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JÚLIO CÉSAR 
DE 
BITTENCOURT GOMES

Noite americana, dia francês:
cinema e vida em François Truffaut
No cinema não há engarrafamentos, nem vazios, nem tempos mortos.
Os filmes avançam como trens na noite.
François Truffaut, Noite americana.

Diz algum ditado que a vida não tem ensaio geral; que cada ato faz parte da própria peça, sem possibilidade de retornos ou novas tentativas. Isso significaria que cada ínfimo gesto do cotidiano se revestiria de contornos absolutos, para sempre registrados em algum livro de créditos e débitos da eternidade. Assustadora para os indecisos, essa simplória metáfora, para além do que nela há de óbvio e banal, é, também para um outro tipo de gente, os criadores, motivo de inquietação, sobretudo quando o que esses criadores criam são também metáforas, tão ou mais importantes quanto a reunião de coisas, pessoas e paisagens que lhes serve de base: a vida. Nessa estranha estirpe dos angustiados, certamente se inscreve François Truffaut, o cineasta para quem uma vida inteira dedicada ao cinema deixou uma questão talvez para sempre irrespondida: o que é mais importante, a vida ou os filmes?

No curto intervalo entre duas perguntas, numa entrevista concedida em 1973, Truffaut dizia, com alguma ênfase, pensar em cinema tantas horas por dia e há tantos anos, que não conseguia deixar de comparar a vida e os filmes, e de lastimar que a vida não fosse tão bem agenciada, interessante, densa e intensa quanto as imagens; para acrescentar, algo timidamente, que a vida, apesar de tudo, parecia-lhe mais importante (1). Mais como uma espécie de capitulação momentânea diante de um olhar social (como pode um filme significar mais do que a vida?) do que como expressão sincera de sua alma, a “concessão” de Truffaut a uma resposta mais “racional” é claramente desmentida por sua filmografia. Juntamente com as imagens, em cada fotograma de Truffaut estão impressos o prazer que ele teve ao realizá-lo, o gosto pela narrativa (quando tantas vezes seus colegas de nouvellevague eram criticados pela aridez de suas histórias) e uma entrega apaixonada a seu ofício que não deixam dúvidas – ao menos enquanto dura a projeção de qualquer de seus filmes – de que lado ele está. Não será por acaso que um de seus grandes medos ao filmar fosse o de que algum ator morresse antes do término das filmagens, e que justamente esse medo fosse o escolhido para ser “emprestado” ao seu alter ego Ferrand, o diretor de cinema de A noite americana (1973), que se vê às voltas com as filmagens de um drama chamado Je vous présente Pámela, a história de uma mulher recém casada (Jacqueline Bisset) que foge com o sogro. Também não será à toa que numa das seqüências apareça Ferrand (interpretado, aliás, pelo próprio Truffaut) interpelando o protagonista do filme dentro do filme, Alphonse (vivido pelo onipresente Jean-Pierre Léaud), com palavras que soam tão autobiográficas: “(...) Pessoas como você, como eu, bem sabem que foram feitas para ser felizes no trabalho, em nosso trabalho no cinema. Conto com você (...)”. Difícil não pensar que é Truffaut quem fala, aqui, e que é a Léaud – não a seu personagem – que essas palavras são dirigidas (2).

A possibilidade de evasão, de liberdade que o cinema propicia – a despeito das dificuldades e limitações de toda ordem – é, de um modo ou de outro, um dos temas recorrentes nos filmes e nas declarações de Truffaut e, nesse sentido, A noite americana, mais do que uma metáfora do cinema (e uma declaração de amor a ele), é um retrato do cinema de Truffaut, de seu processo de criação e filmagem e, em última instância, uma homenagem ao espectador desse filme específico e aos espectadores de todos os filmes, aos cinéfilos, em geral. Decidido a mostrar os bastidores da feitura de um filme, Truffaut se impõe uma espécie de desnudamento pessoal através do qual nada fica por mostrar: estão lá desde os conflitos com e entre os atores, os imprevistos, os estouros de cronograma e as pressões externas, até as pequenas e secretas alegrias – subitamente tornadas públicas – motivadas por uma cena bem feita ou por um dificuldade superada.

E também está lá, a despeito do humor e da leveza expressiva que perpassam o filme uma sutil, porém contínua, melancolia (e não será a melancolia uma forma mais leve – ainda que paradoxalmente mais profunda – da tristeza?), decorrente, em muito, do ir e vir dos atores/personagens, da certeza de que todos, à medida que as filmagens avançam e o filme se aproxima de seu final, estão prestes a ir embora, que a família, enfim, que se formou para aquele momento único, que jamais se repetirá, está por se separar. Talvez também por isso Truffaut se certifique que outros membros dessa família se façam presentes, ainda que simbolicamente, através de uma tomada da placa de uma rua Jean Vigo, de um pano bordado com o nome de Jean Cocteau, colocado numa parede, do plano dos livros encomendados por Ferrand em cujas capas vemos os nomes de Rossellini, Lubitsch, Bergman, Bresson e Hitchcock (que deve a Truffaut a legitimação artística entre os norte-americanos (3), ou do próprio uso de Valentina Cortese – uma das atrizes de Julieta dos espíritos, de Fellini, diretor que dez anos antes de Truffaut havia filmado Oito e Meio, também um filme sobre (entre outras coisas) o cinema – no papel de uma diva alcoólatra e decadente chamada Séverine (homônima da personagem vivida por Catherine Deneuve em A bela da tarde, de Buñuel).

Mais do que sinceras e comovidas homenagens de Truffaut aos membros de sua família cinematográfica, a presença desses nomes em seu filme talvez tenham funcionado como uma espécie de amuleto, de garantia de bons fluidos para um trabalho que por sua própria condição de auto-referenciamento e nudez emocional teria grandes chances de dar errado. Uma das grandes virtudes d’A noite americana, aliás, é fazer uso dessas citações sem exibicionismos ou maneirismos de qualquer ordem; sem pretender fazer do filme mais do que um filme ou cair na tentação de fazer literatura com a câmera, naquele tom de filme-ensaio no qual Jean-Luc Godard, seu companheiro de geração, tantas vezes incorreria. Não são poucos os filmes “literários” que se revelam menos interessantes do que a literatura “cinematográfica”. Talvez porque a literatura seja mais complexa do que o cinema e lhe custe menos mimetizar as técnicas e os procedimentos deste do que o contrário. Isso não significa, obviamente, que o cinema seja simples: o grau de complexidade envolvido nessa arte – que é, ao mesmo tempo, técnica e indústria – faz com que a simples existência de um bom filme já seja um pequeno milagre, haja vista a quantidade de elementos interdependentes envolvidos em sua feitura. Trabalho coletivo, o cinema é a busca contínua pela tradução: a do roteiro em imagens, a do personagem na atuação do ator, a da fotografia na textura, na cor e na luz até então existentes apenas na mente do diretor. Nada há, a priori, que garanta o bom agenciamento dessas e de outras instâncias ou a expressão genuína de cada uma das vozes envolvidas que – a despeito de uma voz mais forte que se sobrepõe, a do diretor – devem manter algum volume para que sejam, enfim, também ouvidas. Não está dado de antemão que o filme não fracassará. Ao contrário: um filme – qualquer filme – antes de se materializar como tal tem tudo para dar errado. Também desse permanente risco, desse contínuo flerte com o fracasso, inerente à própria condição do ofício cinematográfico – mas sobretudo da aposta na possibilidade (e na secreta crença) de que possa dar certo – se alimenta o suave encanto d’A noite americana. E ainda que tudo ali mostrado seja falso – a lenha na lareira, a neve, a própria noite (e daí o título do filme: la nuit americáine – ou day for night, na terminologia inglesa – é o nome do artifício técnico que permite, através do uso de filtros, filmar em pleno dia cenas que se passam à noite) – a convicção com que se vive cada uma dessa ilusões faz delas uma verdade.

Espécie de um duplo da vida – mais do que uma metáfora ou alegoria do cinema – essa pequena obra prima de Truffaut ainda tem muito a dizer aos cineastas e homens de hoje. Talvez aqui, como ele sempre desejou, a “noite americana”, como símbolo da magia do cinema, em oposição ao “dia francês”, como materialização do prosaísmo da vida, já não seja uma questão, como o era quando esses termos foram assim colocados a ele em 1973 (4). Talvez aqui, finalmente, cinema e vida não estejam assim tão distantes. Vinte anos depois da morte do diretor, distantes, talvez, estejam apenas de muito da vida e do cinema que vivemos hoje. O que só enfatiza a falta que Truffaut nos faz.

 
 
Júlio César de Bittencourt Gomes. Professor de literatura, doutor em literatura brasileira pela UFRGS com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance “O Quieto Animal da Esquina”, de João Gilberto Noll, seguido de anotações.
 

1 Cf. O cinema segundo François Truffaut. Textos reunidos por Anne Gillain. Trad. Dau Bastos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990, p.302.

2. Antoine de Baecque e de Serge Toubiana, em sua obra conjunta sobre o cineasta, Truffaut: uma biografia. (Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro, Record, 1998, p.389), relatam que “(...) em A noite americana o personagem de Alphonse é tão frágil quanto Jean-Pierre Léaud na vida real. E sua relação com Ferrand parece calcada em seu relacionamento com Truffaut.”

3. Até o início dos anos 60 Alfred Hitchcock era tido nos Estados Unidos como um diretor “sem substância”, e a constatação disso, por parte de Truffaut, é que o fez idealizar uma série de entrevistas com o mestre do suspense com o intuito de revelá-lo em toda a sua grandeza. O resultado do encontro dos dois é o agora já clássico Hitchcock/Truffaut: entrevistas, cuja edição definitiva foi recentemente lançada no Brasil pela editora Companhia das Letras.

4. Cf. O cinema segundo François Truffaut, p.302.