Vítor Oliveira Jorge

Electri-Cidade - Index

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ler

 

No meio do verão, ler.

Sobre o sofá fresco do verão, ler.

Com borboletas atravessando as paredes da casa,

Com o verão de beira a beira.

 

Ler. Estender o corpo, os crisântemos

E as margaridas da imaginação,

Percorrer o soalho dos teus passos

Dirigindo-se de um verão futuro a um verão passado.

 

Estender a pele. Deixar subir os poros

Entre os pólens das horas, suspensas acima do telhado,

Lá em cima.

Esticar os músculos até aos horizontes do verão,

Acender as lâmpadas do leite fresco.

Fresco e sadio, leite sobre leite.

 

Espreguiçar a lactose do verão,

Ouvindo ao longe as abelhas a fabricar o mel,

 

E as avós a fazerem as compotas na cozinha,

Sem jamais virem interromper o livro,

Sem discernirem o presente nos seus óculos redondos,

Inócuas e bondosas como globos.

 

Atravessar o verão como uma nave,

Uma nave leitora, nua como nuvens brancas e sedosas,

E ouvindo os sons dos anjos cantores

Nas catedrais ao longe, suficientemente longe

Para não interromperem o que se passa,

Este transbordar de papoilas, este esvoaçar de linhas.

 

Os perfumes do cabelo. Ler no couro cabeludo,

Ler na cintura, nas espáduas, atravessando paredes,

No meio da frescura, erguer os bolbos da mais perfeita

Juventude, alegria.

 

Ouvindo ao longe as baterias, os risos dos jovens

Indo para a praia.

São os condimentos das compotas, dizem

As avós.

Temos de ir buscar os peixes pelas guelras

Podem estragar-se sobre o molhe.

 

Sim, mas deixa-os luzir enquanto possível.

Longe. Pedem as margaridas.

E os iogurtes brilhando sobre as mesas,

As gelatinas da leitura tremendo ao de leve

Quando passos do passado vêm atravessar o soalho

Invisíveis, caminhando ainda com areia e peúgas.

 

É belo, dizem as jarras, podermos assim

Atravessar as paredes, as janelas, as cortinas,

E aparecermos do outro lado de nós mesmas

Impecáveis, limpas, lácteas como o corpo

Da leitura.

 

Ler. Dobrar as duas pernas sobre o sexo.

E ficar, ficar, ficar, docemente ficar.

 

Temos de ir buscar os molhos de ramos amarelos

Antes que sequem.

 

Os teus pés. A tua cabeça. Os teus cabelos.

A tua leitura, a possiblidade do verão

Passar sobre as espáduas e continuar num regato

Verde na sua alegria de atravessar a casa

 

E poder continuar por qualquer lado

E poder ser uma serpente viva, interminável,

Descrevendo as eternas curvas e contra-curvas da leitura.

 

É belo, dizem os boiões para as avós.

É belo estar na cozinha, dizem os tachos de cobre a brilhar.

 

Pois que brilhem o mais longamente possível

Que havemos antes de acabar de ir acabando

De ir buscar algo ao alpendre, levando o livro

 

Para a frente, e arpoar a leitura pelas guelras,

Trazer a sua frescura para as as superfícies de mármore,

O corpo lácteo para a cozinha,

 

Para o brilho dos boiões, o sabor das avós,

As sombras e os brilhos dos magníficos

Iogurtes.

TriploV, 1.11.2008

Conjunto de 10 poemas para o livro
ELECTRI-CIDADE
(a publicar em 2009)

Vítor Oliveira Jorge. Nasceu em Lisboa em Janeiro de 1948.
Formou-se em História na Faculdade de Letras daquela cidade em 1972.
Desde Setembro de 1974 é docente da Faculdade de Letras do Porto, onde se doutorou em 1982.
Poeta, arquéologo, ensaísta, dirigente associativo, tem tido uma actividade diversificada.