Adelto Gonçalves

A vida (multifacetada) de Pagu em imagens   

VIVA PAGU: FOTOBIOGRAFIA DE PATRÍCIA GALVÃO, de Lúcia Maria Teixeira Furlani e Geraldo Galvão Ferraz. Santos: Universidade Santa Cecília (UNISANTA). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 348 págs., 2010. E-mails: lucia@unisanta.br; livros@imprensaoficial.com.br Sites: www.unisanta.br; www.imprensaoficial.com.br

                                                       I

            A exemplo de Eça de Queiroz (1845-1900), Fernando Pessoa (1888-1935) e outros grandes nomes da Literatura em Língua Portuguesa, Patrícia Galvão (1910-1962), a musa do Modernismo brasileiro, acaba de ganhar sua fotobiografia: Viva Pagu: Fotobiografia de Patrícia Galvão (Santos: Universidade Santa Cecília-Unisanta; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010), trabalho da professora Lúcia Maria Teixeira Furlani e do jornalista Geraldo Galvão Ferraz, filho da escritora, que reúne fotografias e textos que, na maioria, fazem parte do acervo do Centro de Estudos Pagu, da Unisanta, de Santos, e estão disponíveis no site www.pagu.com.br.

            Mulher pouco convencional para o seu tempo, Patrícia Galvão teve uma trajetória ímpar na história da Literatura e é uma poucas escritoras brasileiras que atraem o interesse de estudiosos estrangeiros, como o professor norte-americano Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, que traduziu com Elizabeth Jackson para o inglês o seu romance Parque Industrial, publicado em 1994 pela Editora da Universidade de Nebraska.

            Neste livro preparado com raro esmero por Lúcia Teixeira e Geraldo Galvão Ferraz, o leitor pode encontrar numerosas passagens da vida de Pagu, apelido que lhe foi dado pelo poeta modernista Raul Bopp (1898-1984) e pelo qual ela, nos últimos tempos, não tinha muito apreço, porque representava uma época já superada em sua vida. O leitor pode encontrar ainda uma Patrícia Galvão que hoje é difícil de imaginar que tenha existido – uma mulher fatal, como Gilda, o filme de 1946, estrelado por Rita Hayworth (1918-1987). A Patrícia Galvão jovem não só era uma mulher atraente como revolucionária, ativista, ligada às vanguardas de seu tempo, que não perdeu a dignidade nem mesmo quando submetida a torturas físicas e psicológicas pela ditadura do Estado Novo (1937-1945), uma das maiores ignomínias da História brasileira – a outra foi a ditadura militar que durou de 1964 a 1985.

            Trabalho de pesquisa, que contou a ajuda e colaboração de familiares e antigos amigos e conhecidos de Patrícia Galvão, este livro procura registrar com fotos e documentos a trajetória da escritora, desde o seu nascimento em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, cidade importante à época em que o café construía fortunas no Brasil, no seio de uma família de imigrantes alemães, os Rehder, cujo patriarca, o bisavô Nicolau, havia construído a estação de trem local.  Da Patrícia menina há muitos registros: sua vida na escola primária, a época como normalista, seu irmão e irmãs e mesmo a sua iniciação precoce no mundo do amor. “Era uma menina forte e bonita que andava sempre muito extravagantemente maquiada”, como recordou num depoimento de 1978 um contemporâneo.

 II

            O livro mostra ainda fotos da época em que Patrícia Galvão, aos 18 anos de idade, conhece Oswald de Andrade (1890-1954), à época com 38 anos e casado com a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973). Ela começa a colaborar como desenhista com a segunda fase da Revista de Antropofagia, que passa a ser publicada no Diário de S. Paulo, de março e agosto de 1929. Logo, o casamento de Oswald entra em convulsão, depois de um affair do escritor com a jovem Patrícia.

            O casamento de Patrícia com Oswald também seria tumultuado. E, numa dessas fugas da realidade, ela vai para Buenos Aires, onde mantém contato com o grupo da revista Sur, que reunia Victoria Ocampo (1890-1979), Jorge Luis Borges (1899-1986) e outros nomes da história da literatura argentina. Em razão de outros contatos, volta convertida ao credo comunista a que se dedicará com paixão, até que, depois de muitas prisões e padecimentos, descobre com seus próprios olhos em Moscou a verdadeira face do “paraíso comunista”. Em 1933, publica o “romance proletário” Parque Industrial, disfarçada sob o pseudônimo Mara Lobo, em edição financiada por Oswald de Andrade. Uma edição com tiragem limitada, quase clandestina, com capa da própria autora.

            Ao fazer uma auto-avaliação de seu passado de marxista-leninista ortodoxa, em 1938, Patrícia é expulsa do Partido Comunista Brasileiro, acusada de trotskista, em companhia de José Stacchini (1916-1988) e outros militantes, como mostra documento da época reproduzido no livro. (Stacchini, que este articulista conheceu em 1975 na antiga redação de O Estado de S.Paulo, na Rua Major Quedinho, acabaria por escrever um livro formado por reportagens panegíricas sobre os preparativos para o golpe militar de 1964, intitulado Março de 64: mobilização da audácia (1965). À época, talvez Stacchini não imaginasse no que daria aquela mobilização da direita. E a impressão que passava, mais de dez anos depois, era a de um homem desiludido com a vida e com a espécie humana). Dessa época, a Fotobiografia traz vários recortes de jornais e relatórios policiais sobre as atividades de Patrícia Galvão, então considerada perigosa “extremista”. 

 III

            Passada a fase de ativista, Patrícia tornou-se jornalista em tempo integral e militante do teatro. Casou-se com o jornalista Geraldo Ferraz (1905-1979), que era ligado ao grupo modernista. Como Geraldo Ferraz, ex-secretário de redação do Diário da Noite, trocaria São Paulo pelo litoral paulista para dirigir a redação de A Tribuna, de Santos, onde já havia trabalhado no começo da década de 1940, a escritora o acompanharia e passaria a desenvolver no diário santista a atividade de crítica teatral e, depois, a precursora função de crítica de TV, ainda na década de 1950.

            (De Geraldo Ferraz, este articulista recorda-se de vê-lo adentrando de sandálias a redação de A Tribuna, de Santos, no começo da década de 1970. Já estava afastado da direção da redação e morava na Ilha Verde, nome que dera à casa da pintora Wega Nery, com quem vivia em Guarujá. Embora a gerência do jornal habitualmente mandasse um motorista buscar as colaborações em sua casa, de vez em quando, ele fazia questão de ir à redação pessoalmente levar os editoriais que ainda estava encarregado de escrever, especialmente sobre política internacional. Depois, invariavelmente, passava pela livraria Martins Fontes, na Praça Independência, no Gonzaga, para conferir as novidades literárias).

            Antes disso, o casal teve ainda uma passagem por jornais cariocas, época em que ela, escondida sob o nome de King Shelter, escreveu histórias de mistério para a revista Detective, dirigida por Nelson Rodrigues (1912-1980). Os contos seriam reeditados em 1998 no livro Safra Macabra (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora), preparado por seu filho Geraldo Galvão Ferraz.

            Em 1950, ocorre sua tentativa frustrada de militar na política partidária como candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, em São Paulo. Dessa época é o panfleto eleitoral Verdade & Liberdade em que faz uma dura crítica à direita e ao getulismo – e toda a violência aos direitos humanos que foram praticados durante o Estado Novo –, mas não deixa de condenar a esquerda stalinista e o Partido Comunista Brasileiro. Dizia: “Dos vinte aos trinta anos, eu tinha obedecido às ordens do Partido. Assinara declarações que me haviam entregue, para assinar sem ler”.

  IV

            A última etapa da vida de Patrícia Galvão é marcada por sua atuação cultural. Em A Tribuna, a 27 de novembro de 1955, escreve uma página dedicada ao poeta Fernando Pessoa para assinalar os 20 anos de sua morte. Em 1956, faz outra página dedicada a Dostoievski (1821-1881), por ocasião do 75º aniversário de  sua morte. Essas e outras páginas também estão reproduzidas nesta Fotobiografia. Em 1959, dizia que a função da imprensa, num país de tamanha pobreza para as coisas da inteligência, é estimular a cultura. Mais de meio século depois, esta é uma frase que continua mais válida do que nunca, embora nos dias hoje o que menos se vê na grande imprensa são textos culturais.

            É claro que uma vida tão multifacetada como a de Patrícia Galvão não cabe em poucas e resumidas palavras. Mas esta Fotobiografia cumpre bem o seu papel, ao permitir que se tenha uma visão mais nítida de uma trajetória extremamente singular na história da Literatura Brasileira. Trabalho que a história da Literatura Brasileira fica a dever a Lúcia Maria Teixeira Furlani e a Geraldo Galvão Ferraz.

            Lúcia Maria Teixeira Furlani, mestre e doutora em Psicologia da Educação, é presidente da Universidade Santa Cecília e autora de Autoridade do professor – meta, mito ou nada disso, Fruto proibido – um olhar sobre a mulher; Pagu – livre na imaginação, no espaço e no tempo; A claridade da noite – os alunos do ensino superior noturno e Segredo da longa vida, entre outros. Já Geraldo Galvão Ferraz, jornalista, crítico literário e tradutor, passou pelas redações de O Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde, Editora Abril e Revista Cult. É autor de Livro, ferramenta de progresso e de A empolgante história do romance policial.

 

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br