WILSON COELHO
AS MARGENS DO RIO

...e, na velocidade da correnteza, tudo por água abaixo, desde a nascente, como se não bastasse o veneno gerado nas pedras imóveis sob os seus pés aparentemente firmes. Pensava que a fé que remove montanhas não passava de artifício para camuflar uma hipocrisia gerada de imundícies e vilezas tais que o maior dos incrédulos seria incapaz de cometer.

- Não temos a quem pedir perdão! – sentenciava diante das águas que passavam entre as

margens imóveis e indiferentes.

Num lapso de tempo, desce uma balsa repleta de seres e não-seres ao caminho

predestinado das águas. Entre os seres e os que pensavam ser movimentavam-se pernas e órgãos encardidos de sorrisos e declarações de amor. Sinceras como o ódio.

- Monstros amestrados! Depósitos de espermas! Onde querem chegar? Ao paraíso? – gritava como se fizesse um discurso para o outro lado da margem onde havia um monturo empapuçado de pessoas, num primeiro momento, visivelmente sensíveis e, de certa forma, inocentes.

Por não ter conseguido caminhar sobre as águas, depois de inúmeras tentativas, toma o caminho das pedras até a margem oposta. Estava diante de um novo quadro de molduras tão intransponíveis quanto o fim do Arco-Iris. Deveria haver alguma maneira menos extravagante do que a de mudar de sexo para se chegar ao pote-de-ouro.

Saca de um estilete e abre uma brecha na tela diante de si, onde um grande pórtico surge luminoso e anunciando a grotesca situação.

- De onde vens? – interrogou um sentinela.

- Venho do outro lado da margem. – responde o mal humorado em questão.

- Estás enganado, senhor. Este é o outro lado da margem e, neste espaço, que é um outro,

haverá muitas chances para todos, mas apenas uma para cada coisa e, considerando o leque aberto de alternativas para que se possa errar, não se deve cometer o mesmo erro duas vezes porque da segunda vez o senhor será outro e o erro não será o mesmo, ou seja, a mesma merda. – retruca um clochard que descansa aos pés do pórtico.

A tela agora é um quadro vivo e, ao mesmo tempo, pintado de amor e reproduzido no erótico suor de pais e filhas, maridos e mulheres e – nas horas de descuido – a cunhadinha ou a sobrinha que ninguém é de ferro e os peitinhos e a vontade de amar amando no mundo das representações da volúpia socializada e a realização privatizada.

E já que todos nascem pelados perante as leis, qualquer aglutinação onde se podia imaginar um passo para a organização da grande parcela explorada e fodida de uma sociedade dividida em Carandirus e Itains-Bibis não acontece algo melhor que a manifestação rebelde por parte dos que valem o peso da burrice ( que me perdoem os solípedes eqüídeos). Daí brotam líderes por todos os galhos que para se manterem na árvore plantaram sementes de reproduzir liderados.

- Vai uma piriquita? – grita um camelo (ô) diante de sua mercadoria com validade vencida de vacas magras.

As bandeiras levantadas com gritos de guerra se emudecem e são transformadas em tapete onde, num total descontrole, se faz leilão de órgãos sexuais. Não se sabe mais o que fazer e sequer o que enfiar onde e tal, conforme a confusão de uma cabeça cheirando a mofo no delírio das drogas. Que droga! Se escapar desta, numa mais! Never more!, como já dizia o Pó, aliás, o Poe.

- Sim, eu juro! Não tenho nada contra as drogas, mas tudo contra os drogados que transitam a vida extasiados apenas por descobrir o barato da geografia de uma pocilga. Sim, o amor é uma droga! – confessava um jovem ajoelhado diante de um padre recém-formado, dançando uma aeróbica do Senhor e empunhando uma chibata.

O personagem sem nome, coitado, aquele com quem iniciei o texto, caminha um pouco assustado dentre a barafunda deste lado de margem porque lhe disseram que no princípio era o caos. Parecia mentira, mas agora tudo se confirmou: é mentira mesmo e qualquer verossimilhança é plágio mesmo.

- Machismo? – esperneia um transeunte. – sim, como as próprias. Exigem cavalheirismo, mas me recuso deliberadamente alimentar esta dependência. Sejamos todos educados, então. E então? Se homem ou mulher, viado e outros bichos, porque é o ecossistema e estamos mortos da mesma forma e o caminho da ressurreição é feito de pedras. Temos que carrega-las – as pedras, é claro – , explodi-las, e não há tempo para proteger ninguém em especial.

Ele sabia que não há proteção e somente quem pode segue em frente que atrás vem gente e quem não pode deve morrer sem ser fantasma parasitando a cruz. Mesmo assim, estava bem melhor agora, exceto as dores de cabeça, coluna, músculos e uma sensação de que ia vomitar a qualquer instante. Não era isso o que queria e tinha feito o impossível para merecer vida melhor, mas não a inventou e para tanto seria necessário que a humanidade pudesse comer-lhe os frutos. Pudor? Não, ele não os tinha e, diga-se de passagem, chegava a considerar o titio Marquês de Sade infantil. É dizer que não tolerava o moralismo que é a marca legítima de todo promíscuo.

- Vamos limpar essa zona! Matemos todos os Laios e os lacaios! Comamos todas as Jocastas e as jocosas! – desabafa nosso personagem, no fundo, um tremendo porra-louca.

Mas ele – além de não conhecer o nascimento da tragédia dos trágicos gregos – também não tinha lido Freud e não conseguia se punir. Onde já se viu usar alfinetes para furar os próprios olhos? Desculpe-me, caro leitor, mas eu sou assim mesmo, “as vezes, acabo me metendo na vida dos personagens e emitindo juízos de valores... Não posso é deixar que os personagens façam o mesmo comigo. Bem, voltando à zona, aliás, à vaca fria, o nosso personagem confessa que quando encontra mulheres grávidas em elevadores, filas de ônibus ou caixas de supermercados, tem de se conter para não esmurrar essas barrigas cheias de monstrinhos horríveis.

- Os fetos já se nutrem do ódio que a mãe lhe escorre pelo cordão umbilical. – explicava le personnage.

Ainda não é tudo, mas – no fundo no fundo – quando os monstrinhos já nascidos dormiam no colo de suas mães, ele sentia a vontade mais terrível de arrancar-lhe os olhinhos e enforcá-los bem antes que fossem capazes de serem inimigos da vida. Desejava acabar com estes antes que pudessem ser inimigos dos outros que pensam em melhores possibilidades e condições de trafegar neste planeta aguado de mares e lágrimas em torno da solidificada merdilha.

A vida? Avidamente. A vida mente. Claro, a gozava entre uma recaída e outra, experimentando a necessidade de mandar à puta-que-o-pariu aquilo que já era tarde demais para acreditar naquele que crê e dita: pecado originário. Mas cristão como os cristãos não abre mão de sua grande e sórdida estratégia: o perdão. Melhor assim, já que pedir perdão é muito fácil, principalmente, porque se abrem novas possibilidades para fazer tudo de novo, em nome de deus. Índios, negros, palestinos e pobres da geral em geral, coloquem a bunda na parede que ai vem chumbo grosso! O Vaticano pediu perdão. Cuidem-se vietcongs! Os Estados Unidos da América e a cocô-cola pedem perdão ao Vietnã. Quem pede perdão em nome de deus já se sente perdoado, consentido pelo silêncio da resposta. Lágrimas de crocodilo fingindo o arrependimento o perdão substitui a responsabilidade de reparar o erro, devolver o que foi roubado, dividir e prometer um “never more”, pois a lógica da violência nada significa perto da idéia de nunca mais atuar com a violência da lógica cartesiana e irritantemente cristã. Cogito ergo sun. Penso que sou perdoado, logo, insisto, porque sem culpa deus não existe. E se pudesse existir não haveria por que senão como uma ficção.

Sim, o nosso personagem não morreu afogado e talvez transite impunemente entre as quatro paredes de alguma universidade, lecionando a comodidade e tentando diplomar o espírito dos loucos ou – quem sabe – esteja a fazer planos nos corredores dos palácios governamentais, parindo leis e brincando de representar os que ficaram às margens do rio, como meros espectadores condenados definitivamente à marginalidade.

 
Wilson Coelho é dramaturgo, escritor, graduado em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo