JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES - NOTAS SOBRE A CRISE DA CRÍTICA

Em seu álbum autobiográfico No Coração da Tempestade, Will Eisner, um dos precursores das histórias em quadrinhos modernas e criador da graphic novel, um híbrido bem-sucedido de imagem e texto, revive a fala de um companheiro de armas na 2ª Guerra, descendente de turcos, que relata que “(...) na Turquia eles têm um Hoja mítico, um sábio que sempre senta de costas quando monta seu jumento, pra ver por onde andou. Afinal, por onde ele vai está nas mãos de Alá!” (1).

Essa história me vem à mente, como que num fluxo de consciência, ao remexer em velhos jornais e encontrar um texto de Marcelo Rubens Paiva a respeito de um livro de contos-fragmentos de Fernando Bonassi: 100 Coisas (lançado pela editora Angra, de São Paulo, em 2000). Ao tentar ler Bonassi relacionando-o com o modo de recepção da crítica atual, Rubens Paiva constata o quanto “(...) é triste como a crítica literária brasileira, especialmente a acadêmica, mobiliza-se com os olhos fixos no espelho retrovisor e não observa o ambiente em sua volta. Poucos debatem ou estudam obras de escritores contemporâneos, como as de Bonassi. Poucos se arriscam a definir uma nova narrativa, influenciada pela anônima vida urbana, que divide em escalas sociais os tipos narrados” (2).

Mais do que como uma possível analogia, é como contraste que os poéticos quadrinhos de Eisner me são suscitados por essa “metáfora do retrovisor”, pois, na verdade, nada há em comum entre o olhar desejoso de conhecimento do Hoja e a mirada de medusa da crítica, que parece converter em pedra, em algo frio e sem vida, tudo aquilo com que se depara. A própria razão da metáfora, a cisão entre uma certa narrativa contemporânea – fragmentada e desconstrutora de gêneros – e um aparato crítico com pretensões totalizantes e, no entanto, algo solipsista, para o qual nada existe para além de seus próprios modos de apreensão, é um fenômeno construído a partir de uma ampla e complexa rede de relações cujas ramificações na mídia e na academia, por diferentes, mas convergentes razões, produzem, para além dos efeitos identificados por Rubens Paiva, conseqüências outras, não mencionadas, ainda mais sérias do que o simples anacronismo de perspectiva. Certos vícios de origem e determinados fundamentalismos teóricos, como, por exemplo, a ilusão positivista do discurso “científico”, que não têm consistência lógica nem base empírica, mas que constituem verdadeiras camisas de força para o jovem desavisado que ingressa nos cursos de letras, causam mais danos ao pensamento do que o medo do risco de “sujar” as mãos com o não referendado. Em nome do rigor científico, a esse jovem será dito para “delimitar” seu tema, ignorando o viés panorâmico que fez muito da riqueza intelectual de nomes como Julio Cortazar e Octavio Paz, críticos-poetas para quem o todo ainda era muito pouco. Infelizmente, porém, críticos-poetas, escritores que escrevem sobre as obras de outros escritores, são, ao que parece, figuras em extinção. Atropelados pela pressa e pela avassaladora lógica do mercado, foram substituídos pelo resenhista de jornal e pelo crítico acadêmico, um e outro tornados menos analistas do que divulgadores, muitas vezes, de uma arte média, acessível e inofensiva ou, em outra medida, reduzidos ao estatuto de reverenciadores de uma arte já consensualmente grande, canônica e, sobretudo, “estável” (no sentido de algo que não mais será posto à prova).

O resenhista, freqüentemente pautado por um suposto gosto médio do público, ao invés de ser ele o agente da circulação daquilo que o público não conhece, limita-se, num círculo vicioso, a comentar o que já está na mídia, o que já logrou entrar num certo circuito de “eleitos”, de autores e obras que vendem e que de posse desse status de vendedores mantém-se na mídia ad infinitum. O crítico acadêmico, por sua vez, vitimado pela necessidade de “fazer currículo”, de publicar o máximo possível num prazo, a rigor, impossível – ao menos para a publicação de algo que faça diferença –, torna-se uma espécie de clone, plantado numa outra instância, do resenhista de jornal: reduz-se a um legitimador do já legitimado, a um comentarista do conhecido, do que não oferece perigo, daquilo que não o obriga a desviar os olhos do retrovisor e voltá-los para o que está em torno, para o que, estando em movimento, ainda é disforme e escorregadio. Mais semelhantes entre si do que pensam ou desejariam, ambas as instituições, mídia e academia, acabam fundamentando o seu esforço crítico mais no reconhecimento e na confirmação do que já é canônico e estável e menos na descoberta pessoal e na afirmação do que ainda está se constituindo.

Não se trata, evidentemente, de negar, ingênua e preconceituosamente, a história da literatura, a constelação de ideais estéticos, lingüísticos e culturais desenvolvidos e legados por uma complexa e diversificada tradição ao longo dos séculos, mesmo porque não somente a compreensão da literatura, das artes e da própria cultura se faz, necessariamente, através do conhecimento da tradição, do que nos procedeu, como também a existência, mesma, da literatura atual se deve ao que se fez antes: é porque em algum momento existiu um Shakespeare que hoje os autores escrevem de um modo diferente daquele em que escrevia Shakespeare. Uma tal obviedade, porém, parece escapar, por vezes, ao olhar apressado de críticos e resenhistas que insistem em manter em seus discursos um pendor arqueológico que os cega para o seu próprio tempo. Um exemplo dos equívocos aos quais essa postura anacrônica conduz é o episódio protagonizado há alguns anos pelo jornal Folha de S. Paulo que, a pretexto de provar a insensibilidade das editoras para a verdadeira literatura enviou, para várias delas, sob pseudônimo, um texto menos conhecido de Machado de Assis, o qual, para júbilo do jornal, foi recusado por todas (3).

Que as editoras são insensíveis às literaturas que não se filiam aos ditames do mercado, como quer demonstrar a Folha, é coisa na qual se pode acreditar. No que, ao contrário, não se pode acreditar, é nas premissas das quais o jornal se serve para chegar a essa conclusão. Como bem assinala o escritor Bernardo Carvalho – ele mesmo também jornalista e articulista da própria Folha – “(...) escrever hoje um texto (à maneira) de Machado de Assis ou Guimarães Rosa não é apenas “démodé” (a despeito das qualidades absolutas do original), nem simples pastiche, mas um absurdo tão grande quanto negar a própria existência do escritor e da história. (...) É óbvio que se alguém escreve hoje à moda de Machado de Assis não deveria ser publicado por nenhuma editora com um mínimo de bom senso” (4).

Sob esse olhar enviesado lançado a um pseudo-fenômeno, revela-se, de um lado, a incompatibilidade entre a literatura contemporânea e a crítica baseada em pressupostos e parâmetros de validação que não contemplam o que essa literatura põe em jogo, e, de outro, mascara-se o não cumprimento de uma tarefa que não só as editoras como os comentaristas de literatura e os responsáveis pelos cadernos de cultura dos grandes jornais deveriam se esforçar por assumir: a de descobrir, em meio ao fluxo contínuo de novos autores que surgem, aqueles que poderão ter, para a literatura contemporânea, um impacto e uma importância semelhantes aos que Machado teve para a literatura de seu tempo. Sem dúvida essa é uma tarefa difícil, que exige leitores sensíveis e concentrados, dispostos a uma atitude mental que desapareceu: aquela de críticos como Paulo Rónai ou Antônio Cândido, que tiveram a sensibilidade de reconhecer, no nascedouro, a força e a originalidade de autores como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. O preço a ser pago pela ausência dessa atitude é a inexistência da crítica e a consolidação de um panorama cultural condicionado pelo mercado. É verdade que o desaparecimento de uma crítica consistente – como o jornalismo cultural, antigamente, foi pródigo em oferecer, dando guarida, por exemplo, a nomes como Otto Maria Carpeaux e Álvaro Lins – e as queixas decorrentes desse vazio não constituem um fenômeno novo: em julho de 1932 Raul Bopp já escrevia a Jorge Amado reclamando do ambiente cultural que, segundo ele, era bom “pro museu dos fardões, apenas” (5). O que é um fenômeno relativamente recente é o grau de desprestígio público que a literatura enfrenta e que constitui quase que uma sua segunda natureza, fazendo com que a crítica, de um lado a seu reboque, de outro, como que na “vanguarda”, vá, gradativamente, deixando de obter eco até emudecer totalmente.

Curiosamente, porém, na contramão dos temores apocalípticos, o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzesberger, um ferrenho e habitual crítico da vulgaridade da cultura midiática, faz, aqui, uma inflexão, vendo nesse fenômeno apenas o retorno da literatura à sua condição ancestral de “preocupação da minoria” (6) Aos olhos de Enzesberger, o público que realmente conta descobre por si mesmo o que deve ser lido e para esse público a crítica não produz efeito algum. A ser verdade essa afirmação, restaria à crítica apenas o “outro” público, a grande massa amorfa que se satisfaz com os clichês vigentes e com os produtos da indústria cultural. Se, no entanto, levarmos em conta que esse público é composto, de um lado, pelos deserdados econômicos, por aqueles para quem um livro é um objeto distante e desnecessário (inclusive, também, porque sua carência de fabulação é suprida pelos folhetins televisivos) e, de outro, por uma massa formada basicamente por jovens submetidos a uma variada gama de apelos imediatos, sobretudo visuais, se verá que, em termos práticos, a crítica, especialmente a acadêmica, não detém mais função alguma, e o que finalmente lhe resta, numa pálida caricatura do que um dia já foi, é falar para si (e de si) mesma. Nunca, como agora, pareceu tão próximo o cenário antevisto por George Steiner, que vaticinou que um dia as estátuas seriam erguidas não mais aos poetas, mas aos críticos (7).

A sobreposição do discurso crítico sobre a fonte primária na argumentação da ensaística atual (o que é quase uma contraposição à idéia de ensaio), a inflação de textos teóricos sobre outros textos teóricos (em detrimento de uma apreciação crítica baseada na sensibilidade e na leitura pessoal daquele que se propõe analisar a obra de arte), a incessante menção a “métodos” críticos e sua “aplicação” indiscriminada à literatura de todos os matizes, enfim, longe de apontar para uma maior circulação do conhecimento revela, paradoxal e tragicamente, a incomunicação, a perda do fundamento empírico e o extravio num discurso circular, tautológico, para o qual importa menos iluminar o objeto do que dele se servir para a perpetuação de uma pseudo-erudição, inacessível aos não iniciados (isto é, o “restante” da humanidade). É como se constituindo uma esfera de produção, circulação e debate paralela e – estranhamente – autônoma, desvinculada tanto da própria literatura quanto do público, a crítica procurasse recuperar, de algum modo, algo do prestígio e do amor próprio perdidos.

Mesmo essa hipertrofia do “mercado de idéias” acadêmico, no entanto, parece reduzida aos scholars: é cada vez mais evidente entre os estudantes, inclusive entre os de letras, o desinteresse pela leitura. Não estará esse desinteresse vinculado, também – para além das razões de cunho econômico e sócio-cultural –, a um certo fastio (e aqui a “vanguarda” da crítica, que insinuei antes) motivado pela sobreposição dos “ismos” teóricos todos à própria literatura, à reflexão sobre o contemporâneo, ao estímulo a um pensamento próprio, criativo e, sobretudo, apaixonado? Essa é uma questão que a academia, ao que parece, não tem conseguido responder (talvez porque não a veja como uma questão).

Diante disso, que caminhos buscar? Difícil dizer. Dos lugares aparentemente mais insólitos, porém, podem vir – ainda que como caricatura – algumas pistas. O discurso triunfalista dos especialistas em programas de qualidade total, por exemplo – essa nova categoria profissional, tão mais afinada com o tempo que nos coube viver do que os profissionais de letras –, com previsível e redundante freqüência, não cansa de repetir que o ideograma chinês representativo de “crise” é o mesmo utilizado para representar “oportunidade”. Parafraseando os arautos da eficiência, talvez devêssemos, no nosso caso vernáculo e literário, lembrar que “crise” e “crítica” compartilham a mesma origem etimológica e, mais ainda, na esfera acadêmica, fundem-se, homogênea e definitivamente, na essência, mesma, do trabalho que lá se faz (ou se deveria fazer). Num ensaio sobre os descaminhos da crítica, João Alexandre Barbosa vai além: para ele, “(...) crise e crítica não apenas têm o mesmo étimo, a mesma origem na linguagem, como fazem parte de um processo maior de reflexão sobre as próprias relações entre o homem e a mulher e a realidade. Neste sentido, a crise que se nomeia é o resultado da crítica a que se submete essa ou aquela maneira de relacionamento com o mundo. É por isso que se chega mesmo ao paroxismo em se falar de uma crise da crítica. Nada mais natural, portanto, que se fale de uma crise da literatura e, mais naturalmente ainda, de uma crise da crítica literária e, por extensão, de uma crise do ensino da literatura” (8).

O que não é natural, nesse contexto, é tomar como nocivo o que é índice de saúde. A crise, mais do que necessária, é algo inerente (e, portanto, inescapável) ao processo de reflexão e de crítica, e se há algo de danoso, nesse processo, é justamente a recusa a assumir radicalmente a instabilidade e a incerteza decorrentes dele. O papel do crítico acadêmico – não só na condição de crítico, mas também, e sobretudo, na de professor – deve ser da mesma natureza que o da própria arte e o da literatura: aceitar e instaurar o instável, trafegar no risco, abrir fissuras no “real” e na percepção condicionada que temos das coisas. O poder latente da literatura de forjar a realidade, de se inserir no substrato inconsciente da humanidade – e adjetivos como dantesco, kafkiano ou surreal, disseminados na fala cotidiana, são apenas um pálido exemplo disso –, de recuperar, enfim, o humano em nós, é algo demasiadamente grande para ser dispensado tão apressadamente pela lógica cínica e utilitária do mercado. Por estar ligada à fantasia, ao hábito ancestral da fabulação, a literatura, longe de ser um produto supérfluo ou secundário, é, como belamente resume Antônio Cândido, “um direito humano fundamental” (9).

Sem dúvida, a sobrevivência da literatura no atual milênio dependerá, fundamentalmente, de sua própria vitalidade, da manutenção de sua capacidade de continuar gerando significados. À crítica, no entanto, caberá o papel mais do que nunca necessário de perceber e afirmar, em meio a crescente e incessante rarefação do pensamento que nos acomete, não só o caráter indispensável da literatura em sua condição, como diria Italo Calvino, de “um equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs” (10), mas, principalmente, as individualidades, os autores e obras que, surgidos no momento presente, persistirão, ainda que como ruído, questionando e pondo em xeque as certezas de um mundo cada vez mais desumanizado. Isso impõe, necessariamente, uma mudança de paradigmas, um aparato crítico suficientemente aberto e movediço que se permita abdicar de categorias que, se eram as adequadas para interpretar o romance tradicional, já não servem para absorver uma literatura que se caracteriza, justamente, por elementos contrastantes àqueles do romance tradicional, por elementos que se fundamentam na instabilidade do relato, no hibridismo das formas, na indeterminação dos gêneros. Mais, então, do que o olhar posto no retrovisor ou, ao contrário, na luneta, na esperança de ver, adiante, o que ainda não está aqui, se exigirá do crítico uma visão de 360º que, percorrendo o passado, mas sem nele se deter, possa olhar para os lados, para o presente, e vislumbrar, a partir dele, sem adulterá-lo ou diminuí-lo, o futuro.

Abri essas notas citando uma passagem de Will Eisner. Gostaria de fechá-las tomando uma outra afirmação sua, agora não mais através de um personagem, mas por via de uma sua profissão de fé. Adotada por críticos literários, talvez possa contribuir para a feitura de críticas – também elas – mais literárias e apaixonadas:

“É fundamental que eu relate de maneira emocionada o que desenho e escrevo; parte do meu trabalho e do que tento transmitir depende disso” (11).

NOTAS

(1) EISNER, Will. No Coração da Tempestade. Tradução não creditada. São Paulo, Editora Abril, 1996, p.215.

(2) Cf. “Bonassi faz poesia de gente comum”. Folha de S. Paulo, Mais!, São Paulo, 28 mar. 2000, p.5.

(3) Cf. a matéria de Ivan Finotti: “Editoras recebem Machado, não reconhecem e recusam”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 21 de abril de 1999, p.4-1.

(4) Cf. “O livro inexistente”. Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 1º de maio de 1999, p.4.

(5) BOPP, Raul. Carta a Jorge Amado e Echenique. In: Poesia Completa de Raul Bopp. Organização e comentários: Augusto Massi. Rio de Janeiro, José Olympio/São Paulo, Edusp, 1998, p.196.

(6) ENZESBERGER, Hans Magnus. O crepúsculo dos resenhistas. In:__. Mediocridade e Loucura e outros ensaios. Trad. Rodolfo Krestan. São Paulo, Ática, 1995, p.41.

(7) Cf. STEINER, George. Linguagem e Silêncio. Ensaios sobre a crise da palavra. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

(8) BARBOSA, João Alexandre. “Os novos centuriões”. In: Cult, São Paulo, nº10, maio-1998, p.16.

(9) Cf. a entrevista de Antônio Cândido a Flávio de Azevedo e Souza, Flávio Loureiro Chaves e Luís Augusto Fischer publicada na revista Porto & Vírgula, Porto Alegre, nº2, maio/junho – 1991.

(10) CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. In:__. __. Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.13.

(11) “O nome do jogo, o mais novo trabalho de Will Eisner”. Entrevista de Will Eisner a Ricardo de Souza. Valor Econômico, São Paulo, 27 de setembro de 2002.

Júlio César de Bittencourt Gomes é colaborador de Triplov, professor, doutor em literatura brasileira pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance O Quieto Animal da Esquina, de João Gilberto Noll, seguido de anotações.