ADELTO GONÇALVES
Um hino de amor ao rio Douro
OS OLHOS DO HOMEM QUE CHORAVA NO RIO
Ana Paula Tavares & Manuel Jorge Marmelo
Lisboa, Editorial Caminho, 135 págs., 2005.
www.editorial-caminho.pt

Um romance que é mais uma prosa poética, quase sem enredo, que trata de um tipógrafo brasileiro que, à beira do rio Douro, faz um devaneio em que procura recuperar a vida perdida e descobre que ainda pode amar. Escrito a
quatro mãos, pela angolana Ana Paula Tavares e pelo portuense Manuel Jorge Marmelo, Os olhos do homem que chorava no rio mais parece feito por uma só alma, embora tenha tido o seu tema sugerido por um terceiro escritor, o brasileiro Paulinho Assunção. Assim, a exemplo de um antigo romance de Adonias Filho (1915-1990), Luanda Beira Bahia, de 1971, refaz-se uma triangulação nas literaturas de expressão portuguesa, desta vez, reunindo Huíla, Porto e Belo Horizonte.

Diz Paulinho Assunção (1971), amigo dos autores, que este é um livro-música-de-câmara. E o define muito bem, pois é mais uma fantasia onírica. Afinal, de sua leitura pode-se ouvir sons mágicos, o som que vem da correnteza do rio, do fluxo de pensamento. Como não se sabe quem escreveu o quê, o que se pode dizer é que os autores produziram um romance que é também uma prova prática das idéias do pensador francês Gaston Bachelard (1884-1962), autor A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria (São Paulo, Martins Fontes, 1989, tradução de Antônio de Pádua Danesi), para quem "contemplar a água é escoar-se, dissolver-se, é morrer". Até porque não há quem, ao se sentar perto de um riacho, não caia em devaneio profundo nem deixe de rever a sua ventura.

Diz Bachelard que é possível descobrir-se duas águas, a da alegria e a da dor, mas, no caso deste livro de Ana Paula e Marmelo, essas águas se confundem, misturam-se. Ora, transmitem tristeza, ora felicidade. Diz ainda o pensador que há duas maneiras de se ler semelhantes textos: pode-se lê-los seguindo uma experiência positiva, num espírito positivo, tentando evocar, entre as paisagens que a vida nos fez conhecer, um local onde podemos viver e pensar à maneira do narrador. Nesse caso, a leitura seria pobre, difícil de se chegar ao fim.

Mas pode-se ler essas páginas tentando simpatizar com o devaneio criador,
procurando penetrar até o núcleo onírico de criação literária, comungando, pelo inconsciente, com a vontade de criação do poeta, diz Bachelard. E aqui
este livro adquire grandeza, porque traz uma transcendência inata. Não importam muito o seu arremedo de enredo, sua breve intriga ficcional, mas sim o espetáculo da palavra que oferece, o lirismo que vem do rio.

É o que se pode constatar, por exemplo, quase ao final do livro, quando se dá o encontro do tipógrafo com a sua eleita: "A solução anda agora à solta e dela se abeiram a menina, o tipógrafo e os vultos que sobram. Estão todos na margem. Vestida de branco - a brisa fazendo esvoaçar a seda, bailar os cabelos azuis -, a rapariga vai descalça, caminha com passos leves que são quase um esvoaçar ligeiro e rasante. Sorri e não sabe bem porquê. Avança com o peito inflado, a cabeça erguida".

Como observa Bachelard, esse tipo de descrição, entregue à sua função subjetiva, dá outra visão do mundo, ou melhor, a visão de um outro mundo. Escrevem os autores: "Os vultos estão no exacto limiar da terra, voltados para as águas, e a menina não os vê, não por lhe terem voltado as costas, não por serem invisíveis ao olhar dos homens, mas apenas porque tem os olhos postos longe. Avança, por isso, indiferente à parada silenciosa e cabisbaixa, ao cerimonial das sombras da beira do Douro. O tipógrafo vem em sentido contrário, com a fileira dos vultos à esquerda. Não sorri. Traz apenas um rosto sereno, duro ainda, e o vento que entra pela boca do rio brinca-lhe com a melena escura dos cabelos".

Se o adeus à beira mar é simultaneamente o mais dilacerante e o mais literário dos adeuses, como diz Bachelard, o encontro diante das águas de um rio explora um velho fundo de sonho e de heroísmo. Nas lendas pagãs ou cristãs, tendo atravessado as águas, as crianças abandonadas ao rio e que sobreviviam tinham simbolicamente atravessado a morte. E esses seres miraculosos podiam, então, salvar povos, refazer mundos. Assim, também um casal de enamorados que se reencontra diante do rio, como no livro de Ana Paula e Marmelo, dá início a uma nova vida, deixa para trás os dias aziagos e parte para uma viagem jamais feita. "De mão dada, menina e tipógrafo avançam também para o Douro. São poucos passos para tanta felicidade. Sabem que devem despedir-se, talvez agradecer. Sabem que o rio os uniu e que continuará a estar na vida de ambos".

No último parágrafo, lê-se: "As águas estão de uma cor que não existe em mais lado nenhum - apenas num livro". Enfim, volta-se à realidade, o sonho acabou e as águas já não são a superfície quase parada do Douro, já não são o sonho onírico, mas apenas as águas evocadas por um livro.

Portuense, Manuel Jorge Marmelo (1971) é um dos mais produtivos escritores portugueses da atualidade. Após a sua estréia, em 1996, com O homem que julgou morrer de amor, publicou sete romances (entre os quais Português, guapo y matador, O Amor é para os Parvos e Sertão Dourado), um volume de contos com fotografias, uma coletânea de crônicas (Paixões & embirrações), um álbum sobre o Palácio de Cristal, do Porto, e uma história para crianças (A menina gigante, escrita em colaboração com a filha). Em breve, será editada a primeira tradução integral de um livro seu, o romance As mulheres deviam vir com livro de instruções, a ser lançada na Espanha pela editora basca Txalaparta e, posteriormente, no Chile, Argentina e Uruguai.

Já a poeta Ana Paula Tavares (1952), nascida em Huíla, ao Sul de Angola, é historiadora com o grau de mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Em Angola, publicou Ritos de passagem (poemas), pela União de Escritores Angolanos, em 1985. Em Cabo Verde, saiu O Sangue da Buganvília em 1998. Pela Editorial Caminho, de Lisboa, publicou O Lago da Lua (poemas), em 1999, seguindo-se Dizes-me coisas amargas como os frutos (poemas), em 2001, obra vendcedora do Prêmio Mário Antônio de Poesia 2004 da Fundação Calouste Gulbenkian, Ex-Votos (poemas), de 2003, e A cabeça de Salomé (crônicas), de 2004.

Tem participação com poesia e prosa em várias antologias em Portugal, Brasil, França, Alemanha e Espanha. Publicou alguns ensaios sobre História
de Angola.

Paulinho Assunção, mineiro de São Gotardo, também é poeta, ficcionista e jornalista profissional, com mais de uma dezena de livros publicados. Participou do Suplemento Literário do Minas Gerais, a convite de Murilo Rubião, e foi repórter durante mais de 15 anos na sucursal em Belo Horizonte da Agência Estado (O Estado de S. Paulo). Ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, de 1983, com Diário do Mudo (poesia), e o Prêmio Minas de Cultura Guimarães Rosa, categoria contos, da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais e da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1998, com Pequeno Tratado Sobre as Ilusões, editado em Portugal pela Campo das Letras, do Porto, em 2003.

Da união inter-atlântica entre esses três autores, nasceu uma das mais belas criações da lusofonia nos últimos anos em que as personagens foram apenas pretextos para se produzir uma narrativa marcada pela intervenção do fenômeno poético, ritmada como uma canção, um hino de amor ao rio Douro.