Judite Maria Zamith Cruz

A PERSPECTIVA ARQUETÍPICA DA MENTE
O inconsciente colectivo de Carl Gustav Jung (Index)

3.1. A sombra de Doutor Fausto

É referido pela biógrafa Jaffé (1) que o avô do próprio Jung, o senhor Carl Gustav (nome dado ao neto), poderia ter sido filho do próprio Goethe (1749-1832) e da segunda esposa de um homem chamado F. I. Jung.

Jung sentiu um enorme fascínio pela obra-prima Fausto de Goethe, onde a sombra representa o tentador como uma imagem de dissociação: ausência de associação entre o «eu» e o «outro (eu)».

A dissociação é uma divisão, por exemplo, entre o «bem» e o «mal». E Fausto é um drama em verso em que Goethe (2) retrata um conto fantástico sobre esse conflito humano em que se representa claramente o «mal».

Reescreve-se adiante Fausto a partir da ópera francesa de Charles Gounod (1818-1893), cuja síntese segue o texto de Goethe e o resumo e crítica de Jeanne Suhamy (3) e em que Marguerite é a menina virtuosa condenada à morte por infanticídio:

O Doutor Fausto achava-se envelhecido quando esvaziou a sua taça com veneno e conversou, longamente, com o demo... Queria morrer depressa.

Perante o acutilante monólogo, o maligno apareceu na pessoa de Mefístófeles para lhe propor um célebre pacto, impeditivo de morte certa com um vulgar produto tóxico. Levar-lhe-ia, sim senhor, a alma. Em troca, prometia dar-lhe antes a juventude, não se esquecendo de lhe mostrar uma bela jovem, Marguerite. Ela poderia ainda ser sua esposa? Pois sim. Mas como?

Não muito longe dali, a guerra estava a ser preparada. Um jovem militar chamado Valentin, irmão de Marguerite, seguia direito à desgraça. Esse mancebo confiava a irmã ao seu amigo Siebel. Acreditava que ele a podia proteger, uma vez que a sua ausência poderia ser prolongada.

Entretanto, uma canção anunciava a morte na guerra dos jovens moços, entre os quais Valentin. O cantor feliz não seria outro senão o diabo tentador. Reconhecido, foi expulso por Valentin que na verdade não tinha perecido.

O diabo não desistiu, qual touro enraivecido! Foi preparada outra ocasião perfeita para Fausto se aproximar da jovem. Seria depois da missa. Mas Marguerite nem o quis por perto, tratando-se de um desconhecido. Ela era uma menina virtuosa e Fausto um estranho.

A insistência de Satanás não tinha paralelo. Outro novo modo de aproximação seria arquitectado por Mefístófeles: um ramo de flores entregue pela mão de Siebel a Marguerite, sem esquecer um cofre de jóias colocado na sua porta. Em uma habitação tão divina, o doutor Fausto antecipava «a morada casta e pura».

Como outras meninas do século XIX, Marguerite enfeitou-se com as jóias e, caindo nos braços de Fausto, cantou no duo de amor - «Deixa-me contemplar a tua face».

E assim Marguerite ficou grávida do idoso «senhor doutor». No entanto, temia a reacção do irmão.

Entretanto, Valentin já voltava da guerra. Ele não podia crer no sucedido durante a sua ausência - Marguerite apaixonada por Fausto.

Valentin decidiu vingar-se de Fausto em duelo. Todavia, pouco podia ser feito. O diabo protegia «o doutor» e o militar foi derrotado sem esforço, amaldiçoando a pobre irmã. O duelo foi brevíssimo.

Fausto desejava rever Marguerite, mas Mefistófeles refreou o seu ardente desejo. Afinal, de pouco teriam servido as suas súplicas para voltar a vê-la. Ela acabara de ser presa por ter morto o filho de ambos – uma alma.

Fausto quis tirá-la da horrível cela em que a colocaram mas, como era acompanhado pelo Diabo, a prisioneira repeliu-o.

Marguerite morreria e Mefístófeles ganharia outra jovem alma.

Marguerite é o eterno feminino (4) - estas foram as últimas palavras de Goethe no segundo volume de Fausto. Designa a atracção que guia o indivíduo do sexo masculino pelo inacessível. Ele esperará conhecer algum dia a mulher?

O poema também diz algo mais sobre o homem (5) : ao vender a alma ao diabo ele perde a sua sombra, deixando de ser dono de si mesmo. Fausto não tem sombra porque lhe falta a integridade/autonomia do seu ser.

Afinal, parece não existir um qualquer retorno para uma vida, um amor, uma obra… Fausto não podia recuperar a juventude. Quando tentamos recriar o que ficou por viver, não recomeçaremos sempre uma experiência outra? Vivemos sempre a pueril inexperiência.

Notas

(1) Aniela Jaffé (1966; cit. em AA.VV., 1978, trad. port. 1979, p. 114).

(2) J. W. Goethe (1808, 1832).

(3) Jeanne Suhamy (1992, trad. bras. 1995, pp. 134-136).

(4) Jean Chevalier & Alain Gheerbrant (sem data, trad. port. 1997, p. 318).

(5) Chevalier & Gheerbrant, ibid, p. 615.

Judite Maria Zamith Cruz é doutorada em Psicologia pela Universidade do Minho, onde lecciona cursos de licenciatura e mestrado dedicados ao estudo do desenvolvimento humano e do auto-conhecimento do profissional de educação, desde 1996, é membro de instituições nacionais e internacionais dedicadas ao estudo e investigação da sobredotação, talento e criatividade e, em 1997, integrou equipa internacional e interdisciplinar, coordenada pela Professora Doutora Ana Luísa Janeira, nos domínios de ciência, tecnologia e sociedade - «Natureza, cultura e memória: Projectos transatlânticos». Colabora, desde 2000, no Instituto de Estudos da Criança, em projectos centrados na educação matemática; depois, na área da língua portuguesa e artes plásticas, como membro do Centro de Investigação «Literacia e Bem-Estar da Criança» (LIBEC) da Universidade do Minho .

Entre Janeiro e Julho de1982 foi professora de psicologia e de pedagogia em Escola de Formação de Professores do Ensino Básico de Torres Novas. De Junho a Setembro de 1982, assumiu o lugar de Assistente Estagiária na Universidade de Lisboa – Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, de que se afastou para desempenhar funções de psicóloga clínica em cooperativa dedicada a crianças e jovens deficientes motores e mentais, em Lisboa – CRINABEL (1982-1985). De 1985 a 1988 foi professora do Ensino Secundário, em Braga, leccionando a disciplina de psicologia na Escola D. Maria II. De novo ocupou funções de psicóloga clínica em associação dedicada à educação de crianças e jovens deficientes auditivos (APECDA-Braga), entre 1988 e 1992. Em 1987, realizou trabalho como psicóloga no Hospital Distrital de Barcelos, de que se afastou em 1990 para efectuar curso de mestrado. Em 1992 ocupou o ligar de Assistente de metodologia de investigação, na Universidade do Minho, em Braga, onde é professora auxiliar.