Nova Série

 
 

 

 

 

 

BEATRIZ HELENA RAMOS AMARAL

Livro de Beatriz Amaral ilumina a trajetória e a linguagem de Edgard Braga
Por Maria Cecília de Salles Freire César

Passados já quase 112 anos de seu nascimento (10 de outubro de 1897), Edgard Braga, um dos mais inovadores poetas e artistas gráficos do século XX, continua pouco lembrado entre nós, para não dizer quase desconhecido, nas antologias de literatura consultadas por alunos do ensino Fundamental e Médio. Em muitas, seu nome nem sequer aparece; em algumas, ele é só citado, junto com outros, contemporâneos seus, como José Lino Grünewald, Ronaldo Azeredo e Pedro Xisto. Quando se incluem exemplos, geralmente, só os poemas de autoria dos irmãos Campos e Décio Pignatari; encontrei em uma única coletânea o poema Chuva. Traduzido para vários idiomas, em diversas coletâneas dos anos sessenta, acabou se tornando mais conhecido fora do Brasil.

As razões de tal esquecimento? Várias, entre elas certamente está o vestibular, cujo foco distancia-se da poesia concreta. Sabe-se que a maioria das escolas estruturam seus currículos nos programas exigidos pelos grandes vestibulares. E os professores, premidos pelo cumprimento de tais metas, reservam pouquíssimo tempo ao concretismo e outras vertentes poéticas que surgiram depois dos anos 50, como a poesia marginal. Nos cursos de Letras e na Pós-Graduação, o poeta Edgard Braga ainda é pouco estudado e divulgado. Prova disso é que, nas bibliotecas da PUC-SP e da USP, para citar duas importantes universidades paulistas, não se encontra nenhuma dissertação ou tese sobre ele depois de 2005, quando, no programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, sob a orientação de Olga de Sá, foi defendida a dissertação A Transmutação Metalingüística na Poética de Edgard Braga, de Beatriz Helena Ramos Amaral, cuja publicação ora se dá, pela Ateliê Editorial, em sua coleção de Estudos Literários (1).

Antes de 2005, uma única dissertação e uma única tese são escritas em São Paulo, local de residência do poeta alagoano, ambas defendidas na PUC-SP. E delas dá notícia Beatriz Amaral no capítulo dedicado à fortuna crítica. São respectivamente: A poesia mutante de Edgard Braga, de José Aloísio Nunes e Edgard Braga, o jovem poeta das metamorfoses: análise da gênese da linguagem, ruptura e união no processo de criação, uma contribuição ao estudo de identidade, de Maria Cecília Simões de Oliveira Coelho.

É de grande importância, portanto, no atual panorama da crítica, a publicação do trabalho realizado por Beatriz sobre o poeta (e também médico obstetra), com quem teve a oportunidade de conviver e dialogar durante a sua longa existência. Braga se conservou eternamente jovem, segundo depoimentos dados por artistas bem mais novos, com Tadeu Jungle e Walter Silveira, em 1997, quando se celebrou o centenário de seu nascimento, no evento “BRAGA: CEM ANOS”, promovido pela Secretaria de Cultura e organizado pela autora desse estudo.

Como bem observa Augusto de Campos, em um dos textos de apresentação ao livro “Edgard Braga veio a tornar-se um grande companheiro de viagem, integrando, nos anos 60, a página literária e a direção da Revista Invenção. [...]. O resgate de sua obra, ora empreendido por Beatriz Amaral, é mais do que bem-vindo. Ela soube mapear com acuidade o percurso especulativo do poeta, cuja obra, especialmente a mais radical, fulcrada no desenho e na caligrafia, veio a influenciar toda uma geração de poetas, como Walter Silveira, Tadeu Jungle, Arnaldo Antunes” (“Artegrafias de Edgard Braga”, in “A transmutação metalinguística na poética de Edgard Braga”).

Embasada em importantes conceitos da crítica em geral, inclusive da Crítica Genética, em elementos teoria funcionalista de Roman Jakobson e em alguns conceitos os desenvolvidos pelos “formalistas russos”, Beatriz Amaral traça um amplo painel da obra de Edgard Braga, desde seus primeiros poemas, pertencentes à fase verbal, que é marcada pelas influências parnasianas e simbolistas, até a última, caracteristicamente visual, a que Braga deu o nome de tatoemas (e Haroldo de Campos preferiu chamar tactilogramas). Em toda a produção do poeta, a que a ensaísta teve acesso, inclusive textos raros, que nem sequer tiveram publicação. Beatriz constata importante cunho metalinguístico que vai se transmutando ao longo de seis décadas de exercício artístico e essa evolução caracteriza-se, na terminologia cunhada pela estudiosa, por duas vertentes: a metalinguagem de expressão e a metalinguagem de construção.

Por metalinguagem de expressão, que caracteriza a fase verbal e discursiva, a reflexão sobre o fazer artístico dá-se sobretudo no plano da expressão, isto é, do conteúdo, do fundo, do sentido, dos efeitos logopaicos, enfim. À medida que sua poesia verbal se mescla com a visual, aproximando-o dos postulados da poesia concreta, passa a se destacar a valorização do espaço branco da folha, o estilhaçamento do verso poético, a exploração de cada grafema e suas sugestões sonoras e visuais (verbi-voco-visuais), isto é, dos aspectos fanopaicos e melopaicos do discurso; então a metalinguagem desloca-se do eixo da expressão para a própria construção poética. Na metalinguagem de construção, que passa a predominar na produção poética a partir da publicação de Soma (1963), o fazer poético, segundo Beatriz, “se conecta à gênese do poema; são noções que se correlacionam.”

Reconhece, na poesia bragueana, a relação de identidade, já apontada por Cassiano Ricardo, entre a fragmentação do verso e a criação do cosmo e da própria poesia. Reconhece, ainda, que a análise de uma obra evidencia algo definido (por Leyla Perrone-Moisés) como uma latência verbal, ou “em outras palavras, o processo de construção e materialização da obra [que] obrigatoriamente nos remete aos postulados da crítica genética.”  Se o criador (seja ele um escritor, um pintor ou um músico) recorre constantemente a seus diários, rascunhos, esboços, e neles encontra a fonte de novas obras, em Edgard Braga, essa revisitação se dá à sua própria obra em que, segundo Beatriz, “alguns de seus poemas funcionam, em relação aos outros, como rascunhos, esboços , fases de uma mesma obra, que constantemente se refaz.”  

A fim de demonstrar ao leitor esse percurso, a crítica se deu a difícil tarefa de selecionar, dentro da vasta e diversificada produção bragueana, 20 poemas mais representativos do que visava demonstrar, desde 1946 (A um poeta modernista, do livro Lâmpada sobre o alqueire) até Caos (do pôster Murograma), de 1982.  O espacialismo, a preocupação com o desenho das letras, recursos que o poeta explora de modo radical a partir da década de 50, no diálogo com os concretistas, já são vislumbrados em alguns dos primeiros livros. O desejo de experimentação, portanto, está na base de toda a sua produção. E, junto a ele, a reflexão constante sobre o fazer poético que Beatriz descreve de modo tão claro e didático ao longo de seu trabalho.

Ao incorporar a lógica relacional dos ideogramas chineses e buscar o máximo efeito no mínimo, Braga aproxima-se de Josef Albers (citado no Plano piloto para a poesia concreta, de Augusto de Campos Haroldo de Campos e Décio Pignatari) em sua série de Homenagem ao Quadrado, em que o artista trabalhou obsessivamente sobre a estrutura simples e tensa de um quadrado inscrito dentro de outro e seus efeitos luminosos, desautomatizando o olhar cotidiano. Outras referências nas artes plásticas são também constatáveis, sobretudo nos últimos poemas, ou tatoemas, em todos eles deixando visível o rastro, a pegada de uma arte ao mesmo tempo única e em diálogo com a tradição, sobretudo o dadaísmo, os caligramas de Apollinaire e o jogo de dados mallarmaico.

Exemplo emblemático da transição, em que Braga hesita entre os dois processos de metalinguagem analisados por Beatriz Amaral, é poema, do livro Soma, que, segundo ela, não só instiga o leitor a uma reflexão sobre a gênese do poema (pó e mó), como da própria arte, “dos seres, em última análise, sobre a criação do homem e de todas as coisas do universo, em seu movimento circular e infinito.”  Celebrar a vida, na prática médica cotidiana, e, paralelamente, na atividade artística, celebrar o precário: e não são essas as duas faces de uma mesma moeda?

 

Maria Cecília de Salles Freire César
Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – USP, Autora de “A dança das vozes no Evangelho de José Saramago”, é também especialista na obra de Carlos de Oliveira

 

(1)  AMARAL, Beatriz Helena Ramos.
A TRANSMUTAÇÃO METALINGUÍSTICA NA POÉTICA DE EDGARD BRAGA.
2013, Ateliê Editorial, 242 p coleção Estudos Literários – (011)4612-9666 – Estrada da Aldeia de Carapicuíba, 897 – Cotia – SP – 06709-300 – Preço R$39,00
 

BEATRIZ HELENA RAMOS AMARAL, paulistana, é poeta, contista, musicista e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC. Publicou Encadeamentos (1988), Primeira Lua (1990), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Pêmio JABUTI, categoria poesia), Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007). Recebeu o Premio Internazionale de Poesia Francesco de Michele (Itália, 2006). Sua dissertação de Mestrado foi finalista do Premio ANPOLL 2008 (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística). Tem participado de coletâneas no Brasil e no exterior. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br

E-mail: beatrizhramaral@uol.com.br