MARCO AQUEIVA::::..........:

Retornar ao que é perene e distantemente mais próximo de nós

La poesia pone al hombre fuera de si y, simultáneamente,
lo hace regresar a su ser original: lo vuelve a sí.
El hombre es su imagen: él mismo y aquel otro.
Octavio PAZ

O termo romancista distingue um escritor de obras ficcionais em prosa. Classificar uma obra como romance pode atender a uma disposição prévia, como aquela responsável por determinar a organização das obras literárias nas estantes ou gôndolas de uma livraria, porém desconfio que o termo romance não compreende mais que os esforços pragmáticos de catalogação comercial e bibliográfica, de livreiros e bibliotecários. A experiência literária supera qualquer arranjo ou presunção taxonômica, que é o que distingue um estudo cosmológico ptolomaico da cosmologia relativista. (E já estou a pôr a estrela à frente da luz em relação ao livro que pretendo brevemente comentar...) Efeito menos nocivo que a catalogação talvez seja admitir que romance faz alusão a um assunto geral, aplicado para todo escrito literário que não vem expresso em versos. É que toda tipologia – incluindo as mais elásticas e amorfas – deixa vácuos nos quais a realidade se move para ocupá-los. Ou, dito de outro modo, é mais comum do que se pensa que a configuração literária de um texto resista a lógica conformadora das teorias fechadas.

É um lugar comum da literatura e da crítica o postulado segundo o qual os monumentos literários compõem uma ordem de certo modo ideal, que se amplia e se transforma na medida em que se agregam ao cânone novas obras, dotadas estas de grande e suficiente energia que valoriza e intensifica aquelas obras consagradas como canônicas. Uma boa história ficcional, em que os leitores se identificam com a experiência comum das personagens, prova apenas que o continente da ficção é bem maior que a imitação servil da natureza humana. A natureza narrativa da ficção e o aspecto imitativo consagraram romances como os de Balzac. Mas já há algum tempo que a forma literária romanesca, baseada em fórmulas ficcionais em que personagens agem em direção a um desfecho, não satisfaz a escritores e leitores.

É por isso bastante provável que, tendo lido as primeiras páginas, leitores de Retornar com os pássaros (Leya, 2010), de Pedro Maciel, venham a indagar-se: – cosmologia num romance? – qual o sentido das informações científicas apresentadas sobre a constituição universal da natureza? Ou é igualmente provável que haja leitores que perguntem: – em que momento começará o romance? Ou ainda: – aonde irá terminar esta narrativa enciclopédica? Arriscaria dizer que o terceiro título do autor de a Hora dos náufragos satisfaça menos a leitores da tradicional ficção romanesca que leitores pouco acostumados à estrutura romanesca convencional.

“Há dias em que avanço ou retorno no tempo para me reencontrar. A partir de certo ponto não há mais qualquer possibilidade de retorno. É exatamente esse o ponto que devemos alcançar.” (27) No romance Retornar com os pássaros, em lugar da esperada ênfase na narrativa, o texto aposta na busca: a escolha, o gesto de liberdade e recusa; o caminho como excentricidade, disseminação e errância de opções e sentidos. Busca que combina informação científica e revelação mítica com expressão poética. É um texto perturbador na medida em que experimenta novos caminhos para a prosa ficcional. É um texto ideológico que parte de conceitos ou posições prévias, fato, a nosso ver, já atestado desde o início do livro, combinando simultaneamente os modos poético e irônico da expressão literária.  Poético e irônico desde a epígrafe, assentada sobre o fundo escuro de duas páginas, como a evocar o kósmos em toda sua ordem universal e magnificência, onde reluzem as palavras fastas de Horácio: “Ergui um monumento mais duradouro que o bronze // mais alto que a régia construção das pirâmides (...)”. Irônico e poético no Prólogo, não sem certa ambiguidade, como a descompor a epígrafe citada, quando lemos: “(...) não me iludo mais em plena luz do dia. Não mais disfarço a minha loucura. Rio de mim mesmo (...) Vejo que nada tem mais sentido. Improviso fugas. Corro do tempo parado. Memorizo manhãs de um não tempo. Vislumbro coisas invisíveis. Quero o que era infinito. Retorno com os pássaros. Experimento sensações orientais. Desoriento-me no ocidente. Não lembro quem sou nem onde estou. Nem sempre regresso de minhas viagens.”

Nem sempre regresso de minhas viagens. O Prólogo já fala ao que vem Retornar com os pássaros: negar afirmando o que acena ser uma aventura ontologicamente literária; radicalizar uma busca, baseada na opção pelos valores compossíveis, muito além das contradições que sustentam diferenças e impossibilidades; atravessar as páginas já escritas de nós mesmos; ultrapassar os territórios da memória e da especulação filosófica, o inferno de Orfeu e Rimbaud.  A palavra e o lugar destes poetas foi alargar em seu tempo e lugar a palavra poética. Retornar com os pássaros também o faz esse alargamento em direção à poesia: além da textura do romance (ou, traindo-me no raciocínio, pelas malhas e sortilégios do próprio romance, que talvez seja ele também um além das fronteiras do gênero), mais além de outro lugar, outro tempo, qualquer ilusão. É assim que, por todos os efeitos, é a literatura que se alarga sobejamente com este texto de Pedro Maciel.

“Monumentos imperecíveis e feitos imortais, a própria morte e o amor mais forte que a morte serão como se nunca tivessem acontecido.” (38) “Quase tudo é passageiro. O que permanece, os poetas o fundam.” (44). Retornar com os pássaros – seja este texto compreendido como o monólogo vertiginoso de uma personagem em crise (como o anatomizaria talvez um Lukacs), seja como a expressão pungente de um eu lírico que assume o risco de remontar-se às origens (em seu sentido mais amplo possível) – certamente levará os leitores que pulsam com as palavras e o kósmos a repensar o tecido ludicamente vivo que pode ser o romance, este romance. Ele o é: literal e estruturalmente lúdico. Oxalá cada um dos leitores possa compreender como o texto e a vida podem ser estruturas remontáveis; e que o sonho e a palavra, cada um de nós pode secretá-los em silêncio neste regresso com os pássaros.

Marco Aqueiva, poeta, autor de Neste embrulho de nós (Scortecci, 2005), vencedor do III Prêmio Literário Livraria Asabeça, é professor de literaturas brasileira e portuguesa no ensino superior. É o idealizador, editor e administrador do Projeto Valise 2008 no endereço http://aqueiva.wordpress.com/