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CECÍLIA BARREIRA
(UNL)
ALMADA NEGREIROS E A "REVISTA PORTUGUESA" (4)
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IV. A Utopia Política: A Latinidade
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A Utopia para além de designar um espaço desejável e impossível preenche os voos do imaginário que mais soltos e imprecisos se adivinham. Na Revista Portuguesa aparentemente não existe lugar para a imaginação do futuro: um articulista nos poderá reter alguma atenção se prosseguirmos e teimarmos na leitura dos longos editoriais de cariz político-ideológico. Augusto da Costa, «apóstolo» da Latinidade, o autor do Crepúsculo dos Deuses (1933, edição grada ao então recém-instalado salazarismo), reúne em 1923 um conjunto de estudos sobre Latinidade e Germanismo que publica em fascículos na Revista Portuguesa.

Uma questão se poderá colocar a uma primeira abordagem: porquê chamarmos espaço de utopia aos devaneios teóricos de Augusto da Costa? Na realidade, apesar do cientificismo e da objectividade que o autor pretende inculcar ao seu discurso, trata-se de uma incursão, nem original nem particularmente rica, numa visão utópica de Portugal de que António Sardinha era um dos principais animadores. Em suma, é um ideário que participa de um saudosismo de impérios havidos, mas que obstinadamente se pretende reconstruir no presente-futuro, com base em teorias de um critério algo falível. Adiante. Percorramos as etapas desse labirinto:

Latinidade e Germanismo. Augusto da Costa não nos define com exactidão a Latinidade. Subentende-se, isso sim, que povoa um espaço/tempo/memória que pré-existe e que fundamenta o Ser de uma Raça (a Raça Latina). Como numa peça clássica, diálogo de confrontos radicalizados e antagónicos, a Latinidade representa genericamente o Bem e o Germanismo, o Mal. A Civilização Latina construiu-se na Perfeição, na Ordem, na Beleza. O Germanismo pressupõe um dos mais negros destinos da humanidade: o individualismo, ao qual se devem os maiores e mais terríveis desatinos (como por exemplo as revoluções contemporâneas, a desobediência, e a indústria - o progresso técnico).

Não nos será difícil prefigurar o cenário: de um lado, as instituições gradas nas Idades Médias (as Cortes, a Monarquia sólida, as Corporações de Ofícios); do outro, a indústria moderna, agitada e preocupante, o operariado, e parlamentarismo, o direito à discordância.

Mais: «O sentido da ordem é especificamente latino». As leituras de António Sardinha assim o indicavam: o latino é uma pessoa ; o germano é um indivíduo . O tomismo legava como herança a categoria de pessoa face à qual o espírito da Reforma se insurgiria.

As conclusões surgem com a fluência de quem desdobra verdades feitas. Do panteísmo inato dos germanos deduz-se o pangermanismo: daí a ameaça ao mundo Ocidental e à Latinidade (integrando Portugal, Espanha, França, Itália) face às trevas da Alemanha de Lutero - o «odioso» demónio contra o qual Augusto da Costa tece considerações a rigor.

Em Augusto da Costa a visão da sociedade enquanto um todo orgânico é ainda uma herança do darwinismo social de oitocentos: o mercantilismo, o dinheiro, a indústria são factores de corrupção. A(s) Tradição(ões) não se compadece(m) com o liberalismo. Também a questão de uma Opinião Pública: para Augusto da Costa a pretensa periculosidade da imprensa encontra-se na sua desinocência.

Isto é, se por um lado a função do jornal enquanto divulgador privilegiado de notícias, na inócua e amorfa objectividade do relato puro e simples, caracteriza o período pré-romântico, após a invasão das ideias do «romantismo político», os jornais transformam-se em agentes activos da informação. Daí a possibilidade de perversão da Opinião Pública, totalmente indefinida, mas ávida de directrizes. Nesta teia de raciocínios compreende-se a importância conferida por Augusto da Costa à elite salvadora que conduzisse os destinos do País no sentido da «ordem». Fernando Pessoa é lembrado no estudo que publicara em 1919 sobre, precisamente, «A Opinião Pública». Lembrados são, também, Quirino de Jesus, Ezequiel de Campos (dois seareiros que viriam a aderir ao Estado Novo), Basílio Teles e Ramalho Ortigão.

Mas aonde convergem os sonhos grandiosos aos quais chamámos (porventura indevidamente...) utopia? Sem se referir uma única vez a Mussolini e ao Fascismo, Augusto da Costa delega em Roma e na Latinidade a possibilidade de vingança da Civilização Ocidental. A Cristandade, em jeito de cruzada, redimindo o Mal, espalhando pelos quatro cantos do Mundo o Bem:

«O império universal de Roma, a que se refere a epígrafe dantesca destes ligeiros estudos, se alguma vez foi abalado, está hoje a refazer as suas forças (...) Não é, portanto, nem para a Roma dos Césares, nem para a Roma dos Reis que o mundo volta os olhos: é para a Roma do Papa, para a Collina Vaticana» (1).

O Papa ocupa, na hierarquia de redentores, um lugar cimeiro: na contenda (imaginária) entre Raças, Deus, enquanto entidade suprema e arbitral, permanece oculto, quase esquecido. Os líderes, mesmo que conferidos de um poder intemporal, têm de ser homens. Quem melhor de que o Papa poderia legitimar a missão da Latinidade?

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(2) Augusto da Costa, «Latinidade e Germanismo/Roma e a Latinidade» in Revista Portuguesa, 25 de Agosto de 1923, p. 8.