Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, I
CAPITULO VI

Terceira utilidade.

Finalmente (e é a terceira e não menor utilidade desta História), lendo os príncipes da Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão já escolhidas por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhas e maravilhosas felicidades, lendo, digo, no discurso da História do Futuro, as vitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o domínio e sujeição de nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e confiança das mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sendo certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fiador a palavra divina, nenhuma razão haveria no Mundo que se atrevesse a aconselhar, nem ainda temeridade que se arrojasse a empreender a desigualdade de tamanhas guerras e a desproporção de tão imensas conquistas. Mas as promessas e as disposições divinas, antecedentemente conhecidas na previsão do futuro, tudo facilitam e a tudo animam.

Para testemunho desta tão importante verdade e alento dos que a lerem, porei aqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas um e outro os maiores que até hoje se viram no Mundo.

Tinham vindo sobre o povo de Israel os exércitos dos Filisteus com trinta mil carros de guerra e tanta multidão de soldados, que não só compara a Escritura Sagrada q número deles com o da areia do mar, senão com a areia muita: ...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os Israelitas, reconhecendo sua desigualdade para resistir a tão superior e excessivo poder, diz o mesmo texto que se tinham escondido pelas brenhas, pelas montanhas, pelas covas, pelas grutas, pelas cisternas e por todos os outros lugares mais ocultos e secretos que .sabe inventar o medo e a necessidade.

.Neste estado de horror e miséria sai de noite o príncipe Jónatas, filho de el-rei Saul, trata de consultar a Deus por um modo de oráculo ou sorte, a que os Hebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência divina naquele tempo costumava responder e significar os sucessos futuros; e encaminhando para os alojamentos do inimigo, disse assim ao seu pajem da lança, que só o acompanhava:

— Se quando formos sentidos do exército dos Filisteus, disserem as sentinelas: — Esperai por nós — é sinal que responde Deus que paremos, e que não convém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para cá — é sinal que responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em nossas mãos, e que havemos de prevalecer contra eles.

Ajustados os sinais nesta forma, prosseguiram seu caminho, chegaram perto e foram sentidos. As sentinelas que deram fé dos dois voltos, falaram entre si, concordando em que eram hebreus dos que estavam metidos pelas covas; levantaram a voz e disseram para eles:

— Vinde cá, que temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, para que Jónatas entendesse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma, cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram os soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem os Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha, bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.

A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.

Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.

Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo o sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.

As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:

— Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principa

desse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram GS soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem GS Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.

A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.

Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.

Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que, entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo D sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem, senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.

As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:

— Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principatus sacerdotii functus est. Nam per somnium in hujus modi eum habitu conspexi, adhuc in Dio civitate Macedoniae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse Asiam vincere, incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem. Nam per se ducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam: ideoque neminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens visionis et probutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar Divino iuvamine me directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum. Propterea et omnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confido.

No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela do cap. VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.

Nestas duas figuras é certo que estava profetizado, na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos, que no princípio esteve unido em uma só pessca, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com o nome de Imperador da Ásia.

Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universae terrae.

Em seguimento e confiança destas profecias, partiu Alexandre vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo ao seu império, passando o Tauro e o Cáucaso e chegando até os fins do Ganges e praias do mar Índico, que eram então os últimos da terra de onde Hércules e o padre Líbero os tinham colocado.

Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações que venceu e sujeitou Alexandre com a fama mais que com a espada; porque, entrando da volta desta jornada em Babilônia, achou nela os embaixadores de África, de Cartago Espanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais províncias, em obséquio e reconhecimento de sua potência, se lhe mandaram sujeitar e entregar espontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já naquele: tempo famoso no Mundo), como é autor Clitarco, referido e louvado por Plínio no liv. III da História Natural. Tudo certifica ainda com palavras maiores o mesmo Texto Sagrado no exórdio do I Liv. dos Macabeus, dizendo: ...percussit Alexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem Persarum et Medorum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones, et interfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit spolia mulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.

Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é a desigualdade do poder e o limitado aparato de guerra com que entrou em tão imensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves autores, saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa moeda quarenta e dois mil cruzados.

Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas maravilhas, com que mereceu o nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse visto a si mesmo melhor retratado nas profecias de Daniel, do que depois se viu nas estátuas de Lisipo nem nas pinturas de Apeles, não é muito que, animado e soprado do espirito das mesmas profecias e cheio da majestade delas, se atrevesse a tão árduas e dificultosas empresas, das quais justamente se duvida (como pôs em questão Justino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.

E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem pôde advertir nenhum dos historiadores de Alexandre, sendo tantos e tão excelentes), de aqui, digo, se pode desculpar aquela mais temeridade que audácia (qualidade, posto que honrosa, indigna de um general prudente e muito mais de um rei, quando conquista o alheio e não defende o próprio), com que Alexandre empenhava sua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos por cousas leves, sendo a confiança ou o seguro de todos estes arrojamentos, não o domínio que ele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub potestate habuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a previsão e presciência de suas futuras vitórias e do império que lhe estava prometido, e havia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de Daniel. E como tinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou por três escrituras, e ao mesmo Deus por fiador de sua palavra e promessas, fé era e não audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigos para conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seus soldados para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe o ser Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!

Os exemplos que temos domésticos desta mesma utilidade, não são menos admiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das luas de Ismael, e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de Guadiana com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses, e seu valoroso príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho ermitão, intérprete da Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvido e conhecido, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tão expressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorrido o animoso capitão e fortalecido o pequeno exército com esta promessa do Céu, sem reparar em que era tão desigual o partido, que para cada lança cristã havia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.

Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido a profecia, acomete de fronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa.

Isto obraram as profecias daquela noite na guerra, mas ainda mostraram mais os poderes de sua influência na conquista. Quem duvida que foram mais estendidas e gloriosas as conquistas dos Portugueses que as de Alexandre Magno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grande historiador ...Oriente perdomito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas cutiebut, impleret. «Domado o Oriente e navegado o Oceano, cumpriu e encheu Alexandre tudo o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira as navegações dos Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmo Oriente? Obrigação tinha em boa consequência de lhes chamar imortais. Não chegaram os Portugueses só às ribeiras do Ganges, como Alexandre; mas passaram e penetraram adiante muito maior comprimento e terras do que há do mesmo Ganges a Macedônia, donde Alexandre tinha saído.

Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?

Mas não obraram todas estas proezas aqueles portugueses famosos por benefício só de seu valor, senão pela confiança e seguro de suas profecias. Sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem seu nome e fundarem seu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta fé os animava nos trabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz do futuro era o norte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme, que nas mais desfeitas tempestades os tinha seguros.

Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de Portugal na nossa terra que nas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram nos naturais que resistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a tormenta de contradições populares , e de todo o Reino, que por espaço de dez anos padeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande cronista da Ásia, no IV cap. do I liv., e conhecerá quantas obrigações deve Portugal e o Mundo ao sofrimento, valor e constância do Infante D. Henrique, filho de El-Rei D. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como religiosíssimo príncipe que era, e nela principalmente pretendia a glória de Deus, dilatação da Fé e conversão da Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar.

Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele tempo. Com este oráculo divino mais fortalecido o espírito do Infante, não só pôde romper e abrir as portas tão cerradas do Oceano e deixá-las francas e patentes aos que depois vieram, vencidas as primeiras e maiores dificuldades, mas dar animo, valor, guia e esperança aos que, seguindo seu exemplo e empresa, a levaram ao cabo. Desta maneira o Infante D. Henrique, que será sempre de feliz memória, nos ganhou com sua constância as conquistas, conquistando-as primeiro em Portugal, do que fossem conquistadas na África, Ásia, América, e contrastando com igual fortaleza o indômito furor do segundo e quarto elemento (que são o mar e o fogo), que não pudera conseguir sem o socorro da luz do Céu, animado nas contradições e contrariedades presentes com o conhecimento e certeza dos sucessos futuros, para que até nesta parte deva Portugal as suas conquistas aos lumes e alentos da profecia.

Finalmente, esta última resolução que no ano de quarenta assombrou o Mundo, posto que muito a devamos à ousadia do nosso valor, muito mais a deve o nosso valor à confiança de nossos vatícinios. Que valor sesudo, prudente e bem aconselhado se havia de atrever a uma empresa tão cercada de dificuldades, como levantar-se contra o mais poderoso monarca do Mundo, e restituir-se à sua liberdade, e aclamar novo rei, não longe senão dentro de Espanha, um reino de grandeza tão desigual, sobre sessenta anos de cativo e despojado; sem armas, sem soldados, sem amigos, sem aliados, sem assistências, sem socorros, só e até de si mesmo dividido em tão distantes partes do Mundo? Mas como havia outros tantos anos que a profecia estava dando brados aos corações, em que nunca se apagou o amor da Pátria, e a saudade do rei, e o zelo da liberdade, dizendo e publicando a todos que o desejado tempo dela havia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei seria levantado; a promessa que sempre a conservou nos corações, a levantou a seu tempo nas vozes, e ela foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátria aos Portugueses, e Portugal a si mesmo; e este seja entre todos o maior exemplo, assim das nossas guerras como das nossas conquistas, pois tudo o que tínhamos vencido e conquistado em quinhentos anos, alentados das promessas do Céu, o pudemos restaurar um dia.

E se tanto tem valido e importado a Portugal o conhecimento de seus futuros, em todos os casos maiores que podem acontecer a um reino; se debaixo desta fé nasceu, quando recebeu a coroa. se debaixo desta fé cresceu, quando lhe acrescentou as conquistas; se debaixo desta fé se restaurou, quando as restituiu a elas e se restituiu a si mesmo, oh! quanto mais necessário lhe será a Portugal, e quanto mais útil e importante esta mesma fé e conhecimento de seus futuros sucessos para aquelas empresas novas, e muito maiores, que nos tempos que hão-de vir (ou que já vêm) o esperam! Não se poderá compreender a grandeza e capacidade desta importância senão depois de lida toda a História do Futuro, na qual só se medirá bem a imensidade do objeto com a desigualdade do instrumento.

Mas quem quiser desde logo fazer de algum modo a conjectura desta desproporção, tome os compassos a Portugal e ao Mundo, e pergunte-se a si mesmo se se atreve a igualar estes paralelos. É porém, tão poderoso contra todos os impossíveis o conhecimento e fé do que há-de ser representado no espelho das profecias, que nenhuma empresa pode haver tão desigual, nenhuma tão armada de perigos, nenhuma tão defendida de dificuldades, que debaixo do escudo desta confiança se não intente, se não avance, se não prossiga, se não vença. Da conquista espiritual do Mundo se pode fazer bom argumento para a temporal, pois é mais forte a guerra e mais dura resistência a dos entendimentos que a dos braços.

Quis Deus que a Igreja, que é o seu reino, fundada pelos Apóstolos, se estendesse por seus sucessores em todo o Mundo; e quais foram as armas com que Deus os fortaleceu para que não temessem ou duvidassem a empresa e se dispusessem animosamente a tão estranha conquista?

Advertiu com profundo juízo Primásio que fora o Apocalipse de S. João, porque, lendo os soldados evangélicos naquelas profecias quão largamente se havia de propagar a mesma Igreja e quão prodigiosas vitórias havia de alcançar a Fé contra todos os inimigos, este mesmo conhecimento os animava a quererem ser (como foram) os instrumentos gloriosos delas. Segurou-lhes Deus as vitórias, para que não duvidassem cometer as batalhas: Post exortum autem Ecolesiae, quae jam fuerat apostolorum praedicatione funduta, revelari oportuit — diz Primásio — qualiter esset latius propaganda, vel quali etiam fine contenta, ut praedicatores veritatis, hujus cognitionis fidutia freti, indubitanter aggrederentur pauci multos, inermes armatos, humiles superbos, infirmi nobiles, vivi tamen spiritualiter mortuos. Não se pode dizer, nem mais certa, nem mais elegantemente, se exceptuarmos a desproporção de poucos a muitos, pauci multos. Em todas as outras considerações foi mais desigual esta empresa que as que eu prometo ou hei-de prometer; e se a esta se atreveram poucos homens sem armas, sem estimação, sem nobreza, sem poder, contra tantos armados arrogantes, nobres e poderosos, só porque no conhecimento das profecias tinham segura a felicidade e fim da empresa, porque se não atreverão à mesma empresa, e na confiança das mesmas profecias, aqueles em quem o poder se iguala com as armas, as armas se ilustram com a nobreza e a nobreza compete com a estimação e com a fama, ainda que sejam poucos contra muitos?

E digo na confiança das mesmas profecias, porque uma boa parte da nossa História (como veremos em seu lugar) são as do mesmo Apocalipse. Lerão os Portugueses, e todos os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigioso livro do futuro, e com ele embraçado em uma mão e a espada na outra, posta toda a confiança em Deus e em sua palavra, que conquista haverá que não empreendam, que dificuldades que não desprezem, que perigos que não pisem, que impossíveis que não vençam?

Ao conhecimento antecedente dos futuros chamou discretamente S. Gregório escudo fortíssimo da presciência, em que todas as adversidades e golpes do Mundo se sustentam, se reparam e se rebatem: Et nos tolerabilius mundi mula suscipmus, si contra haec per prtescientiae clypeum munimur. Que vem a ser esta nossa História do Futuro, senão escudo da presciência - praescientia, clypeum? Armados com este escudo, que trabalhos, que perigos nos pode oferecer o mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode atirar com todas as forças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? Quem haverá que debaixo deste escudo não empreenda as mais dificultosas conquistas, nem aceite as mais arriscadas batalhas, e não vença e triunfe dos mais poderosos inimigos, se as empresas no mesmo escudo vão já resolutas, as batalhas vão já vencidas e os inimigos já triunfados?

Fingiu o príncipe dos poetas latinos, que pediu Vênus, mãe de Eneias, ao deus Vulcano lhe fabricasse umas armas divinas, com que entrasse armado na dificultosíssima conquista de Itália, com que vencesse os reis e sujeitasse as nações belicosíssimas que a dominavam, com que vitorioso fundasse naquelas terras o famosíssimo Império Romano, que pelos fados lhe estava prometido. Forjou Vulcano as armas, e no escudo, que era a maior e principal peça delas, diz que abriu de subtilíssima escultura as histórias futuras das guerras e triunfos romanos, compondo e copiando os sucessos pelos oráculos e vaticínios dos profetas e pelas notícias próprias que tinha, como um dos deuses que era participante dos segredos do supremo Júpiter.

...Clypei non enarrabile textum
Illic res Italas, romanotumque triumphos,
Haud vatum ignarus, venturique inscius aevi,
Fecerat igni potens: illic genus omne futurae
Stirpis ab Ascanio, purgnataque ordine bella.

(Virgílio, Aeneid . 8. )

O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem; e achou o mais levantado e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético, que para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilatado império, nenhuma arma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de animo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e sabedoria divina, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Enéias ; e este mesmo escudo, não fabuloso, senão verdadeiro, e não fingidos depois de experimentados os sucessos, senão escritos antes de sucederem, é propriamente, e sem ficção, o que nesta História do Futuro ofereço, Portugueses, ao nosso rei.

Dobrado de sete laminas dizem que era aquele escudo; e também o da nossa História, para que em tudo lhe seja semelhante, é publicado em sete livros. Nele verão os capitães de Portugal, sem conselho, o que hão-de resolver; sem batalha, o que hão-de vencer; e sem resistência, o que hão-de conquistar. Sobre tudo se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como em espelho, para que, com estas cópias de morte-cor diante dos olhos, retratem por elas vivamente os originais, antevendo o que hão-de obrar, para que o obrem, e o que hão-de ser. para que o sejam.