Mapa do Sítio - Ana Haddad - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
   

A  obra de Maria Estela Guedes, Arboreto, lançada, recentemente, pela Arte-Livros, editora brasileira, traz para nós um conjunto de poemas, simplesmente, extraordinários num contexto perverso, visto que, sabe-se, a era contemporânea estimula, talvez, como nunca em períodos anteriores, um absurdo individualismo. Ora pelos projetos políticos neoliberais que predominam enquanto modelos a serem seguidos, especialmente, no Ocidente, ora pela parafernália tecnológica, na maioria das vezes, aliada das transformações que resultam no homem solitário, sem voz, sem capacidade de interlocução, alheio a uma relação intersubjetiva. O saudoso poeta mexicano, Octavio Paz, há muito tempo já afirmava que o homem nasce e morre só. Tal afirmativa nunca foi tão agudamente atual e oportuna.

 

 

ANA MARIA HADDAD BAPTISTA

Arboreto em questão:  as árvores falam?

(Mestre e doutora em Comunicação e Semiótica; Especialista em História da Ciência; pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho – UNINOVE e da UNIFAI - Brasil)
 

Quem é o poeta? Aquele que um dia foi o portador da verdade. Que verdade?   De maneira simples pode-se inferir: uma verdade que não era colocada à prova com critérios de repetibilidade, verificabilidade e tantos outros que sustentam determinados paradigmas do que hoje se entende por ciência.

Quem é o poeta? Um sonhador barato que, via de regra, é inspirado por Musas que habitam o Olimpo e protegem os artistas, dentre eles, os poetas que possuem o dom de se transportarem para um passado coletivo e revelar os desígnios humanos, o  passado, a memória coletiva.

Quem é o poeta? Um mero contemplativo à procura de ícones para materializar seus sonhos impossíveis. Um inativo sonhador em busca de possibilidades para tornar a existência mais suportável. Só. Somente isso. Um ser que não age. Não possui senso prático. Desconhece as necessidades  materiais que subtraem do restante uma temporalidade que pouco vale na era do capital.

Quem é o poeta? Produtor de sonhos, fantasias e utopias que um dia poderão  se tornar realidade ou não. Produtor de possibilidades que poderão ou não se materializar. Produtor de conceitos que elucidam  e desmascaram camadas de signos que encobrem o real. Produtor de profundas reflexões em todos os níveis.

Quem é Estela Guedes? Uma escritora, ensaísta e poetisa nascida em Portugal que teve e tem a coragem de escrever poemas nos dias de hoje. Consegue, felizmente, dar voz a diversos segmentos. Não inspirada pelas Musas do Olimpo, mas por meio de um trabalho árduo com as palavras, possibilita, nesta obra, um longo diálogo com a natureza. Especialmente, com as árvores que, um dia, estiveram presentes em sua vida : vivida, imaginada, sentida, fantasiada, projetada. Somente ela, de fato,  poderá responder.

A natureza apresentada por Estela dialoga, naturalmente, com referenciais universais, como por exemplo,  os deuses e deusas da mitologia grega, com os valores cristãos, católicos apostólicos romanos e outros, mas, eis um dado importante que se observa, de forma mais geral, em sua literatura: não há julgamento. A poetisa não se coloca nem contra, nem a favor de valores consagrados. Seu diálogo aparentemente sem qualquer intenção, demonstra o quanto ela joga para os leitores o julgamento, se estes acharem necessário. Ela possui uma posição contemplativa no bom sentido da expressão. Os leitores que analisem os fatos caso isso lhes convenha.

Arboreto contempla, nessa perspectiva, em certa medida, um trabalho primoroso de memória. Estela, como já foi mencionado anteriormente, dialoga com o patrimônio cultural, mais distante, ancestral da humanidade. Todavia, em muitos poemas, talvez, na maioria deles, seu trabalho é um intenso exercício de memória que felizmente dá espaço a outras que compuseram sua vida. É o caso, por exemplo, do poema «A tília de Isaurita»; neste poema, a autora busca resgatar e reforçar o carinho por sua tia. A árvore idosa e majestosa de Isaura, num dia de temporal, é rachada ao meio e, ainda por cima, atrapalha a estrada. Relata o desespero de Isaura que vê sua doce companheira ser abatida pela catástrofe e parte de sua memória jogada ao vento. A tília não somente de repente virou um estorvo, como virou lenha. Triste destino. Mas a árvore, finalmente, floresce em seu toco e a promessa de que para as gerações futuras ainda haverá muita sombra e chá. Ou seja, a tradição e uma longa história da árvore deverão permanecer com as gerações futuras da família.

Um outro poema que  chama a atenção, entre tantos outros que mereceriam destaque, é o dedicado à Figueira. Trata-se de uma árvore que foi eternamente fiel à Gravelina. Durante anos Gravelina comia embaixo dessa árvore. Comia pão com “os figos mais pingados de mel”. Mas... um dia a personagem morre. No mesmo ano da morte a figueira não dá mais figos e também morre. Aqui uma clara alusão de que há um elo profundo entre a natureza e a humanidade. Até que ponto a natureza é indiferente ao homem?

O Pinheiro do Paraná, Brasil, também é contemplado por  Estela Guedes e indica que ela conhece, de perto, várias regiões brasileiras e a vegetação não lhe passou despercebida. Em muitos outros poemas as paisagens nacionais estão presentes, como por exemplo, no poema Jacarandás. “Brasil das diferenças/ O graffiti e o slogan impressos/ Nas paredes do casario/Garantindo que o império dos signos/ Alegra a cinza térrea do casais/ Com pouco dinheiro”.

No mesmo poema a autora  faz um percurso por bairros  de São Paulo. Exalta, inclusive, alguns locais da cidade paulistana e, como sempre, exaltando as árvores que compõem o cenário, diversas vezes, árido.

Enfim, este livro possui a riqueza de uma literatura que se propõe a representar e materializar uma perspectiva subjetiva singular, única e, sobretudo, por alguém que sabe perfeitamente quais os principais objetivos, declarados ou não, da boa, velha, insubmissa e esclarecedora literatura. Poesia e imagens poéticas com graus de uma sensibilidade incomum.

Lembrando nosso saudoso Benedito Nunes: a teoria corresponde a uma certa perspectiva de apreensão intelectual. A ciência, por si mesma, não consegue uniformizar idéias e conceitos.

Contudo,  a contemplação daqueles que produzem literatura é carregada de signos sensíveis, signos desmaterializados, diria Deleuze, e como tais, somente eles podem captar o que há de mais recôndido na alma humana, propiciando diálogos intermináveis com a natureza, com a humanidade e com o universal. Baliza, sem contradições comuns, a interlocução entre os seres como se tempo e espaço fossem, definitivamente, subtraídos ou, pelo menos, atenuados.

Uma árvore que fala. Uma árvore que chora. Uma que ri. Outra que seca. Enfim, árvores, de alguma maneira, sempre fizeram parte da história da humanidade. Em especial de pessoas sensíveis.

As árvores falam? Para os poetas as árvores falam da mesma forma que as estrelas. Aliás, para os poetas estrelas dialogam sem ruídos de comunicação com as árvores.

Destaco o poema «A Cerejeira»:

São pessoas com raízes
tão fundamente enterradas
no coração
que sangram por espinhos
finos acúleos
e deixam regos de cicatrizes.

As árvores são antepassados
de braços erguidos sobre a carapinha.

E a cerejeira tão velha
toda ela portas abertas
para nós amantes. 

A partir do conjunto exposto a poetisa Estela Guedes, como uma verdadeira estrela, do alto, concretamente: dos subterrâneos de sua subjetividade (onde moram suas memórias) traça um diálogo com nossas vidas e, na verdade, entre o significado das árvores, particularizando a cerejeira, como nas seguintes estrofes:

Somos a cerejeira
dobrada sobre si mesma
a segurar nas mãos a dor em brasa. 

Cintilam ideias, fulguram mentes
agitam-se as folhas tagarelas
dos choupos tremedores
mas nós somos a interdita cerejeira
de punhais trespassada
à porta dos pais fechada
os velhos sentados na laje antiga
dos provérbios contados
à soleira da nossa choupana
enquanto galinhas debicam grãos de sol
na crepitação da palha
despedem centelhas os folículos
das espigas e rente ao chão
nos agostos insondáveis
vibra a colcha acetinada

……………………………….

Zumbem insetos à volta dos toros
carcomidos dos anos
no chão sem sentidos empilhados
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer de antigas. 

…………………………………. 

Barraram a passagem à memória
este dia é de defuntos.
Não há chaves não há chaves
não há chaves
de platina nem de latão
capazes a abrir as portas
que a cerejeira abatida
fechou ao coração.
 

As memórias das árvores misturam-se às humanas possibilitando uma crescente aproximação entre o humano e a natureza, aproximação esta, muito esquecida nos grandes centros urbanos.

Outro dia me disseram: “Que vontade de abraçar uma árvore! Senti-la em meu peito!” Arboreto resgata, entre outras coisas, esta vontade do homem de um contato mais íntimo com a natureza em si.

Resta uma resposta à indagação inicial: As árvores falam? Falam. Exclusivamente para aqueles que possuem sensibilidade auditiva para escutá-las e sentir a leveza de um sussurrar.

 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES
ARBORETO
SÃO PAULO . ARTE - LIVROS . 2011
Série Poiesis - Vol. 1
Aquisição na Internet:
http://www.artelivroseditora.com.br/

   
   
   
   
   
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