JOSÉ SARAMAGO

«Caim»
Por Pilar del Río

Li várias vezes, traduzi-o inclusivé para castelhano, o último romance de José Saramago “Caim”, uma fábula humana, tão humana que pensei que iria provocar perguntas humanas. Para minha surpresa, tal não ocorreu.

De imediato, uma parte da sociedade começou a falar de Deus e da Bíblia, corrente de ar fresco que se agradece se tivermos em conta o teor de outras polémicas, mas ninguém assinalou o que do meu ponto de vista é essencial neste livro: que o género humano não é de fiar. Sim, os seres racionais, os que levantam edifícios, constroem pontes e compõe sinfonias, esses mesmos que declaram guerras por um território, por um capricho, por uma bandeira ou por um Deus nasceram loucos e loucos continuam a viver tantos milénios depois de Adão e Eva ou do Big Bang, chame-lhe cada um o que queira. Só a gente sem sentido se pode atribuir a autoria das fábulas religiosas que povoam a terra até aos dias de hoje, porque todas as civilizações se organizam em volta de uma divindade e todas elas se baseiam no sacrifício e no sangue. Se é verdade que em Creta o ritual levava donzelas virgens ao minotauro, e que as civilizações pré-colombinas realizavam sacrifícios humanos para aplacar a ira dos deuses, como tantos povos africanos, o ranking da exigência sacrificial é ganho pela religião que apresenta o seu próprio Deus executado numa cruz após ter padecido terríveis torturas que o levaram até a suar sangue.

Que atracção mórbida têm os homens para inventar, ao longo dos tempos, religiões terríveis a que logo se escravizam? Que paixão aturdiu a humanidade levando-a a impor-se a si mesma códigos e proibições canalhas, ameaçar-se com fogos eternos, condenar-se absurdamente por toda a vida, centrar a existência em tabus alheios ao sentido comum e fazer de normas desumanas guias de conduta e de condenação? Sim: os chamados seres racionais estão loucos, por isso talvez não mereçam a existência. Essa é, em meu entender, a síntese do romance de Saramago, uma perplexidade que se afirmou em cada leitura: Não somos de fiar, Caim tinha razão ao executar o seu plano se nós seres humanos somos tão crueis, tão maus, tão aborrecíveis, que quando queremos inventar um ser superior temos que o carregar de sangue, ódio, morte, renúncia, sacrifício. O rancor do Deus da bíblia é o rancor que os humanos inventaram, dado que foram os seres humanos que propuseram as diferentes figuras divinas. E a crueldade, a velhacaria, o ardor guerreiro e o espírito de vingança são construções humanas a que se deu corpo legal e religioso para, de seguida, submeter-se com uma ligeireza insuportável. “Escravos de um Deus fictício” escreveu alguém, e é verdade: seja no Islão, nas religiões africanas ou ameríndias, no judaísmo, no cristianismo nas suas distintas variantes ou noutras confissões, em todas estão os códigos e o pecado. Numas impõem burkas, noutras proíbem fazer amor sem passar por um altar, e lapidam na vida terrena ou condenam à eternidade se se tratam com uma transfusão ou se investigam com células-mãe. E todas estão convencidas da sua excelência, da sua legítima capacidade para condenar, por exemplo, os homossexuais - todas as religiões têm uma fixação com o sexo, o que demonstra quão humanas são - e todas se sabem e sentem superiores. Nenhuma vê ridículos e fátuos os seus rituais, embora não entenda os dos vizinhos, são bárbaros uns para os outros, nunca amigos, nunca próximos: no universo religioso é onde mais claramente fica demonstrado que os humanos ao longo da sua passagem pelo mundo procuraram sempre motivos para o confronto e que, como ficou dito, a religião é um dos maiores, a par da bandeira e do território, três grandes falácias para dividir uma mesma espécie. Três grandes fraudes.

Deus é de fiar? Deus não existe fora das cabeças dos homens, logo são os homens os que não são de fiar, nem eles nem as suas obras. Filhos de dogmas e preconceitos, herdeiros de tradições sem sentido, de superstições e de medos, os homens não souberam aproveitar a modernidade para combater o descaramento do irracional. Inclusivé, o homem ocidental, o que se crê centro do mundo e dono dos melhores conceitos, revolve-se intranquilo se alguém, como Saramago, e não só, questiona supostas verdades reveladas. Isso sim, defende a sua interpretação com ar de superioridade, partindo da certeza de saber-se melhor que outros, que condenam com a fatwa, apenas porque há dois séculos que no Ocidente se acabaram os julgamentos da Inquisição e os anátemas não são queimados na praça pública. Barbárie que continua a existir noutros lugares do mundo, também humanos, estados teocráticos, onde povos vivem oprimidos por leis atribuídas a Deus, por lendas e contos escritos, uns após outros, por homens sem misericórida, com o mesmo afã dominador e predador.

O romance de Saramago não é contra Deus. Lamento contrariar os que assim pensam. Saramago, na sua ficção, volta a escrever um ensaio sobre a cegueira. A humana cegueira que, para além de impedir a visão, impede que haja claridade no mundo, que este planeta perdido no universo seja um lugar sem luz e sem outros belos dons que nos fariam mais livres e felizes. Os homens inventaram Deus e agora parece que esperam que o mesmo Deus os salve porque, enfrentando-se entre eles e com os seus medos, não são capazes de desmontar esta rede de artifícios e dizer “já chega” de escravidão e estultícia. Sigamos então por caminhos marcados por lendas, com interpretações simbólicas ou não, mas tenhamos ao menos a decência de atribuir-nos a sua autoria: a de havermos criado a divindade e toda a dor e sacrifício que os deuses supostamente impuseram ao mundo. À imagem e semelhança do ser humano.

Pilar del Río

Jornalista

Artigo publicado no Diário de Notícias a 29 de Outubro de 2009

José Saramago nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, concelho de Golegã, no dia 16 de Novembro de 1922, embora o registo oficial mencione o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele ainda não perfizera três anos de idade. Toda a sua vida tem decorrido na capital, embora até ao princípio da idade madura tivessem sido numerosas e às vezes prolongadas as suas estadas na aldeia natal. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que não pôde continuar por dificuldades económicas.

No seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico, tendo depois exercido diversas outras profissões, a saber: desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance ("Terra do Pecado"), em 1947, tendo estado depois sem publicar até 1966. Trabalhou durante doze anos numa editora, onde exerceu funções de direcção literária e de produção. Colaborou como crítico literário na Revista "Seara Nova".

Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do Jornal "Diário de Lisboa" onde foi comentador político, tendo também coordenado, durante alguns meses, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direcção da Associação Portuguesa de Escritores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do "Diário de Notícias". Desde 1976 vive exclusivamente do seu trabalho literário.

Prémio Nobel da Literatura, 1998