LUCILENE MACHADO
Coreografia invisível
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Coreografia invisível
O ciclo de um vocativo
Escutando a vida
Vinho tinto
As horas
No silêncio das retinas
Sequência de sonho
Do coração de uma mulher
Jornada da alma

Vinho tinto

Da boca do homem escorreram frases raras. Perfeita masturbação da língua. Nenhum defeito semântico na combinação. O verbo, que tecia o fio condutor, estava no presente do indicativo, tempo das verdades universais. Seria um poeta?

Ela suspirou profundamente e ajeitou-se na cadeira – havia uma inquietação em seus movimentos – sentindo as frases subir-lhe ao cérebro em espirais e promover caracóis em sua cabeça. Se olhasse firmemente nos olhos dele, cairia em êxtase.

A mulher de olhar úmido estava desconcertada. Há muito, não alimentava os desejos que agora duplicavam e reduplicavam. No rodopiar da conversa, a imagem casta de um pensamento antigo dilatou sua íris e um pequeno radar detectou o perigo. Súbito uma bifurcação: acolher as palavras ou remar contra a ternura? O olhar negro apalpava seu corpo. Formigação de imagens e possibilidades. A vida é feita de escolhas, e ela, apesar de resistente, sempre cedera ao amor. Talvez por isso, os olhos úmidos banhados por uma lágrima que não escorre. Diante das circunstâncias, preferiu proteger-se do olhar com força de laço.

Levantou-se com dificuldades como se o corpo fosse uma grande montanha onde pesam as escolhas. Na boca, um último gole de vinho para ingerir a insatisfação. Ele não insistiu para que ela ficasse. Teve esta oportunidade quando o lenço de seda esvoaçante, empurrado por um vento invisível, escorregou de seus ombros, mas não o fez. Sem demonstrar o ressentimento, ela sorriu com todos os dentes e arrastou o destino como se arrasta um fardo.

Caminhou pelas ruas com um lento desejo martelando o corpo. Se ao menos ele percebesse, se ao menos adivinhasse o porquê de seus olhos difíceis e aparecesse em sua frente com um botão de rosas, ou lhe tomasse a mão e andassem pelas ruas em meio a sirenes, músicas, risadas... Incorreriam ao ridículo? Absolutamente. Nada pior do que não ser correspondida. Nada pior que a distância afastando dois corpos que podem não mais se encontrar. Ele não moveu os pés do lugar. Individualista que era. Nem deve perceber que a terra gira. Como pôde supor que ele fosse um poeta? Deve ser um ilusionista. Sincero na arte de iludir. Depois a magia se desfaz e resta você com aquele complexo de imbecilidade.

Mas, e se fosse de fato um poeta? Tivesse a capacidade de esticar o tempo, amor agudo em sustenido ultrapassando todas as barreiras... Talvez inventasse uma música para ela, uma música que dobrasse seu dorso e lhe arrancasse todos os beijos possíveis e etc, e etc., atitudes demasiadamente conhecidas para que valha a pena descrever.

Suposições! Não poderia encaixá-lo nesse perfil. Um homem com essa sensibilidade conheceria as regras femininas. Sair quando se quer ficar, é regra antiga. Não, não devia pensar assim, ela é que era hipócrita, carregava aquele coração intrincado e cheio de remendos. De que adiantou recolher o corpo se o espírito persistia em permanecer diante da luz amarela dos olhos dele?

 

Da boca da mulher, não escorria o verbo fácil da compreensão. O tempo era mais que perfeito, mas nenhuma conjugação profética, nenhuma promessa a se fazer sentença. Era movida por uma ciência estranha, próxima e distante. Elegante escultura de concretagem fria e, acrescente-se a isso, beleza na medida exata. Aproximava-se das deusas, em seu encanto, fêmea de traços redondos e olhos afastados. Seria uma aventureira? Que fosse! Correria o risco, inclusive o de ser esculpido pelos elípticos caprichos dela.

O tempo breve para se apreciar uma garrafa de vinho, foi o tempo que o homem teve para observá-la. Os lábios tingidos de um rosa-gerânio poderiam ser indícios de paixão vindoura. Poderia ser o vinho tinto, poderia não ser. Mas nada, nem voz embargada, nem tremor de mãos a denunciava. Talvez estivesse acostumado a mulheres que jogam o cabelo para trás, deslizam as mãos pela mesa como se estivessem procurando um lugar no mapa e, subitamente, as pontas dos dedos se tocam. Depois, os dedos dele fariam o caminho inverso, procurando algum lugar no mapa da pele dela.

Entretanto, a moça pousava o copo na mesa com segurança e, ria-se quase acanhada. O olhar úmido encharcava-se, a água quase chegava as bordas ameaçando alagar todo o rosto, mas como num milagre, o fenômeno das lágrimas não ocorria. Uma leitura difícil de se fazer. Exigia conhecimento científico. E ele empenhado em recorrer a artifícios lingüísticos para ajustar o vocabulário, tendo o extremo cuidado de preservar ambigüidades.

Segundo teorias masculina, mulheres gostam de frases duvidosas. Ainda assim, quando brotava a voz, supunha-se navegando nas ondas de uma quimera. Tentava retomar o discurso com adjetivos mais ousados, mas por que se resguardava? Um pouco de atrevimento não seria mal algum. Mas, e se ela não acolhesse os significados? E daí?

Daí... era forte o bastante para suportar. Bem, naquela idade seria desastroso não prever a reação de uma mulher. Uma rejeição é uma dor. Ela, cada vez sorria menos e tinha a voz mais ligeira. Fingiu não entender algumas vezes, só para vê-la novamente abrir a boca como uma ostra cheia de pérolas, teve vontade de botar o dedo ali, naquela área úmida do mapa. Quase teve o ímpeto, quando o vento soprou nos panos azuis caindo sobre o colo. Gestos desgovernados tentavam encobrir o imprevisível. Hora de cair, num susto, daquela ponte movediça e ferir toda castidade. Mas, a maldita mania de viver a vida na exata medida que ela permite, dentro das fórmulas, dentro do correspondido, o impediu.

Ela levantou-se, tomou o último gole de vinho e foi-se. Ainda o olhou firme, pela última vez, como se olha uma noite negra e traiçoeira.