OS 160 ANOS DE EÇA DE QUEIROZ
Aluízio Falcão

Há 160 anos, em Póvoa de Varzim, Portugal, nascia José Maria Eça de Queiroz, o maior prosador em nosso idioma. No sesquicentenário as comemorações foram muitas, especialmente aquelas promovidas pelo Centro de Estudos Portugueses da USP. Vamos ver o que se fará neste fim de 2005 para marcar um acontecimento que tanto influiu na modernização da escrita luso-brasileira, desde o século 19 até os dias de hoje.

Os textos de Eça ressurgem vez por outra em adaptações da nossa tevê. Em 1988, a Rede Globo exibiu a minissérie O Primo Basílio e em 2001 Os Maias, também recontada por Maria Adelaide Amaral. Embora transmitida em horário inconveniente, este último seriado promoveu sucessivas reedições impressas do romance de 1888. Para surpresa geral o título chegou à lista dos livros mais vendidos no Brasil em começos do século 21.

Nunca será demais homenagearmos Eça de Queiroz no Brasil. Tivemos relações tumultuadas, ruidosos mal-entendidos. Levamos a sério juvenilidades que ele publicou nas Farpas, em dupla com Ramalho Ortigão. Naquelas páginas imaturas Eça ridicularizou o imperador Pedro II em visita a Portugal, riu sarcasticamente do estereótipo do brasileiro. Houve rebuliços por aqui. Depois, ele se tornou grande amigo do nosso país e de brasileiros como Eduardo Prado, Olavo Bilac e Domício da Gama. Colaborou, durante 16 anos, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.

Os seus gestos conciliadores não aplacaram ressentimentos neste lado do mar. Houve até um caso de grosseria explícita, cometida por ninguém menos que o sempre cordato Machado de Assis. Do alto de sua obra incompleta (ainda não tinha escrito Dom Casmurro, nem Memórias Póstumas de Brás Cubas) Machado fuzilou dois livros superiores de Eça: O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Do primeiro, insinuava ser um plágio de La Faute de l'Abbée Mouret, de Zola; do segundo, maiores cobras e lagartos, incluindo a acusação de pornografia.

Pingando aqui e acolá umas gotinhas de mel, como a de reconhecer o talento do colega português, Machado se pôs em armas na defesa dos costumes. Disse até que se negava a exemplificar os trechos imorais do romance para não "agravar o que há neles de desvendado e cru". Cortar algumas cenas, em sua opinião, também não adiantaria. O Primo, para ele, era um mar de lama: "Não poderíamos eliminar o tom do livro. O tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas." E, como se não bastasse, esta sentença fulminante: "...viva pintura dos fatos viciosos: essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras, eis o mal."

O escritor brasileiro prometera concluir em outros artigos a sua crítica demolidora, embora oblíqua e dissimulada, com alguns afagos ao poder narrativo do português. Eça prometeu que aguardaria o fim do tiroteio para responder: "Não em minha defesa pessoal (eu nada valho), não na defesa dos graves defeitos dos meus romances, mas em defesa da escola que eles representam e que eu considero como um elevado fator de progresso moral na sociedade moderna." Mas, por algum motivo, não voltou ao assunto. Restou provado que O Crime do Padre Amaro não foi plágio e O Primo Basílio passou à história como um dos livros mais desafiadores da sempre hipócrita moral pequeno-burguesa. Machado viria, na maturidade, a igualar-se ao criticado no patamar da excelência e deixaria em paz a arte alheia.

Para Eça, o mais severo crítico de si mesmo, as deficiências de suas obras eram outras. Quando concluiu Os Maias informou em carta a Oliveira Lima ter produzido "uma coisa extensa e sobrecarregada" e que recomendava somente a leitura de alguns episódios "bastante toleráveis". Assim julgava o livro que lhe custara dez anos de trabalho e que hoje é considerado por muitos como um dos melhores romances do século 19.

Uma incursão à correspondência de Eça de Queiroz é recomendável para identificarmos traços fundamentais do seu perfil de escritor: a extremada paixão pelo ofício, o zelo pela forma, a maneira cordial de avaliar os outros. Alguns trechos:

"Que há de melhor do que sentar-se o ser vivo a uma mesa - de ébano ou de pinho - e aparando a pena, compor as linhas e à petites plumêes, alguma fina sutileza de arte ou de crítica? Não há nada melhor." (carta a Ramalho Ortigão, 1873).

"Como artista, desejaria também que você me arranjasse outro final. Nós somos latinos, e gostamos de que a música termine por um bom ribombo de tambores. O livro termina bruscamente e com um ar de cansaço... quer-se uma página larga, de grande cor, com um bocado de soluço pelo meio, fazendo arfar o costado das frases." (carta a Ramalho Ortigão sobre os originais do livro A Holanda, em preparo - 1885).

"Você deu um magnífico bocado de prosa. E nada melhor do que a sagacidade e ductibilidade com que você se mete por dentro da obra e finalmente surpreende nela os instintos do obreiro. Eu por mim, salvo o respeito que lhe é devido, não admiro pessoalmente A Relíquia. A estrutura e composição do livreco são muito defeituosas... falta-lhe ser atravessado por um sopro naturalista de ironia forte, que daria unidade a todo o livro." (carta a Luis de Magalhães a respeito de elogios ao romance A Relíquia - 1887).

Por fim, este lamento irônico, em carta ao Conde de Arnoso, em 1897, (três anos antes de morrer) sobre a luta para destacar-se literariamente em língua portuguesa: "Todo o meu erro foi, quando era moço e forte, não estabelecer uma mercearia, para o que aliás tenho jeito e gosto. Estava agora gordo e sossegado como o toucinho que cobriria o meu balcão, e quando tu, por lá aparecesses, eu diria com deliciada superioridade: 'Oh, senhor Conde, temos agora aí um queijinho que é de se lhe arrebitar a orelha.' E seria o céu aberto. Mas enfim, agora é tarde para chorarmos sobre carreiras erradas..."

Em sua luta pelo aperfeiçoamento da forma, Eça de Queiroz escrevia sempre à mão e de pé, fumando um cigarro após outro, andando pelo escritório, falando sozinho. Depois de fazer e refazer a escrita, quase interminavelmente, ainda exigia provas tipográficas a serem obsessivamente corrigidas.

José Saramago, quando se rendeu à tecnologia digital, depois de muito anos usando caneta e máquina de escrever, declarou-se fascinado com o processador de textos. Porém, disse ele, muito mais fascinante era contemplar uma prova corrigida por Eça de Queiroz e perceber que, de 20 linhas impressas, sobravam uma linha e meia. O resto fora modificado para melhor.

Tanto esforço resultou numa construção imortal. A obra do "pobre homem da Póvoa de Varzim", como ele se definia, é tão permanente e próxima de nós que no dia 25 de novembro poderemos comentar, distraidamente, como se ele estivesse vivo: "Hoje o amigo Eça faz aniversário..." E à noite abrir o livro de capa vermelha que foi do nosso pai e recomeçar pela enésima vez: "A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete."

 
Fonte: O Estado de S. Paulo, 12 out. 2005