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O paraíso da infância em Eugénio de Andrade
Também na edição em português do Pravda:
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METÁFORAS OBSESSIVAS EM EUGÉNIO DE ANDRADE, de António Oliveira. Leça da Palmeira, Portugal: Letras e Coisas/Câmara Municipal do Fundão, Câmara Municipal de Santo Tirso e Câmara Municipal de Gondomar, 172 págs., 2008.

E-mail: letrasecoisas@clix.pt

I

Um dos maiores poetas do século XX português, Eugénio de Andrade (1923-2005) foi tema da tese de doutoramento em Literatura Comparada “Marcel Proust et Eugénio de Andrade poèts de la réconciliation” apresentada pelo professor, crítico e ensaísta António Oliveira à Universidade do Minho, de Braga, em 2006. Com o objetivo de alcançar públicos mais variados e menos eruditos, o autor acaba de lançar Metáforas obsessivas de Eugénio de Andrade, seleção apurada de textos que constam de sua tese, mas que foram devidamente (re)escritos em linguagem acessível em que deixou de lado a terminologia específica aos estudos literários, por vezes demasiado pedante ou hermética, enfim, acadêmica.

Dono de uma poesia caracterizada por um valor essencialmente musical, Eugénio de Andrade aproximou-se do lirismo primitivo da poesia galego-portuguesa ou, mais recentemente, do Simbolismo de Camilo Pessanha (1867-1926). Como sabe quem já leu Clepsidra, Pessanha não é um poeta de idéias, mas de imagens, ou seja, é um poeta abstrato por excelência, cerebral, essencialmente intelectual, que sempre teve a obsessão pela musicalidade do verso.

Afinal, um dos principais objetos do Simbolismo é insinuar coisas, em vez de formulá-las ostensivamente, procurando produzir, com a poesia, efeitos semelhantes aos da música, na definição precisa do crítico norte-americano Edmund Wilson (1895-1972) que se pode ler em O castelo de Axel. É assim também que se dá em relação a Eugénio de Andrade, um poeta de floração mais recente, mas conformado aos ditames do Simbolismo.

Segundo Oliveira, o tema central da sua poesia é a figuração do homem, não apenas do eu individual, mas integrado num coletivo, que procurou encontrar a partir de sua experiência pessoal de homem social metamorfoseada pelo criador, desenvolvendo “os seus mitos pessoais a fim de expurgar os traumas do seu eu social para criar um mundo de sonho”.

O que cativa na poesia de Eugénio de Andrade, assegura Oliveira, é uma dialética de ritmos, de estruturas e de significados, assim como a harmonia de seus versos. “Essa musicalidade revela o mito, uma vez que, na sua origem, mito e canto formavam um só”, explica, destacando que as palavras mais utilizadas e repetidas pelo poeta são “as que o povo emprega no seu dia-a-dia e que são parte integrante da natureza: pão, água, sol, sal, rio..., ou seja, aquelas palavras que, não estando corrompidas pelos tropos literários, dão naturalidade e frescura à sua poesia”.

II

Em sua tese de doutorado, Oliveira observa que a obra poética eugeniana está povoada de flores, quer como tropos (metáforas, metonímias, comparações ou personificações), quer como símbolos culturais assimilados ao longo de diversas sociedades. Por isso, dedica-lhe um capítulo para analisar a percepção artística dos nomes de flores nos versos do poeta e sua integração na literatura popular portuguesa, lembrando que o seu discurso é herdeiro das tradições populares, inerentes aos Cancioneiros aos Romanceiros, que possuem uma estrutura próxima da poesia oral.

Para o ensaísta, o erotismo é outro tema que a metáfora da flor eugeniana exprime, seguindo uma tradição poética que metaforiza a mulher em flor, se bem que, em muitos poemas, o poeta não seja nada gentil com as mulheres, exceto quando evoca a mãe. Segundo Oliveira, porém, a poesia de Eugénio de Andrade se engrandece mesmo quando se volta para o paraíso da infância, através do qual atinge a plenitude.

Para o crítico, dá impressão de que Eugénio de Andrade “pôs toda a sua infância no bolso e que, tal como um prestidigitador que tira um coelho da cartola, com um simples gesto que lhe advém da realidade, ele retira um pedaço do seu passado numa mistura de presença e ausência, de sonho e de realidade”.

Para o professor, esta transcendência é uma das finalidades da poesia que, a partir de um sentimento de felicidade passada, pode fazer-nos vislumbrar imagens que nos ocasionam um prazer presente. “É que, na verdade, a arte dá à percepção estética o que o mundo apenas pode prefigurar”, diz.

Vais e vens na memória dos dias

onde o amor

cercou a casa de luz matutina.

Às vezes sabíamos de ti pelo aroma

das glicínias escorrendo o muro,

outras pelo rumor do verão rente

ao oiro velho dos plátanos (...)

(Os sulcos da sede: 23)

Citando o crítico espanhol Fernando Cabo Aseguinolaza, Oliveira lembra que a infância evoca não só um tempo passado, mas também reenvia à presença interior do adulto. E observa que, em Eugénio de Andrade, a presença da infância é sensualmente sentida, embora distante (ao mesmo tempo presente e ausente, já que ela continua). Como exemplo, cita estes versos:

(...) A que vive dentro de mim

também voltou; continua a correr

nos meus dias. (...)

A criança voltou. Corre no vento.

(Poesia: 523-524)

Como se vê, ainda que já tenha sido analisada por estudiosos do quilate de Eduardo Lourenço, Arnaldo Saraiva, Luís Miguel Nava (1957-1995), Óscar Lopes, Carlos Mendes de Sousa e Eduardo Prado Coelho (1944-2007), a poesia de Eugénio de Andrade encontrou em António Oliveira um analista raro, que soube se preparar com teóricos de primeira linha, como Gaston Bachelard (1884-1962) , Merleau-Ponty (1908-1961), Paul Ricoeur (1913-2005), Jean Paul Sartre (1905-1980), George Steiner, Northrop Frye (1912-1991), Jacques Derrida (1930-2004), Maurice Blanchot (1907-2004), Roland Barthes (1915-1980), Umberto Eco e outros, para extrair de sua produção poética imagens insólitas e criativas.

Fortemente influenciado por seus estudos de Literatura Francesa, Oliveira soube como aproximar Eugénio de Andrade de Marcel Proust (1871-1922), lembrando que, como na Recherche du temps perdu, a luz, onipresente, é o fio condutor da poesia eugeniana: “uma luz que sem ser a do sol, nem da lua, irradiando esta ou aquela paisagem, é uma luz que, qual archote, ilumina as vias do Tempo e nos faz sentir que a obra de arte é o único meio para alcançar o tempo perdido”. Esta luz, como diz Oliveira, repetindo Proust, é a nossa vida passada que, depois de recriada pela memória, não é senão obra de arte, desde que, é claro, recriada por gente de talento. E que pode ser traduzida como a luta da memória contra o esquecimento, para se lembrar aqui o escritor tcheco Milan Kundera.

O resultado de tudo isso é um livro que, a partir de agora, torna-se indispensável para quem quiser se aventurar nas sendas da poética eugeniana.

III

Ganhador em 2001 do Prêmio Camões, o mais importante da Língua Portuguesa, Eugénio de Andrade foi o pseudônimo de José Fontinhas Rato que, nascido na freguesia de Póvoa de Atalaia (Fundão), numa família de camponeses, transferiu-se para Lisboa aos dez anos de idade, na companhia da mãe, que, a essa altura, já estava separada do pai. Em Lisboa, frequentou o Liceu Passos Manuel e a Escola Técnica Machado de Castro e escreveu os seus primeiros poemas em 1936, entre os quais “Narciso”, que publicou três anos mais tarde.

Em 1943, mudou-se para Coimbra, onde conviveu na juventude com os escritores Miguel Torga (1907-1995) e Eduardo Lourenço. Tornou-se funcionário público em 1947, exercendo durante 35 anos as funções de inspetor administrativo do Ministério da Saúde. Por necessidade do serviço, transferiu-se para o Porto em 1950, passando a viver numa casa que só deixou mais de quatro décadas depois, quando se mudou para o edifício da Fundação Eugénio de Andrade, na Foz do Douro.

Sua consagração como poeta deu-se em 1948, com a publicação de As mãos e os frutos, que mereceu os aplausos de críticos como Jorge de Sena (1919-1978) e Vitorino Nemésio (1901-1978). Entre as muitas obras que publicou estão, na poesia, Os amantes sem dinheiro (1950), As palavras interditas (1951), Escrita da Terra (1974), Matéria Solar (1980), Rente ao dizer (1992), Ofício da paciência (1994), O sal da língua (1995) e Os lugares do lume (1998). Em prosa, publicou Os afluentes do silêncio (1968), Rosto precário (1979) e À sombra da memória (1993), além das histórias infantis História da égua branca (1977) e Aquela nuvem e as outras (1986).

Recebeu muitas homenagens, entre as quais o Prêmio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), o Prêmio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1988) e o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989). Em setembro de 2003, a sua obra Os sulcos da sede foi distinguida com o prêmio de poesia do Pen Clube Português. Sua obra poética essencialmente lírica foi considerada pelo Prêmio Nobel de Literatura José Saramago como “uma poesia do corpo a que se chega mediante uma depuração contínua”.

Em 2006, a Fólio Edições e o suplemento Das Artes, Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, publicaram A jeito de homenagem a Eugénio de Andrade, que reuniu prosas e poemas sobre o poeta publicados de dezembro de 2002 a março de 2004 naquele periódico e assinados por mais de 300 ensaístas, romancistas, tradutores e poetas da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa e dos países lusófonos, numa iniciativa de Joaquim de Montezuma de Carvalho (1929-2008), com prefácio da antiga diretora do jornal, Nassalete Miranda, e textos de apresentação de Arnaldo Saraiva, crítico e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e do poeta, professor e diplomata José Augusto Seabra (1939-2004), entre outros.

IV

António Joaquim da Silva Oliveira, doutor em Ciências da Literatura pela Universidade do Minho, de Braga, lecionou literatura francesa no Institut Français do Porto e didática das línguas no Instituto Piaget, em Gaia. Publicou uma obra sobre Le silence de la mer, do escritor francês Vercors (1902-1991), pseudônimo de Jean Marcel Bruller, que se destacou por sua resistência à invasão da França pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

Além de participar de seminários nacionais e internacionais sobre poesia e Literatura Comparada, Oliveira apresentou e prefaciou vários livros e foi colaborador assíduo do extinto suplemento Das Artes, Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto. É também sócio-fundador do Círculo Miguel Torga, em São Martinho de Anta. Natural da Foz do Sousa, em Gondomar, onde reside, é atualmente professor na Escola Secundária de D.Dinis, em Santo Tirso.

Em maio de 2006, esteve no Brasil para dirigir um curso sobre Literatura Portuguesa na Casa das Rosas-Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo-SP. Em novembro daquele ano, deu uma palestra sobre aspectos da Literatura Portuguesa para alunos do curso de graduação em Letras do Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), de Santos-SP.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br