GASPAR GARÇÃO
Cinema e Ficção científica – Três olhares

1. METROPOLIS

2. 20.000 LEAGUES UNDER THE SEA

3. BLADE RUNNER

3. BLADE RUNNER/BLADE RUNNER:
PERIGO EMINENTE (1982)

 

“Vi coisas em que vocês humanos não acreditariam... Naves de ataque em chamas perto da constelação de Orion … Vi Raios-C a brilhar no escuro perto da Porta de Tanhauser…

Todos esses momentos … serão perdidos no Tempo … como lágrimas na chuva …

Tempo … de morrer.” – palavras finais do líder “replicant” Roy Batty

 

Ficha Técnica:

Realização – Ridley Scott

Produção – Michael Deeley (Warner Brothers, E.U.A.)

Argumento – David Peoples e Hampton Fancher, a partir do romance de Philip K. Dick de 1968, “Do Androids Dream of Electric Sheep?/Blade Runner-Perigo Eminente

Actores – Harrison Ford, Sean Young, Rutger Hauer, Daryl Hannah, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh, Brion James

Prémios e Nomeações – Nomeação para o Óscar de Melhor Direcção Artística e Efeitos Visuais; Nomeação para o Globo de Ouro para Melhor Banda Sonora; Vencedor do B.A.F.T.A. para Melhor Fotografia, Direcção Artística e Guarda-Roupa (em 7 nomeações); vencedor do Melhor Filme nos Prémios Hugo, da Associação Mundial de Ficção Científica

Duração – Filme original: 117 mn; Versão do Realizador/Director’s Cut (de 1992): 112 mn

 

Blade Runner” é um marco no cinema e uma obra fundamental da moderna Ficção Científica. Ainda recentemente, foi considerado o melhor filme de F.C. de todos os tempos por centenas de cientistas britânicos, segundo uma sondagem feita em 2004 pelo jornal britânico “The Guardian”. Um dos cientistas entrevistados referia que “Blade Runner” está muito á frente do seu tempo, e a premissa do argumento – o que significa ser humano, quem somos nós, donde vimos – são as eternas perguntas da Humanidade”.

A situação irónica é que o filme quando saiu em 1982 foi um relativo fracasso de crítica e de público. Apenas com a “Versão do Realizador” em 1992, foi “reavaliado” pela crítica e teve um enorme sucesso junto dos espectadores. Alguns críticos referiram-se nessa época ao filme como tendo “passado de uma obra-prima falhada para uma obra-prima”.

As razões para o “renascimento” de “ Blade Runner” são várias:

-- Foi desde logo considerado pela comunidade amante da F.C. um filme de culto, tornando-se durante a década de 80 um clássico “underground”.

-- Foi um dos percursores do género de F.C. que dominou as décadas de 80 e 90, tanto em filme como em livro: O movimento “ Cyberpunk”. Exemplos de filmes percursores e inspirados pelo género são: “ Videodrome/Experiência Alucinante” (1983, David Cronenberg), “ The Terminator/Exterminador Implacável” (1984, James Cameron), “ Johnny Mnemonic” (1995, Robert Longo, baseado num conto do “pai” do género, William Gibson), “ Strange Days/Estranhos Prazeres” (1995, Kathryn Bigelow), “ p / Pi” (1998, Darren Aronofsky), “ eXistenZ” (1999, David Cronenberg), “ The Matrix/Matrix” (1999, Irmãos Wachowski, e as respectivas sequelas), “ Avalon” (2001, Mamoru Oshii), etc.

-- Finalmente, “ Blade Runner” é baseado numa obra fundamental de um dos escritores americanos mais importantes da 2ª metade do Século XX: Philip K. Dick. Hollywood têm recentemente adaptado (com resultados muito díspares), algumas das obras de Dick: “ Total Recall/Desafio Total” (1990, Paul Veroheven), “ Screamers/Gritos Mortais” (1995, Christian Duguay), “ Impostor” (2002, Gary Fleder), “ Minority Report/Relatório Minoritário” (2002, Steven Spielberg), “ Paycheck/Pago para Esquecer” (2003, John Woo), e brevemente “ A Scanner Darkly” (2006, Richard Linklater), e “ Next” (2007, Lee Tamahori).

As diferenças principais entre o filme original e o chamado “Director’s Cut” são as seguintes:

- A narração em “voz Off” de Rick Deckard (Ford) desaparece, vendo-se portanto o filme em função do ponto de vista de todas as personagens intervenientes, não apenas como uma história contada pelo “caçador de prémios”. Esta mudança é talvez a mais polémica para os “puristas”, já que dilui o “sabor” do “Film Noir”.

- O final da versão de 1992 é diferente do original, desaparecendo um “happy ending” (implausível) que foi imposto pelo Estúdio, deixando o futuro de Deckard e Rachel (Sean Young) em aberto.

- Finalmente, a meio do filme, em casa, Deckard adormece ao piano e sonha com um Unicórnio o que, sem desvendar o mistério, nos lança algumas pistas importantes sobre a própria identidade desta personagem.

Em resumo podemos afirmar que, apesar dos (muitos) adeptos da versão original, o “Director’s Cut” é mais balançada entre as personagens de Deckard e Roy Batty (Rutger Hauer), mais coerente e mais narrativa, por oposição ao carácter expositivo dado pela “voz off”. Quanto à questão da verdadeira natureza de Deckard, humano ou “replicant”, Ridley Scott respondeu de forma categórica numa entrevista em 2000, apesar dos veementes protestos de Harrison Ford...

Para se ficar a saber a verdade definitiva, teremos talvez de esperar pelo “Santo Graal” dos fãs de “Blade Runner”, a versão definitiva do realizador, da qual esta é apenas uma sombra, e que irá incorporar mais cenas originalmente cortadas, uma nova montagem e comentários áudio e documentários sobre o mais fascinante e intrigante filme de F.C.

Em relação ao argumento, “ Blade Runner” (muito diferente do romance, que é mais impiedoso para com as personagens, mais inquisitivo em termos filosóficos e religiosos), gira à volta das duas perguntas fundamentais na obra de Philip K. Dick:

- O que é ser Humano?

- O que é a Realidade?

A resposta dada pelo escritor á primeira pergunta é “sentir empatia por outro ser humano”. Mas o teste Voight-Kampff administrado para descobrir “replicants”/andróides (devido á sua falta de empatia são desmascarados por este teste), cedo demonstra ser falível. E se Rick Deckard (Harrison Ford) for ele mesmo um andróide? Como será então possível ele sentir desejo, empatia ou até mesmo amor por Rachel (Sean Young), um andróide que não sabe que o é? E que também sente algo por Deckard?

Em relação á 2ª pergunta, Dick só tinha questões. Quem determina o que é a Realidade? Será apreendida pelos nossos sentidos de forma correcta? Existirá uma Realidade fora da nossa percepção limitada e humana? Será Real apenas o que pensamos ou também o que sentimos? Poderá a nossa memória enganar-nos?

Em termos técnicos, “ Blade Runner” é extremamente inovador estética e visualmente, o maior salto em frente do cinema fantástico desde “ 2001” e “ Star Wars”, o que não é uma surpresa, vindo do realizador de “ Alien – O 8º Passageiro”, “ Gladiador” e “ Reino dos Céus”. Pode-se afirmar que “ Blade Runner” é um herdeiro directo das visões futuristas urbanas de “ Metrópolis”, uma “Los Angeles de 2019 como um cruzamento entre um mercado de Hong-Kong e uma decadente metrópole com arranha-céus de 200 andares”. De destacar também a excelente banda sonora de Vangelis, talvez o melhor trabalho de um compositor não sempre consensual entre os fãs de cinema.

Outra clara influência de “ Blade Runner” é o “Film Noir” e os seus estereótipos, como o seu detective clássico, um “looser”, duro e eficaz, mas sensível, que se apaixona pela rapariga errada, uma “femme fattale” literalmente com um grande segredo; existem ainda, como é habitual, os bons e os maus polícias, e os vilões “larger than life”.

Como curiosidades, refira-se o facto de o realizador ter referido numa entrevista recente que nunca leu o livro de Philip K. Dick em que “ Blade Runner” se inspirou; K. W. Jeter, amigo pessoal de Dick, escreveu três sequelas para “ Blade Runner”, tentando conciliar todas as diferenças existentes entre o livro e o filme: “ Blade Runner II: The Edge of Human/A Fronteira do Humano” (1995), “ B.R. III: Replicant Night: A Noite dos Andróides” (1996), e “ B.R. IV: Eye and Talon” (2000).

Podemos concluir dizendo simplesmente que “ Blade Runner” é a história de dois seres que sonham que são humanos e se encontram na sua mentira, na sua ilusão e na sua solidão, mas cujos sentimentos e memórias, por mais programados e virtuais que sejam, não deixam para eles de ser realidade, e que simplesmente nunca se sabe quando o nosso período de validade terminará quer sejamos humanos ou não.

É a Empatia que nos torna humanos, não as memórias que temos ou pensamos ter, não a Carne e o Sangue de que somos feitos…

Portalegre, Dezembro de 05