JÚLIO CONRADO
Sete contos de fúria

António Vieira
SETE CONTOS DE FÚRIA
S. Paulo - Globo 2002

António Vieira, escritor português que publica no Brasil, autor de Sete Contos de Fúria, reclama-se discípulo de Borges e de Kafka.

Em todos os contos do livro, salvo uma breve excepção, há uma dinâmica de digressão e uma arquitectura de transgressão com base em instantes prodigiosos de revelação individual e de desassossego universal. O movimento é estrutural à narrativa, o estremecimento subversivo percorre-a de lés a lés. O A., com efeito, esmera-se na inscrição, no nexo alusivo, de traços difusos de sentido que rompem com os equilíbrios historicamente naturalizados de certos ritos que comandam a vida quotidiana, notadamente os regidos pelo pragmatismo religioso judaico-cristão ou os convocados pela memória dos deuses pagãos "pré-dinásticos".

No primeiro conto, O grande luto, o esforço da viagem, aventura e descoberta dirige-se ao cosmos. Tudo tem origem num procedimento profissional de rotina: o astrónomo experimenta o novo telescópio dotado de dons extraordinários de prescrutação do céu. De súbito, o casual da tarefa funde-se brutalmente no causal da humanidade, ao ser detectado em recôndito nicho do universo, nem mais nem menos, o cadáver de Deus. A teoria engendrada pelas luzes modernas como panaceia especulativa destinada a sustentar o ainda indemonstrado tinha agora ali a prova cabal de que precisava para se consumar: Deus estava morto e bem morto e o seu corpo inerte à mercê da tentação voyeurista de um qualquer curioso disposto a indagar a localização do insólito despojo usando a poderosa lente do "Hale".Ciente, porém, da incomensurável importância do seu achado, o astrónomo referido, Efraim, resolveu, no imediato, guardar para si o que descobrira e reflectir sobre se seria uma boa ideia dar a conhecer ao mundo o que só ele sabia. "Excessivo era o ónus de divulgar tal prova, difícil o dilema ante o qual se encontrava." De reflexão em reflexão, de angústia em angústia, de vertigem em vertigem, Efraim viu-se cativo de um esmorecimento sem paralelo ao calar o segredo cuja divulgação não estava, de todo, fora dos seus propósitos; temia, contudo, as reacções terríveis "dos da sua tribo", que sopesava com lucidez e medo. Talvez, porém, Deus não estivesse bem morto mas apenas o parecesse, mesmo tratando-se de testemunho obtido através de uma lente de precisão tão confiável como a do "Hale", porquanto não é de excluir a hipótese de ter sido a Sua mãozinha moribunda, com a conivência de um dos seus agentes mais capazes - o mar -, a empurrar Efraim para as águas, que o afogaram mais ao seu segredo, garantindo ao supremo Ente a sobrevivência no imaginário dos terráqueos por mais uns tempos.

O conto em que melhor lograda é a síntese das influências do A. intitula-se Névoa Sobre as Origens e remete irresistivelmente para A Metamorfose, mas com variáveis marcadamente inovadoras de sinal oposto. Na novela kafkiana, metáfora do drama da in-significação dos marginalizados, Gregor Samsa transforma-se em insecto de um dia para o outro; no conto de António Vieira o movimento, distendido no tempo, é de ascensão social, aculturação, integração - e não de exclusão - de Hapax. Este ser híbrido,"não-humano,quase humano", paradigma de si mesmo, aprisionado na floresta por armadilha, essa sim, trabalho de mão humana, é admitido na família do seu captor como "animal de estima, bicho central à sua atenção durante uns tempos, motor renovado dos seus risos". Dotado de inteligência e argúcia "humanas", Hapax identifica-se facilmente com os hábitos da família de acolhimento, no seio da qual é tratado como igual, e de tal maneira a assimilação é perfeita e o reportório emocional idêntico que quando chega a idade do amor ele se sente tocado pela transformação física de Flori ao confessar que " ...em metamorfose a desejava como se pudesse esperar ser entendido".Pelo meio, uma relação borgeana de Hapax com os livros e a literatura, e expedições ao mar e à montanha, esta última para assistir à passagem do cometa Halley, determinam comentários de natureza filosófica temperados de ironia, humor e irreverência que tornam este texto o mais optimista e divertido da colectânea.

Cruel digressão pelas estações do amor, Eôs conta a história e Títonos e Eôs, detendo-se o A. com cirúrgico engenho na descrição do arco de vivências que vai do esplendor vital à tragédia do envelhecimento, num quadro de soberania da Mulher devoradora, castigada por Afrodite à eterna juventude, sobre o homem sujeito às leis do tempo, vítima do processo de transfiguração que culmina, igualmente sob os auspícios de Kafka, na sua passagem à condição de cigarra depois de ingerir à força, pela mão de Eôs, o conteúdo de "um frasquinho selado, com um número de código".

Em O Mosteiro, Ana Mataplana, monja escritora, última sobrevivente no espaço conventual depois das mortes das irmãs Beatriz e Eulália, entrega-se, com espírito crítico, a leituras ousadas dos textos sagrados e a comentários escritos nos quais questiona o sentido da vida e o significado da morte, evadindo-se assim de um mundo fantasmático em que a solidez da literatura acaba por disputar às pedras tumulares o primado da posteridade.

Vasta e complexa panorâmica do terror global por via da propagação sem freio de uma praga mortífera que, no globo terrestre, apenas poupa indivíduos de estatuto religioso não-monoteísta, A Undécima Praga cria cenários de apocalipse onde as relações de poder são postas em causa, os povos destruídos, o equilíbrio entre as grandes potências alterado, e os cientistas impotentes para interpretar a química do mal. O sábio que finalmente descodifica a epidemia pelo estudo comparado dos resultados da devastação é, ele próprio, destruído por aquela, no momento em que se preparava para apresentar à comunidade científica a sua descoberta. Sintoma de tempos que estão a chegar?

Breve inflexão para temática orweliana, Vida e Morte de Argos constitui a excepção atrás referida, na medida em que à errância por territórios de desmesura, novidade e de abertura a novos horizontes intelectuais comum aos outros contos, se opõem aqui asfixia e enclausuramento, num "confronto de homens com máquinas cada vez mais parecidas com homens". A máquina é Argo, o robô-carcereiro incumbido da educação de três prisioneiros, um e outros sob a alçada de um big brother omnipresente. É talvez a peça em que Vieira parece menos à vontade: lida magistralmente com os grandes espaços mas, na prisão de segurança máxima, a magia rarefaz-se como o sol e as estrelas entrevistos por "um polígono de céu a prumo".

A Restituição é uma história à roda do falo gigantesco de Osíris descoberto no deserto - peripécia que se constitui émula do achado de Ifraim, no conto inaugural - perturbadora e imperturbavelmente invulnerável à acção das bombas fragmentantes com que o poder local intenta, em vão, eliminar o impúdico monumento, resignando-se a voltar a enterrá-lo no sítio onde fora encontrado. Outros, porém, acreditando que a restituição da peça em falta no corpo morto do deus contribuiria para restaurar, pujante, o mundo da vida e influenciar para melhor o rumo das sociedades, meteram clandestinamente ombros à ingente empresa de realizar o seu transporte até ao local onde se presumia que estivesse sepultado Osíris, privado do apêndice fundamental. Que deus apreensivo mas mais poderoso que Osíris se apressou a impedir a reconstituição física da divindade desmembrada? Que desígnios concorrenciais estiveram na origem do naufrágio do navio que transportava a preciosa carga? O conto não o diz. Só se sabe que o falo de Osíris ficou sepultado no lodo do Nilo, muito longe do local de destino, provavelmente para todo o sempre.

Possuidor da receita para ultrapassar os mestres sem os trair, reiventando-lhes a lição, e senhor de uma cultura obtida da demorada – e, percebe-se, apaixonada - leitura dos clássicos, António Vieira, neste livro, mantém alta a fasquia de valoração do imaginário colectivo de fundo místico e mitológico. A escrita rigorosa, o léxico rico e a estimulante inventiva, convergentes, inflamam de sedução e espírito de partilha o exercício da leitura .