Adelto Gonçalves

Como entender a Rússia de hoje

I

            MOSCOU – Quem tem a cabeça no século XX e ainda pensa ideologicamente nunca vai entender a Rússia de hoje. O poder hoje no país é exercido e disputado por grupos políticos que defendem interesses econômicos e não estão interessados nas velhas divisões marxistas de classe. O que esses grupos mais querem, além de acumular altos lucros, é dinamizar a economia da Rússia para afastar da população mais carente certa nostalgia dos tempos soviéticos, quando, acredita-se, o país crescia mais devido à competição com os Estados Unidos, motivada pela Guerra Fria.  

            Hoje, em Moscou, o que mais preocupa as autoridades é o futuro daquela que é a maior cidade da Europa, com mais de 10 milhões de habitantes. O prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, e o governador da região de Moscou, Boris Gromov, andam às voltas com planos que prevêem a construção de um distrito financeiro internacional no distrito Oeste da cidade. Um desses projetos estabelece uma expansão de 144 mil hectares de terras na periferia de Moscou nos próximos 20 anos.

            De acordo com esse plano de expansão dos limites da cidade, que está hoje nas mesas de Sobyanin e Gromov e do presidente Dimitri Medvedev, Moscou cresceria 2,4 vezes, cobrindo uma área de 251 mil hectares, em vez dos 107 mil atuais. Mas, mesmo sem o plano, a cidade já cresce a um ritmo intenso, pois onde quer que se vá vê-se prédios em construção tanto para fins residenciais como comerciais. Até porque mais e mais gente vem se instalando em áreas periféricas de Moscou, embora a maioria procure e encontre emprego no centro da cidade.

            Duas áreas estão na mira dos planejadores: o distrito de Rublyovo-Arkhangeskoye, no Oeste da cidade, o lugar favorito da nova classe média alta, e Varshavskoye Shosse e Kievskoye Shosse, no Sudoeste. São áreas menos povoadas. Mas Rublyovo-Arkhangeskoye aparece como o lugar mais viável para se tornar esse centro financeiro internacional projetado para Moscou. Segundo os planos, deverá abrigar pelo menos dois milhões de moradores e oferecer emprego para pelo menos 10% da força trabalhadora de Moscou.

            Financiar o projeto é o que mais preocupa as autoridades, mas, seja como for, boa parte do financiamento deve sair dos cofres do governo. Para tanto, pensa-se que o governo pode vender os escritórios que hoje ocupa no centro de Moscou, nos arredores da Praça Vermelha, onde está o Kremlin, com o objetivo de torná-los hotéis de três, quatro ou cinco estrelas.

            O problema é que, segundo os especialistas, Moscou dispõe da pior infraestrutura entre as grandes cidades dos países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). De qualquer modo, a área de Rublyovo-Arkhangeskoye já oferece conexões com o centro de Moscou, embora o metrô moscovita seja muito antigo, se comparado, por exemplo, com o de São Paulo.  É barulhento e extremamente abafado nos dias de verão. Além disso, precisa passar por reformas urgentes, já que, em muitas estações, as escadas rolantes não funcionam e as sinalizações em russo transformam o turista em barata tonta. Sem contar que, em algumas estações, as catracas são bem antigas.   

II

        Para se tornar uma capital turística com um centro financeiro internacional, Moscou precisa também domar a ânsia desenfreada por dinheiro de seus motoristas de táxi. Não há turista que não saia do aeroporto Domododevo com má impressão dos taxistas. Este articulista, em seu primeiro dia de Moscou, teve de pagar 500 rublos (30 reais) por uma corrida de menos de cinco minutos, que, no Brasil, não sairia por mais de 7 reais, da estação de metrô Yugo-Zapadnaya ao Hotel Astrus, na Leninskiy Prospect.

            Pior ocorreu com um casal de franceses que se perdeu de seu grupo de viagem e ficou um bom tempo no aeroporto Domododevo sem saber o que fazer. Sem nenhum contato na cidade, sem reserva em hotel e sem falar uma palavra de russo, o casal passou pela pior experiência que Moscou pode oferecer: caiu nas mãos da máfia de taxistas.

            Depois de 14 horas no aeroporto tentando obter informações, os franceses conseguiram dormir num hotel nas proximidades do Domododevo. Mas para levá-los do aeroporto ao hotel o taxista cobrou-lhes 5 mil rublos (321 reais). E, quando o francês recusou-se a pagar, teve de entrar em luta corporal com o taxista, o que lhe valeu escoriações e arranhões nos braços. A situação dos franceses só melhorou no dia seguinte quando eles conheceram, no balcão da Air Moldova, no aeroporto, o jornalista Olaf Koens, que fala francês.  Koens contou a triste história do casal francês numa crônica publicada na edição de 15-18 de julho de 2011 do The Moscow News (pág. 15).

            De qualquer modo, se os franceses soubessem falar pelo menos inglês, talvez tivessem tido melhor sorte. Tanto no aeroporto Domododevo como nas principais estações de trem de Moscou – são nove –, há postos de informação com atendentes que falam inglês. Basta dizer o destino a que se pretende ir para que a atendente informe antecipadamente o valor da viagem e chame um taxista autorizado. De preferência, deve-se pedir à atendente que escreva num papel o valor em rublos da viagem. Depois, é só exibi-lo ao taxista. É melhor tomar essa precaução porque pegar um táxi na rua é correr o risco de sofrer um constrangimento igual ao que passou o casal de franceses.

            Até porque, em função de dificuldades financeiras, há muitas pessoas que usam o próprio automóvel como táxi. E não trabalham com taxímetro, cobrando de acordo com a cara do freguês. Em dias de calor, é comum ver-se taxistas trabalhando muito à vontade: de bermudas e chinelos. Muitos, inclusive, dispensam o uso do cinto de segurança. E, ao que parece, não correm riscos de sofrer multa por isso.

III

          Olhando sob uma perspectiva macro para a Rússia pós-soviética, percebe-se que o país ainda carrega um pesado fardo histórico deixado pelo antigo regime – burocracia, corrupção e fragilidade das instituições, além de certa vulnerabilidade econômica. Além disso, há quem veja na era Putin-Medvedev um retrocesso em relação às reformas liberais empreendidas por Boris Yeltsin a partir de julho de 1991, quando o presidente assinou a lei de privatização de moradias, garantindo a propriedade àqueles que já moravam no mesmo apartamento desde os anos 70.

            De início, houve uma explosão nos preços dos imóveis e muita especulação. Máfias atuaram nesse mercado, forçando muitos moradores desfavorecidos a deixar suas casas. Mas a situação hoje parece normalizada, ainda que os prédios de apartamentos residenciais de áreas mais próximas ao centro Moscou, que foram construídos dentro de áreas verdes, mostrem-se, na maioria, em situação crítica, exibindo janelas em condições precárias. Sem contar o espetáculo um tanto deprimente dos fios que passam de um prédio para outro.

            Na época stalinista, os locais e prédios mais próximos do centro de Moscou eram os de maior prestígio e mais valorizados, mas hoje já não é assim. Casas que mais parecem pequenos castelos começaram a ser levantadas em locais mais distantes do centro, inclusive, em áreas próximas do aeroporto Domodedovo.

IV

            Hoje, quem manda na Rússia são alguns oligarcas-burocratas que se deram bem com as reformas de Yeltsin: dominam os negócios privados com o beneplácito do poder público. Há cada vez maior conexão entre a esfera dos negócios privados e a esfera política. Em outras palavras: há uma interpenetração cada vez mais intensa entre o capital e o Estado. Aqueles que usufruem desses negócios, geralmente, são os proprietários dos carrões modernos que se vêem estacionados nas avenidas do centro de Moscou. O partido Rússia Unida (Yedinaya Rossiya), que domina o Parlamento, tem apoiado algumas intervenções do Estado sobre a economia.

            O que se discute hoje nas ruas é a iniciativa do primeiro-ministro Vladimir Putin, que foi presidente de 2000 a 2008, de articular a formação de um bloco de livre comércio entre Rússia, Belarus e Cazaquistão, que muitos já começam a chamar de “mini-União Soviética”. Desde o dia 1º de julho, já não há maiores exigências alfandegárias nas fronteiras entre esses países: os cidadãos ainda têm de exibir seus passaportes, mas já não pagam taxas aduaneiras para passar com mercadorias.

            Desde janeiro, trabalhadores e empresas de serviços podem atuar indiferentemente nos três países. Mas no Cazaquistão e em Belarus já surgiram protestos contra essa zona de livre comércio: os preços da gasolina são diferentes nos três países e começou a haver uma entrada excessiva de carros de segunda mão.

            Há planos para a formação de uma União Econômica Euroasiática, que poderia começar a funcionar no início de 2013.  Seria, na verdade, uma restauração do antigo espaço soviético, mas dentro de moldes capitalistas. Não está em discussão a restauração da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas maior inter-relação entre as nações do antigo bloco.

            O Cazaquistão, por exemplo, dispõe de três milhões de metros cúbicos de reservas de gás, a que a Rússia poderia ter maior acesso, desde que desse uma contrapartida, permitindo que os empresários daquele país colocassem seus produtos no seu mercado interno. Como o país tem crescido nos últimos anos, a popularidade de Putin continua em alta e não será difícil que venha a suceder Medvedev na presidência. Nesse caso, a formação desse bloco estaria assegurada.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br