JÚLIO CONRADO.

À VOLTA DO DESEJO
num livro de Ana Viana

A escrita poética de Ana Viana é um elaborado repto à inteligência, mas também à paciência, do leitor. Ela exige, antes de tudo, leituras não apressadas, reflexão, utilização de trilhos interpretativos por contextualizar que levem ao menos a resultados surpresa caso não conduzam a soluções surpreendentes. Quem rejeite a abordagem demorada de um discurso aparentemente hermético como o de Ana Viana e tente alcançar cedo de mais o estado de fruição, está perdido. Cada poema faz apelo a um ritual de leitura imune ao tempo e a procedimentos de análise naturalizados pela habituação. Reclama, por conseguinte, luta, jogo e um pouco de loucura, antes da recompensa.

Nesta desmedida medida, Sinal Breve oferece-se aos seus eventuais receptores como uma aventura poética de ressonância "provocatória". Sem o bramido da fúria nem o cínico hálito dos humores açaimados, os sentimentos e as emoções são obrigados a preitear a economia verbal que os mantém afastados da nervosidade exuberante tradicionalmente mediada pela voz que os transporta até ao exterior. Estando nós em face de um caso amoroso clássico em que um eu se dirige a um tu para de algum modo se ponderar o estado da relação (do ponto de vista do eu), os arfares turbulentos, as mágoas inclementes e os júbilos da partilha vislumbram-se através de um trabalho de simbolização do discurso que não deixa qualquer margem de manobra a uma leitura e a uma interpretação óbvias. E, todavia, nada há de mais estimulante neste livro do que tentar responder ao repto da autora segundo as suas próprias regras, ou seja, assaltar a cidadela onde se abrigam os códigos que supostamente dão acesso aos sentidos desta poesia e decifrá-los para nosso inteiro comprazimento. Arrisco um exemplo:

é quando te olho por ti e não pelo que em ti existe de mim
[ ou do que em mim gostaria

é quando suspendo esse voltar a mim e me fico nesse espaço entre

que mais longe vamos

O poema desarticula o mecanismo da percepção imediata com a expressão "é quando te olho por ti". O verbo olhar abre um duplo sentido: "te olho", remete para um exercício raso do olhar - o sujeito enunciador observa o sujeito enunciado e o leitor testemunha essa observação neutra sem que lhe acuda à pele qualquer espécie de arrepio; "olho por ti", já se reclama da subjectividade generosa de quem se obriga a uma quase maternal autoridade protectora. Logo, "é quando te olho por ti" agride a normalidade sintáctica mas alarga o horizonte que significa. Os sentidos cruzados deste laço de ternura contribuem para tornar a blindagem do poema menos invulnerável. Avançando um pouco, ocorre anotar uma deslocação introspectiva entre uma certeza, o "que em ti existe de mim" e uma aspiração, "o que em mim gostaria". É criado um desequilíbrio pelo condicional "gostaria" que introduz uma noção de desconforto deixada escapar como inconfidência pelo sujeito de enunciação. Esta subtil dialéctica não conhece desenvolvimentos: é travada pelo efeito de suspensão que recai sobre o condicional diluído "nesse voltar a mim" pragmático que localiza o "espaço entre" como aquele onde "mais longe vamos", não deixando subentender o poema se o "longe" alcançado é um longe relativo ou o longe absoluto.

O exemplo que precede veio a talhe de foice só a título de ilustração de como é possível retirar prazer da leitura de um livro de escassa ludicidade, agreste ante qualquer tentativa de abordagem desprevenida, mas que supera essa característica despertando curiosidade intelectual e impondo a beleza estética das suas composições de construção verbal enxuta e arrojada, arte em que Ana Viana é exímia.

Trata-se, pois, na primeira parte, de um discurso amoroso explícito justificado pela linguagem implícita que intensifica o "mistério" central a esse mesmo discurso, isto é, saber-se, na prática, quem ama quem, quem ama como e quem ama o quê. Mas isso seria querer penetrar fundo na essência desta poética, invadindo território privado e cujo acesso, aliás, nos é elegantemente recusado por uma escrita vigilante cujas combinatórias, cumprindo bem a sua função dissuasora, são, em si mesmas, portadoras do talento de quem, alisadas as "rugas da memória", faz "da síntese uma obra aberta" .

E por aqui nos aproximamos de uma segunda metade do livro menos interessada na objectualidade do desejo e mais empenhada na reflexão sobre o desejo. Deixa de haver um tu, a fala do poema perde o seu destinatário directo, o solilóquio remanescente espera agora do vasto mundo a assunção do papel de novo interlocutor. Também neste domínio Ana Viana mostra a sua garra inventiva_ poemas breves, sínteses perfeitas, obra aberta.

apagou-se o homem no nós

e com ele o medo e o desejo embandeirados em dever

.....................................em vez de amor  

Num registo e no outro a poesia de Ana Viana dá-nos fragmentos de uma beleza estranha, desafiante em sua semântica subliminar, num conjunto de textos susceptível de tentar os mais cépticos a debruçarem-se sobre ele com o empenho dos pesquisadores de pepitas de ouro percorrendo o deserto "na nostalgia de um tempo em que a areia ainda pedra nos unia".














Do prefácio a Sinal Breve,
de Ana Viana,
Ed. Pasárgada/Ardósia, Lisboa 2006