem pouco, mas cuja influência às vezes de uma frase ou de um fragmento marcante de um livro passa a fazer toda diferença em sua vida e a influenciá-las a partir dali. Para a antropóloga, esse tipo de leitura também deve ser considerado, pois também comporta, de alguma maneira, um caráter formador e libertador.

A leitura também faz sentido para aqueles que leem pouco e que, embora não dediquem muito tempo a essa atividade, sabem, entretanto, que algumas frases encontradas em um livro podem às vezes influenciar o curso de uma vida. E atribuem a essa prática virtudes singulares que a distinguem de outros lazeres: o livro, a seus olhos, é mais importante que o audiovisual, pois permite que se abra para a fantasia, o imaginário, o mundo exterior. (...) Por tudo isso, estou empenhada em fazer com que cada homem e cada mulher possam ter acesso a seus direitos de cultura, e em particular a livros, com os quais ele ou ela vão se situar em uma lógica de criatividade e de apropriação (PETIT, 2013, p. 32).

Seu texto, envolvente por recorrer a memórias de leitores e às suas próprias relacionadas à paixão pelos livros, também nos conduz a outras reflexões mais profundas sobre o universo da leitura. Em seus livros anteriores - A arte de ler ou como resistir à adversidade (L'Art de lire ou comment résister à l'adversité) e Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva (Les Jeunes et la lecture: une autre approche), Michèle já apontava reflexões interessantes sobre a maneira como a leitura pode influenciar a vida dos leitores, mas é sobretudo nesse título mais recente, lançado no Brasil, que as reflexões da pesquisadora sobre esse tema ganham proporções afetivas e memorialísticas de teor crítico e mesmo literário.

Percebe-se que o tempo-memória é um elemento poderoso no relacionamento entre leituras e leitores. Que a leitura pode ser tanto aprisionadora quanto libertadora. Mas que é no campo da liberdade que Michèle se propõe a fundamentar suas reflexões. As lembranças de sua infância, em seus primeiros contatos com a leitura, ainda sob orientação dos pais, são memórias com as quais muitos de nós, também amantes da leitura, nos identificamos.

Em sua abordagem, também nos lembra de quebrar certos mitos, como o de que uma sociedade letrada é necessariamente mais justa, e que pessoas mais letradas são pessoas mais humanizadas. Vários ditadores e deflagadores de crimes hediondos também foram grandes leitores, e também sociedades letradas demonstram altos índices de injustiça. Leitura não faz milagres, mas sem dúvida comporta potenciais de mudança. Mudança que pode fazer toda a diferença para indivíduos ou para uma sociedade em busca de renovação e direitos.

Conforme a autora, a vontade de pensar, a curiosidade, o direito à poesia ou a necessidade de relatos e narrativas não são um privilégio de algum grupo social, mas de todo ser humano. Cada um tem direitos culturais, como o de saber, de usar o imaginário e de se apropriar dos bens culturais que em qualquer idade de uma vida promovam a construção ou a descoberta de si, o compartilhamento com o outro e o exercício da fantasia, sem os quais não ocorre o desenvolvimento da sensibilidade e do espírito crítico. Nesse sentido, a leitura, qualquer que seja ela, comporta potências realizadoras e revitalizadoras da diferença. No caso do acesso aos clássicos, leitura de teor mais aprofundado, essa diferença se mostra evidentemente ainda mais potencializadora da mudança, pois grandes escritores, sabe-se, são aqueles que conseguem transcrever o mais profundo da experiência humana.

 

Leituras: do espaço íntimo ao espaço público – Michèle Petit, Editora 34 (Brasil), 2013.

 
Márcia Fusaro (Brasil). Doutora em Comunicação e Semiótica - PUC-SP; Mestre em História da Ciência - PUC-SP. Professora universitária e pesquisadora das interfaces epistemológicas entre educação, cinema, literatura e ciência.