::::::::::::::::::NUNO REBOCHO:::::::
DE BACALHAU: UMA FEIJOADA COM SABOR ALGARVIO

Nanja que a cidadania da feijoada de bacalhau seja ribatejana, trazida que foi por apreciadores desde o seu berço algarvio até às famas pantagruélicas de Samora Correia: mesmo que, uma vez outra, encontremos as encruzilhadas do receituário português, com o rincão da lezíria a caracterizar-se pela inventiva e pelo espírito aberto às novidades que lhe chegam. Razões culturais para tanto têm-nas as gentes: o Ribatejo é corredor pelo qual passam desvairadas correntes, esta e outras, quer no que toca à degustação como no mais.

Amesendou-se por estas paragens porque lhe conveio o ambiente, de resto a margem sul do Tejo esmera-se em feijoadas porque o feijão é companhia acostumada na dispensa. Por tal, a de bacalhau não viu portas trancadas. Tomaram-lhe o gosto no tempo em que o bacalhau era a pataco e afeiçoaram-se. E ficou, subsistiu quando passou a “infiel amigo”. Ficou como mais uma das dietas de beiço grande, com feijão de empanturrar.

A fama de “samoriana” (igual a escusadas outras fanfarronices que só beliscam a boa cozinha que por lá se encontra – é só seguir o olfacto) não deslustra o pitéu mas não é critério de verdade: tanto quanto me industriaram os roteiros, a feijoada de bacalhau tem patente algarvia e é derivativo de outras feijoadas construídas de pescado salgado (tintureira ou atum de barrica) com que os do “litoral” pirraçaram os da “serra” e os do barrocal. Certo é que se vingaram da indevida “apropriação” pintando de pescadinhas de rabo na boca o que não era mais do que insuspeitos bacalhauzinhos que ainda lhe visitavam a costa em anos não longínquos (décadas de 50/60). Mas isto é outra estória.

A prosápia de Samora Correia, que eu achei em repasto à beira da sede da Companhia das Lezírias, deu azo a discussão viva a terminar com a confissão da autora: aprendera o jeito em terras algarvias, mas acrescentara maneiras suas. Um maneirismo, portanto. Que estava de aplausos, lá isso estava – a cozinheira merece encómios. A cozinheira e o restaurante. Mas o seu a seu dono.

Quererá quem me ler saber como é que isto de feijoada de bacalhau. Não tem segredos. Vamos a isto: feijão encarnado, demolhado. De um dia para o outro, para lhe humedecer os cotilédones, abrandando-os para a cozedura. As mulheres deixavam o preparo quando se afoitavam para o leito - nas despedidas da cozinha, que depois de um dia outro vem. E a feijoada, de demorada fervura, justifica que se comece a fazê-la com as primeiras manobras do fogão. Na panela, o feijão a cozer com pouca água, a que cobre a quantidade, um fio de azeite e louro. Deixai-o estar até que o corpo do feijão coza.

Lá mais para diante, outra panela vai ao lume: para cozedura de linguiça cortada em rodelas magras, entremeada, cenoura e cebola rodeladas finas. Junte-lhe uma mão cheia de ervilhas. E o bacalhau? Esse, convenientemente demolhado, também coze em separado..

Mal o feijão entre no seu ponto, convém aprimorá-lo: com tomate em quartos, alho picado e uma folhita de louro. O olho vai dizer o tempo em que a mistura cozida no segundo recipiente marcha para o tacho (de preferência de barro) - que então se misture no feijão o bacalhau, a cenoura, a ervilha, a linguiça, a entremeada. E se acrescente um poucochito da água do bacalhau.

Soam os alertas para o tempero: sal, pimenta e salsa, nos conformes. O que resulta é prazer divino.

Nas rotas do sul, encontraremos outros “bacalhaus”. Deles falaremos de viagem.

Nuno Rebocho