Carlos Pará


A Lei secreta
da Narrativa do
Livro Invisível
de Vicente Franz Cecim

Um Livro para Todos e para Ninguém...

Atravessar o que nos nega,

chegar ao sim. E é assim que tu verás

 um S nestes dias cegos

É assim que a Viagem a Andara começa. Começa antes do texto, antes do livro, antes de tudo, começa com uma negação da negação. Atravessar o que nos nega.  Nossa vida não pode ser mais uma pedra da muralha psicológica construída logicamente para nos cercar com o falso imaginário que nos r-odeia. A luta em favor da liberdade de poder-ser-si-mesmo-no-mundo reproduz-se na escritura do homem que está a caminho de conquistar o seu poder próprio de ser nesta vida. Andara é uma geografia interior feita de ossos e sonhos, carne residência de fogos imensos onde criaturas brotam dos ecos, da voz e dos ossos, das folhas e de tudo o que é elementar . A escuridão, o medo, o temor e tremor não intimidam o escritor começar assim, com uma negação para chegar ao sim e a sua Voz espanta fantasmas, espanta nossa atitude de se afundar cada vez mais na escuridão dos desejos ex-óticos, porque " Nós somos homens invisíveis // Depois de nascidos, visíveis // Entre o início invisível e o invisível final, nós somos os homens visíveis. É na in-transitoriedade que vivemos. A Existência é um intervalo entre o nascimento e a morte, entre a palavra e a imagem, entre o silêncio e o som, passagem íntima do dia para a noite ou da noite para o dia através do verbo passagem súbita da luz para o esquecimento. Por que escrever se nada fixa-se no mar da imutabilidade e Tu ainda escreves um livro com tinta invisível. Por que fazes isso? E o que te faz s[urgir do meio do Nada ou melhor, se lançar para dentro do Nada, fora de si? Somos feitos de imagens (estofados de sonhos) e criamos imagens para existirmos, para existir então é necessário que alguém nos veja além das aparências, pois no caso saberemos que existimos e não existimos. No caso do "romance" de Vicente Franz Cecim sua narrativa é uma luta muito obscura travada entre toda a narrativa do livro invisível em encontrar ANDARA dentro de si numa possibilidade de lugar coletivo. Andara existe e não existe assim como todas as coisas, o estar-aí é luta na qual a im-prudência de Franz Cecim e o que há nele de verdade humana, de des-mistificação, de alquimia, de iluminação, de aptidão obstinada pela escritura para ficar escuro, ausente, disperso, na unidade da narrativa reunir seus fragmentos que o tempo leva para des-construir e a unificar no vôo da asa e da serpente, nos animais da terra, nos jardins e a noite, na Terra da sombra e do não, no Diante de ti só verás o Atlântico, nO sereno, nas armas submersas, no Silencioso como o Paraíso,   Ó Serdespanto, no que chamam de romance, é novela kafkiana, é poesia é prosa é teatro é vertigem é viagem utópica é linguagem é vôo é reinvenção é e não é o que achamos que seja, a dialógica da alquimia transformando a matéria do silencio obscuro das coisas impostas pela censura, mudar, mudar, mudar, mudar a solidão, a saudade, o sentido da realidade e a direção do sonho de uma terra inconsolável e a sensação de criar um novo mundo, gritar o sonho mais profundo no grito de um pássaro mitificado na totalidade de sua poesia, breve início quebrando as leis do medo e assim podemos nos comunicar com todos os animais da terra e outros seres ou coisas, estigmatizados numa literatura de não-viagem a buscar outras palavras não reveladas,   colocar palavras de ordem nos muros invisíveis desta cidade e a sua voz, a sua voz, muda o cuidado do tempo que leva para nos ruir. "As palavras de Ordem que se impõem aos transeuntes é esta: que Seja excluída toda alusão a um objetivo e a um destino! ANDARA!!!! Mudar constantemente de direção, ir ao desconhecido, ao in-esperado,   ao in-audível, ao in-visível, ao in-tocável,  ao sonho , ao vôo, ao retorno, à v ida evitar qualquer objetivo ou classificação num movimento de in-quietação e des-espero que se transforma em e retorna ao Vazio, desse Vazio que sua obra, naturalmente é uma obra que vai exaltar e denunciar, atravessar e preservar o mito in-decifrado do autor-obra-de-arte, que ele vai preencher o que o preenche. No começo, antes de qualquer empreendimento ou decisão de se movimentar por esses caminhos em que ele acredita atingir a plenitude ou até mesmo o sofrimento, pois o põe em contato com sua espontaneidade, a integridade e a desintegração de seus sentimentos e uma adesão quase completa   à continuidade das coisas que já se cristalizam, nele e em sua obra, como Andara, no momento em que a sua vontade se dispõe a organizar a sua riqueza, suas descobertas, essa re-velação é des-vendada por partes, numa escalada escatológica, ontológica e fragmentada q apresenta seu Universo por partes, daí a sua Unidade num Livro Invisível, que já se desdobra em Ó Serdespanto e em K- o escuro da semente e assim sucessivamente em outros mistérios territórios. Andara é encontrar o mapa invisível , o território da linguagem, a geografia interior feito de ossos e sonhos,   a carne a residência de fogos imensos onde brotam criaturas da voz e dos ossos do demiurgo. O autor pede que sua narrativa seja lida ouvida como um "todo contínuo" e faz seus personagens s[urgirem com outros nomes ou desconhecidos do eram antes, em que não há experiências nem fatos e os personagens que ressurgem vivem num uniVerso que foge a qualquer sentido, inclusive o interpretativo, como é o caso do Sargento Nazareno. ViVer o que se lê ouvir de olhos fechados ultrapassa o entendimento. Andara é para ler como quem sonha com toda a razão, certamente. A Justificativa do existIr, a utilidade e a necessidade do indivíduo para o bem comum não interessa mais.... Ninguém pode pôr-se nesse caminho com a intenção deliberada de atingir Andara, ninguém pode rumar para esse lugar, e aquele que decidisse fazê-lo só chegaria por acaso, um acaso ao qual estaria ligado por um acordo difícil de entender. As palavras de ordem são, portanto: silêncio, descrição, abandono, esquecimento, abertura fundura e o desejo de nada pretender, não-ser é a questão, acompanhar o risco não linear da cartografia humana. "Há um real submerso no homem que a literatura linear, de mera denúncia da disparidade social, não alcança e quase como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente Cecim também confirmaria que "je poetisher, umso wahrer": quanto mais poético, mais verdadeiro". Leo Gilson Ribeiro/ "O universo de Vicente Cecim, criado por inspiradas metáforas e alegorias".

Aproveitemos para vermos

E então ir escrevendo outros livros, nestes jardins, todas essas asas, para que um livro vá se fazendo

Mas não em si. Dele não se verá nem sombra das palavras

No papel.

Viagem a Andara.

O não-livro. Não existe, não existe

Literatura fantasma.

Não foi escrito.

Enquanto texto, tudo o que teremos dele é um título.

 

E a pergunta seguinte é:

E o que são livros, os livros que se escreve

Livros de Andara.

Livros-miragens. Pois uma vez escrita, da vida só resta a

alucinação literária.

 

Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade

para que Viagem a Andara, o livro invisível possa existir como

pura ilusão.

 

                Andara, a viagem ela mesma, nunca será escrita direta-

Mente.

 

                Ela está começando assim

"Andara é perto e longe. Andara está dentro de ti. E fora.

E dentro de mim

                Diz a voz"

Franz Cecim talvez não seja vítima da ilusão propriamente incompreendida, nem duma possível relação problemática com Maya. Vítima do imediato, do transitório é o passageiro que leva toda a sua história na sua estranheza. Onde ocorreu essa experiência, em que tempo, em que mundo, tu viveste realmente o que foi escrito, sonhar é viver?Nenhum autor nos deve nenhuma justificativa, nenhuma verdade esclarecida, nenhum interrogatório, nenhum processo investigativo e por isso nenhuma censura. Ele seria mesmo incapaz de nos dizer com palavras o que escreveu com palavras, sangue ossos sopro e um punhado de substâncias químicas Ele não escreve só para dizer Andara é "Ter um lugar aonde ir".

O começo da viagem no "A asa e a serpente" é o relato da aparição de uma assombração militar em Santa Maria do Grão. Numa história totalmente humana, demasiada humana, "a uma realidade que traumatizou sua geração: a época do grande medo, que se tornou assombração política e fantasma histórico na cidade do Grão ou em qualquer outra parte do Brasil após 64. Mais firmeza ganharia a fábula se maior contraste houvesse entre o plano prosaico da narração e o plano lírico da expressão poética, conciliando o sonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico, ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa numa assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto de metamorfose, o texto se interioriza, e o fantasma da História tende à história fantástica" como alude o filósofo" .

"Tenho pressa de relatar o que não sei".

Escrever é descer às profundezas dos antigos registros duma vivência anterior interior e qualquer coisa encontrar que lhe dê sentido significado para existir perceber e poder entrar na memória do Universo, emergir do vazio, da eterna condição inexprimível do verso, substância múltipla e transitória do Universo e ao retornar transfigurado não ter mais palavras, só o imenso olhar, imenso como a noite. É certo que Andara é Terra da sombra e do não, é uma selva e uma noite de escuras árvores onde não faltam mistérios, uma floresta de símbolos onde podemos ver sem os olhos e passar entre os homens que dormem com um rosto de pedra. No vento passam os prisioneiros do infinito, as maldições do pó. Andara é um dia na vida do homem sem memória, uma plantação de urtigas, uma cor rente fria que leva corpos para parte alguma, mas aquele que não temer a sua obscuridade e a sua irrealidade aparente encontrará dentro de suas entranhas uma exploração que não destrói a Natureza, uma realidade sondável, volúvel e selvagem, no seu estado bruto, desconhecida, impura, uma realidade substancialmente ou existencialmente feita de sangue, ossos, ecos, vozes, imagens, movimentos, inércias, ar, fogo, terra, água, vegetal insone, minerais profundos   e principalmente, Animal.

Onde quer que se encontrem o teu mistério, os venenos

do ar, respira sem medo. Adiante te espera um rosto de areia.

Relógios de pedra afundam em nosso sono. No negro

que se se­gue às luzes que se apagam, no movimento das águas frias, nos

lábios que beijam a palavra mais cruel do idioma, há incêndios

nas florestas, animais que buscam a aventura, rigorosos e de­sesperados, enquanto queimamos

esta cabeleira ao vento estre­mecidos de beleza.

Outra observação que me vem a lembrança que podemos identificar o Livro Invisível são as palavras do nosso velho mestre Francisco Paulo Mendes, no seu artigo "Notas sobre a Poesia Contemporânea" publicado na Revista Encontro em 1948 onde já definia o sentido da poesia como uma atividade mística a superar os limites da matéria e dos sentidos e a procurar conquistar um conhecimento fora das vias normais do conhecimento racional e sensível para transmitir pela poesia uma verdade supra-sensível e supra-racional elaborado nas fontes do ser, em sua alma, o seu próprio fundo substancial. " O poeta deve praticar uma exploração impiedosa e minuciosa da sua vida interior, da sua subjetividade que o instinto poético leva a verdade.

Uma exploração que não somente abranja os estados da consciência e de vigília, mas que vá além – trabalhar dentro de uma mina literária, sobre os estados semi-conscientes, vagos e oníricos. Exploração extensiva e intensiva que atinge as zonas que ficam fora do campo de consciência e que consiste em captar as diversas formas da vida da atividade dissimulada e abismas do nosso "eu", correntes ilógicas de pensamentos, idéias absurdas, desejos obscuros, sentimentos aberrantes, os sonhos e os delírios, toda uma confusa mas fervilhante vida subterrânea do nosso ser.De tudo isso se apodera o poeta e para ele adquire um significado e constitui uma linguagem inteligível que dá o sentido do Universo. Abandonando-se as vagas do pensamento não discursivo, deixando-lhe levar pelas formas inferiores da vida afetiva, pelos estados oníricos e até mesmo pelo historicismo e pela alucinação, entregando-se sem opor resistência a forças desconhecidas e irracionais e envolvendo-se na agitação de uma atividade semi-consciente conseguirá o poeta atingir o íntimo das coisas porque a essência delas se acha refletida, "presente", no seu espírito e, sendo assim, por uma exploração extensiva e intensiva do eu, elas entregar-se-ão e desvendar-se-ão" . Sim, o poeta Vicente Franz Cecim narra sua existência nestes sentidos. Seu estilo veio com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo, sem rima, bastante maleável e bastante sacudida para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos espelhos e os seus duplos, aos sobressaltos da in-consciência   e da memória ancestral, assim como também sonhou Baudelaire, em seus dias de ambição, sonhou com essa forma bastante lúdica, ao aplicar à descrição da vida moderna, ou antes, de uma vida moderna e mais abstrata o procedimento que ele aplicara na pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresca. Andara é mais geografia interior feito de ossos e sonhos, a carne a residência de fogos imensos. É a narrativa de uma vida  secreta desvelada pelo autor. Agora, ele só conhece esse caminho além do grau zero da escrita carregando um cadáver nos ombros? Partir ímpar de um Nada criativo em que seu rastro, a escrita, cenário de palavras reunidas ou de marchas militares absurdas para um público de fantasmas, atravessou todos os estados de uma solidão progressiva: no começo, o olhar, depois a dor de arrancar seus olhos com o bico de um pássaro de presságios fatais e jogar fora seus medos, para sentir, a ausência. Seu estilo é produto de um surto e de uma intenção. Movimento de negação a impotência de completá-lo num lapso de tempo, e fazer da Literatura herdada de seus antepassados que não encontraram a pureza neste ofício a não ser na ausência de todo o signo, propor enfim o cumprimento desse sonho órfico: um escritor sem escritura. A escrita invisível, último episódio de uma paixão da Literatura, que segue folha por folha a dilacera-se da floresta humana, demasiada urbana.   Mas a lógica interior da concepção impõe-se por si mesma, cada vez mais. A constante liberdade da excitação foi acelerada no surgimento de Andara, sua natureza de terminada, constante descida para a morte onde surge o princípio de tudo. Linguagem consistente, profunda, carregada de mistérios, dada ao mesmo tempo como sonho e como ameaça que  provoca os sentimentos existenciais atados no interior do vazio de toda narrativa que o escritor e o leitor   fatalmente encontram em seu caminho, e ele tem de olhar, enfrentar, assumir, sumir, des-aparecer e que agora, jamais poderá destruir sem dest ruir a si mesmo como autor. Há trinta anos que toda a sua escrita é assim um exercício de repulsa em face de toda a repressão da Literatura como forma-objeto de consumo num modo de circulação socialmente "privilegiado". Circulação sem depósito fiel, concurso ideal de um espírito universal classista e de signos decorativos, suspensos sem espessura sem peso sem vida, sociais, artificiais, sem responsabilidade, não com os outros, mas principalmente consigo, enganar não os outros, mas a si mesmo é a pior mentira duma literatura que se prostitui como autor.  

            Pelo menos nele caberá toda a realidade de um rumor de mundo que se pretende ignorar. Estes das luzes e das sombras. Tudo se dá aqui, e não lá, onde se prosta, aspirando e expulsando como um pontapé no cú o vapor dos venenos cotidianos, o leitor impossível de tocar de outro modo, à traição. Com estas mãos. As mesmas que revelarão uma última porção de terra fértil na palma, depois que o último homem houver passado, distraído, olhando os pés que vão porque querem ir neste texto que fala de uma tarde dada ao acaso.  

                O morto voltou numa tarde, então começo por essa tarde. Também retornam os guinchos e os animais que fazem uma careta cômica para a origem do bem e do mal. Esta é a mesma história. Como o verão. Eu falo do tecido fino onde a vida dá sentido à vida.

                Esse é o relato.     

       Extrair um militar sem vida, um tanto estragado e mutilado depois que o matou pela primeira vez . " E sujo de terra depois que eu o enterrei com a ajuda de um cortejo de miseráveis e infelizes criados pela imaginação, ou sonhados, ou é sem dúvida a memória. Ou dos quais apenas me lembro desde que me dispus a falar de improviso, sem nenhuma realidade sob os pés.

                E no entanto eu não minto .

 

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" Tenho pressa de relatar o que não sei.

Por isso vou narro logo o que sei, sem escolher as palavras.

Quero chegar naqueles trechos mal-iluminados onde a intenção se perde e uma voz passa em meu ouvido como cascos selvagens num caminho recém-descoberto pelos olhos. O que ele quer dizer com isso, pergunta-se. Basta de novos enigmas, gritam. E atiram bosta na minha cara.

O Sargento Nazareno está regressando para começar a segunda vida, na qual ele recusará todo o horror e as cruzes de vidro que o dia de ontem alimentou no seu ventre com rações de violência. Não teremos mais seus dentes à mostra. Eu falo de um homem que dirá adeus às cidades e penetrará no rio com vegetais vermelhos, em busca da felicidade, com uma provisão de mistério em cada lábio.  

Cecim alude, parece-me, a uma realidade muito próxima que traumatizou sua geração: a época do grande medo, que se tornou assombração política e fantasma histórico na cidade do Grão ou em qualquer outra parte do Brasil após 64. Mais firmeza ganharia a fábula se maior contraste houvesse entre o plano prosaico da narração e o plano lírico da expressão poética, conciliando o sonho e a alegoria. Com a dominância do lado onírico, ganhou por certo o lirismo, que transforma a narrativa numa assombração literária impetuosa. Sujeito e objeto de metamorfose, o texto se interioriza, e o fantasma da História tende à história fantástica . BENEDITO NUNES na apresentação do livro "A asa e a serpente"

A narrativa começa onde a razão e o pensamento que é o seu instrumento, não vão. A narrativa é anti-heróica, pois o herói da história é um morto que não tem vida própria e permanece vivo como fantasma, assombração, fantoche nas mãos do escritor.

O sargento voltava. E carregava seu caixão na cabeça. Ia entrando, com passos exaustos, pela rua que o levaria à sombra dos monumentos irônicos que espiavam a vida na praça de Santa Maria do Grão enquanto os olhos ocultos o viam chegar. E não respire, não viva. Ninguém quis acreditar no que viu.

Ele estava acabado como um morto que segue em busca de uma estrela, naquele fim de tarde de resto igual aos outros, lento, parando para se deixar engolir pela noite .

Assim o sargento Nazareno se apresenta a cidade do Grão, regressa à vida, como um animal

É verdade que a narrativa em geral, relata um acontecimento excepcional que escapa às formas do tempo cotidiano e ao mundo da verdade habitual, talvez de toda a Verdade.

"A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se. Franz Cecim livre de entraves embora fixado no seu livro , anda em direção do lugar imaginado que parece prometer-lhe o poder de nomear, de falar e de narrar, com a condição de ali des-aparecer. Aparecer e desaparecer é o paradoxo de todo o escritor. Essa é uma das estranhezas ou melhor, das pretensões da sua narrativa.

Escrever, sonhar um Não-Livro e ainda com tintas invisíveis, para ouvir com os olhos e ver com os ouvidos, para ler como quem sonha solitário até ficar escuro como o verbo, velho farol da existência, encontrar-se-desencontrar-se em Andara, revelar essa realidade é ocultar-se em si mesmo, é um des-velamento que tenta abolir a razão do ato de escrever. A vida ama ocultar-se, algum lugar é nenhum lugar, encontro tão imponente e tão particular que transborda em todas as páginas em que ocorre, não é dentro do livro que ocorre a história, é fora, distante do sujeito que narra, todos os momentos em que quisermos situá-lo, e parece ter acontecido antes mesmo que o livro começasse. Mas também de tal natureza que só poderia acontecer uma única vez, com aquela única pessoa, no futuro da obra e naquele lugar que será a obra transformada por cada leitor, igual ao rio de Heráclito. Infelizmente um livro, que interroga os limites da existência e da literatura, apenas um livro de uma literatura fantasma, se é assim que podemos classificar em nosso mundo categoricamente conceitual.

Para entender o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo Lúlio: Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação, os espíritos que se evolam (...)condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para o outro como nuvens.

Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como sombra. Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos, as sombras estão no Vários, e se tornam coisas

(O escuro da semente, livro de Andara.)

A narrativa é movimento em direção a um ponto, ao ponto de mutação, não apenas desconhecido, ignorado, estranho, mas tal que parece não haver, de antemão e fora desse movimento nenhuma espécie de realidade, e tão imperioso que é só dele que a narrativa extrai sua atração, de modo que ela não pode nem mesmo "começar" antes de o haver alcançado; e, no entanto, é somente a narrativa e seu movimento imprevisível que fornecem o espaço onde o ponto se torna real, poderoso e atraente.

Como quer ser o Livro Invisível Viagem a Andara, algo que foi literatura, mas se libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente o homem e o seu tempo e seu mistério ao mistério do homem: diz isso assim: A literatura praticada como hermenêutica, a palavra praticada como vida. Esta seria uma leitura de decifração. Aquele que crê que o espetáculo é a história narrada, e o texto sua consciência.

Sempre teremos um segredo.

E para negar a farsa das aparências, sem necessariamente

se aliar ao mito da profundidade, nada mais didático que o espetáculo de uma voz onírica devorando a fala prosaica.

É a mesma de que fala o hino do Rigveda, aquele que diz

que o discurso mede quatro partes das quais três se conservam secretas, não são postas em movimento, pois só conhecemos a quarta que é a língua dos homens.

Dessa perspectiva, então, é o texto que fica sendo o espetáculo, é a história narrada que se torna sua consciência.

E dito isso, então. dizer: muletas.

E: sozinho se descobre às coisas melhor.

Aí começam as chances de alguém se tornar centopéia.

E no entanto, uma segunda voz toma o leitor pela mão.

E diz

        Ecos de civilização.

Aqui, obedecemos? A técnica da interpretação dos discursos escritos, que deveria complementar a crítica dos textos, e propriamente a do Livro In-visível ao plano metodológico das ciências   do espírito.

O conhecimento de qualquer parcela do mundo histórico é também histórico e reabre o processo de autognose – o conhecimento do homem por si mesmo, interpretar é interpretar-se, compreendendo-se nas suas produções exteriores, que são, ao mesmo tempo, formas expressivas. Ao exteriorizar-se, a vida se objetifica e se expressa. Sua própria estrutura é hermenêutica. Em última análise, a possibilidade das ciências dos espíritos deriva do caráter hermenêutico da experiência humana, que se estrutura historicamente como núcleo de sua existência humana como realidade singular e como interesse prioritário daquele que existe para escrever um outro mundo que é o seu próprio mundo.

Se eu escrevo, eu me escrevo. "Andara c'est moi. Andara sou eu. Vivendo em sonhos de escritura de mim mesmo", como afirma o autor.

Esse aspecto da autocompreensividade da experiência humana e de sua estrutura narrativa coloca seu historicismo numa nova dimensão. Foi tão importante para Franz Cecim quanto à intuição das essências na Fenomenologia. A elucidação filosófica da Lógica de Andara perceber a distância conceitual existente entre o processo psicológico e a unidade lógica da intuição favorecendo o pensamento, ou, mais precisamente, entre o curso da ação do pensamento literário como fato natural, regido por leis empiricamente determináveis, e o plano da validade lógica em   Não-pensar, se tornar o pensamento. E nisso se tornar uma evidência, mas só há evidência se houver intuição e só há intuição se houver vivência daquilo que se intui e com isso podemos abrir caminho através da linguagem e de certa forma, criar uma natureza determinada. A intuição de Andara não podia separar-se das vivências de significação que o autor propõe através da linguagem. Estimulação decisiva para o entendimento das questões levantadas no Livro Invisível.   

Criar esse mundo literário de Andara é encontrar uma fuga? Ou encontrar uma Filosofia da sua existência, numa relação do autor consigo mesmo, que constitui o núcleo de sua existência humana como realidade singular e como interesse prioritário daquele que existe para escrever um outro mundo que é o seu próprio mundo.

E quem advinha ao menos em parte as conseqüências de toda profunda suspeita, os calafrios e angústias de isolamento, a que toda incondicional diferença do olhar condena quem dela sofre, compreenderá também com que freqüência, para me recuperar de mim, como para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar – em alguma adoração, alguma inimizade, leviandade, cientificidade ou estupidez; e também por que, onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsifica-lo, de cria-lo poeticamente para  mim (- que outra coisa fizeram sempre os poetas? Para que serve toda a arte no mundo?)   Mas o que sempre necessitei mais urgentemente, para minha cura e restauração própria foi a crença de não ser de tal modo solitário, de não ver assim solitariamente – uma mágica intuição de semelhança e de afinidade de olhar e desejo, um repousar na confiança da amizade, uma cegueira a dois sem interrogação nem suspeita, uma fruição de primeiros planos, de superfícies, do que é próximo e está perto, de tudo o que tem cor, pele e aparência.

Humano Demasiado Humano.

- Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os "espíritos livres", aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem o titulo de Humano Demasiado Humano: não existem esses "espíritos livres", nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas com os quais proseamos e rimos....

3.

A grande liberação, para aqueles atados dessa forma, vem súbita como um tremor de terra: a jovem alma é sacudida

O conceito de queda, o temor e o tremor diante do Deus revelado que lhe devora os sentidos   local onde algo ou alguém poderá encontra-se concentrado no instante indivisível da escolha, indizível talvez ou quase sempre, em que o ato de conversão do pensamento para a realidade se consuma porque foi provocado a expectativa do futuro como promessa a cumprir-se, a possibilidade da repetição deste fenômeno pode ser única

É uma corneta o que ele retira de dentro do caixão. Olha para dentro dela, agora experimenta um sopro

gelado. Amarra o riso com tiras de lábios severos. Sua expressão vai se tornan­do selvagem à luz

da manhã que vem mais veloz, a cada mi­nuto.

Infelizes e miseráveis começam a despertar.

Abrem as portas das suas casas, saem aqui para fora, debruçam-se nas janelas, espreguiça-te, bocejos.

Lavam os olhos nas águas da noite. Ouvem o toque da corneta e acordam de vez. O fantasma está soprando

com a violência de uma tempes­tade, sons de uma força sem beleza mas que têm o poder, em sentido contrário

ao da sua morte, de agitar a vida

E passa a dar ordens com inesperada violência. Agora uiva

mais alto que todo o rumor dos miseráveis despertados pela

corneta.

            Esperamos as instruções. Tudo se acalma.

                Um toque da corneta, um grito de loucura. As velhas tomam os seus lugares à frente, muletas não são permitidas, os aleijados avancem como puderem, se arrastando. A merda de­ve ir caindo por onde for passando a marcha, pois é proibido também que mesmo as crianças abandonem seus lugares, ainda que estejam com as barrigas em chamas. Os homens, amontoa­do ocioso, vêm atrás, batendo pés bárbaros, pois já não temos tambores. Voltam então os pássaros, que mergulham em vôos baixos e fazem rugir as suas gargantas para que os corações es­tremeçam de orgulho.

Rígido, vaidoso, o sargento olha a marcha do fundo da sua morte.

Diante dele passa agora uma velha costureira, cega, hábil. Não interrompeu seu trabalho de agulha e linha, veloz, no rit­mo em que os homens batem os pés, vai fazendo aparecer uma camisa para o fantasma. E passo agora eu, fingindo, com mo­vimentos evidentes, que toco um tambor. Audácias de toda es­sa festa.

O sol vai subindo e começa a misturar as nossas sombras, achatadas contra o chão da praça em ângulo mais e mais agudo.

Teria sido isso o que nos atrapalhou, mais tarde. Em ân­gulo mais agudo ainda. Ou foi o louco que abandonou as ins­truções que o sargento murmurara em seu ouvido, o direito, o esquerdo, o direito outra vez.

O certo é que a marcha, antes exemplar, degenerava. Ou era o cansaço.

De alegria o morto batia a cabeça na parede com vigor re­novado, não se erguera do lugar. Às vezes, deixava a cabeça cair no peito, onde ficava por um momento, não sei onde, para voltar com um novo toque de corneta, um novo vigor. Rumo imprevisto para os rumos da marcha. O louco escutava a cor­neta por um instante, parado, compreendia e lançava vozes so­bre nós.

Ah, a alegria também dos cachorros.

Por entre as nossas pernas marchavam com pequenos jor­ros de urina quente em movimento.

         Abandonando as instruções do morto, porém, o louco deu

início ao tumulto ao meio-dia, ouvindo o sino da igreja soar como um sinal.

Por mais furiosamente que o sargento tocasse, mandando à esquerda, o louco gritava à direita. Quando já estávamos ha­bituados a marchar sempre em frente, ele mandou que come­çássemos a marchar de costa. Quis que as velhas trepassem umas nos ombros das outras e mais outras por cima, e mar­chassem assim, milagre de equilíbrio. Ele próprio quis soprar a corneta, tomou-a do sargento. Corria de um lado para o outro como um louco, que era. Exigiu que os pássaros não interrom­pessem os seus vôos e se precipitassem até o fim, contra o chão da praça, onde viravam terra. Bombas explodindo por todos os lados. Pedia que nos identificássemos e mostrássemos os nos­sos documentos, aos gritos.

O morto batia a cabeça na parede com uma violência ain­da mais brutal. Inacreditável que continuasse inteira, aquela caixa de desejos.

Os homens deitaram-se uns sobre os outros, abraçados. E fizeram uma máquina de matar com seus corpos, rolando por cima dos meninos, dos cachorros e dos aleijados caranguejos que não saíam da frente.

Num canto, para onde haviam se retirado, agora todas juntas, as costureiras da cidade apressavam as suas mãos.

Voltaram com uma rede. Lançavam-na sobre os outros e apertavam até a asfixia. Arrastavam os mortos para fora da praça, onde iam fazendo um monte. E voltavam para apanhar mais.

O louco pediu bebidas.

Trouxeram.

Esvaziou uma garrafa e quebrou-a na cabeça mais próxima.

           Tomaram dele a corneta. Fez com as mãos outra e uivou

através delas, mais alto, ainda mais alto.

           Depois foi ficando noite, foi ficando cansativo e triste tu­

do aquilo.

Sentados aqui e ali, os cachorros lamberam as suas feri-,

das. Acenderam-se fogueiras e os mortos começaram a ser

queimados. A volta da sensatez, antes que começassem a chei­rar

mal. No meio do silêncio que se fez, enquanto a lenha esta­

lava e as carnes se contorciam no fogo, ouvi um choro baixo,

infantil. A cabeça caída no peito, afundando para dentro de si,

o sargento Nazareno desistia naquele momento, para sempre,

da sua antiga vida militar. Deu novamente a sua mão esquerda

a que não mata, para beijar. As mulheres acenderam velas para ele

e rezam.

Esperam os milagres.

 

Febres do sangue sem esperança de um prisioneiro da ca­

beça escura e das idades do homem.

         Agora o sargento acaba de despertar, por um instante,

para gritar:

         - Os animais.

         Sua voz, com um acento soluçante, me encontra sozinho

do outro lado da praça, junto às cinzas de uma fogueira, sen­tindo o cheiro

das carnes queimadas das vitimas deste dia

         Depois, sua cabeça caiu para o peito, e ele voltou a dor­mir.

 

Durante toda esta noite, após a marcha, que atirou todos os outros num sono profundo,

ele acordará outras vezes para se fazer ouvir, aos gritos e às vezes

com uma ternura inesperada na voz.

 

Agora ele desperta novamente, para gritar:

- Passem lentos os que vieram antes por aqui. A luz pela

metade que te cobre toca a esperança acuada em sua toca, mais forte que o animal atrelado

à fraternidade da carga nos hori­zontes de sangue, ouvindo que aquilo treme. Cinzas e essa voz

sem a tua voz. Há desespero nos relógios parados. Falta de ar no próximo minuto. Uma cauda

atravessa a alegria. Faz re­tomar os dias de delírio sem inscrições no ferro. As aves per­dem a

memória das belezas da carne onde a noite é vermelha. Árvores se dobram nos sonhos.

Escurece os teus pés. Venenos murmuram um nome na areia. Os homens esqueceram a tua

voz onde deixaste um espelho. Os minerais profundos, as águas da terra, gritam à distância

numa língua morta.

No vento pas­sam os prisioneiros do infinito, as maldições do pó. À noite vi­rão os que temem a noite.

Escurece os teus pés.

 

Eu o escuto, do outro lado da praça.

 

Novo despertar, novos gritos.

- Álcool das ruínas. Passo perdido. Não há a quem agradecer.

Esvazia os bolsos e tudo isso que se volta para te ver pas­sar. Carne queimada, apetite

sem remorso. Não foi tarde de­mais quando, cegaste quem te torturou com um olhar feliz.

Murmuro na casa do teu ouvido. Passam à tua porta inválidos de cinco continentes

que te trazem um espelho gelado e esses gestos sem sentido com os quais queres partir.

 Rumor de ramos quebrados. Vozes sem marcas de passos, agora estamos juntos.

Não acendam as luzes para o nome que odiamos. Faz entrar quem te ama à noite,

há matança nas ilhas. Com um movimen­to de paixão convulsiva as ervas rapidamente morrem,

os pés esmagam a ave distraída. Nenhum homem saberá de ti,

do instante que chamaste o fogo ausente. Espera o amanhecer para

enlouquecer mais calmo. Andaremos em círculo para achar tua sombra deitada junto a um muro.

Eu recuso a piedade por nós

dois. Afundaremos como os navios, derramando no mar

o sangue das vítimas. Dançam na outra margem, podes ver sem os

olhos. Onde quer que se encontrem o teu mistério, os venenos

do ar, respira sem medo. Adiante te espera um rosto de areia.

Relógios de pedra afundam em nosso sono. No negro

que se se­gue às luzes que se apagam, no movimento das águas frias, nos

lábios que beijam a palavra mais cruel do idioma, há incêndios

nas florestas, animais que buscam a aventura, rigorosos e de­sesperados, enquanto queimamos

esta cabeleira ao vento estre­mecidos de beleza.

 

Os outros continuam adormecidos. Só eu o escuto. Mais uma vez:

- Incendeia o curral de um deus. Ventos selvagens per­correm toda a terra e buscam

 a carne escura da tua eternidade. Bebe os teus lábios partidos. Tudo o que deve sangrar.

Temos os delitos do sono, golfos de luz para resistir à noite. Uma alu­cinação com mortos

que acenam adeus. Passam velozes os anos de paixão sem esperar por ti. Teus cabelos crescem

em di­reção ao mar. Mostra o prazer encontrado num minuto verme­

lho, o espelho de uma hora que não se pode olhar. Eu passo

dentro de ti com patas suaves, fantasma do lodo, por entre os homens que dormem com um rosto de pedra.

 Beberemos os teus suores noturnos, arderemos sob um sol tombado. Nós somos os animais da terra

sentados junto a um fogo azul, aqueles a quem tu chamaste revoada no verão.

 

Vejo o fantasma do outro lado da praça. Voltou a dormir agora. Não sei por onde andou

este morto, vestido de verme­

                                                                                                 lho.

Olham para nós da outra margem os animais do sono. Um vento forte começa a soprar, com a madrugada que

chega. Sacode as redes dos que dormem, agita os cabelos do morto. Leva os ecos da sua voz para longe. Tenho sono

o que restou daquela marcha, daquele dia fatigante, irracional e feliz?

 

Ferimentos espalhados pelo corpo todo, uma desorienta­ção sem olhos para reconhecer a vida. E caiu um lençol branco sobre os habitantes de Santa Maria do Grão, do qual só saem por breves momentos, sacudidos pelas víboras em que se trans­formaram os músculos doloridos. Fúrias dentro da carne.

Eles descem os degraus desse estado. Um torpor estúpido

Em seguida começaram os esquecimentos.

No meio da noite, alguém despertava com um gosto de ausência na boca. Bebia água, cuspia, abria a janela e olhava para as estrelas. Não sabia mais por que nome chamar aquelas luzes. E elas recuavam para o fundo do céu, negando-se à memória.

Depois um outro queria contar a um sentimento vago de parente deitado no escuro do quarto o que estava acontecendo. As palavras se perdiam, extraviadas como as estrelas.

. E nem um gosto amargo ficava sob o céu da boca, nada.

Na troca de um passo, alguém já não sabia para onde. E o

   que era aquilo de casas que fora uma rua.

Eles começavam a ficar parados, encostavam-se numa pa­

rede e esperavam. Não sabiam pelo que esperavam. As ruas fo­ram ficando cheias daqueles corpos sem movimento, uns olhos mortos, as mãos caídas ao lado da única coisa que ainda se sa­bia. A carne. A carne não precisava da memória. Continuava pulsando, pulsava. E até quanto esquecimento a carne poderia resistir, esse era o limite de um segredo.

           Um gesto de levar um copo de água à boca ficava inter­rompido. E o que era "água água. E para quê.

Nem havia mais perguntas.

Mas os que não haviam sido tocados, os que recordavam que estamos todos aqui para essas marchas militares

loucas, para esses toques de corneta soprada por um fantasma, esses recolhiam os esquecidos nas ruas e os

levavam para as suas ca­sas, deitavam nas camas, faziam compressas de fogo e aplica­vam nas frontes geladas.

Mulheres velhas torciam os terços e os lábios. Cabeceiras de leitos de onde o passado não queria mais se

aproximar, passos antigos saíam pela porta e não voltavam

Um dia na vida do homem sem memória.

Mas, antes, se a vida revelasse como nos faz aparecer, hu­

manos, tantas vezes um riso sem sentido, e rancoroso, nesta terra que chamamos terra, assim capazes de lembrar.

Os dias passados. O conteúdo dos sonos, o momento feliz de sair daqui para fora daqui e apegar-se à vida, que

será igual ao momento de voltar, desaparecer vida adentro outra vez. Foi um homem, é o que se dirá depois.

Há um tempo para a ação e um tempo para a reflexão.

Entre o fantasma do sargento Nazareno e eu, que narro a sua segunda vida, eu que devo matá-lo novamente

quantas pá­ginas adiante ainda não sei, esvoaça a lembrança da sua primei­ra vida.

E é assim que existem dois.

Aquele homem que ele foi, brutal.

E este morto, que quer nos estender uma mão santa. Os dois num corpo destruído, escorado ainda na mesma

parede desde que veio.

 

Sem a memória, eu viveria com a sua morte sem ela. E ele estaria à sombra da árvore humana que eu sou

como se fosse a sua primeira vez, a sua primeira vida. A única. Não houve ou­tra. É assim para os que

foram tocados pelo esquecimento em Santa Maria do Grão. Para eles agora há apenas um morto

adormecido na praça. Não houve um homem antes. O presente diz alguma coisa junto aos seus ouvidos.

Só ele grita, como gri­ta este presente. E eles não têm mais a noite cheia dos rumores que dão as velhas

ordens do passado.

         A vida não quer me falar sem o passado, porém, como fa­la a eles. Eu não fui tocado.

Eu recordo tudo.

Quem sabe?

Talvez a imaginação fale.

 

 Um dia na vida do homem sem memória, diz a imaginação. Seria assim.

          Acordo.

          Não ficou para trás um sonho, não houve despertar. Não

há o que lembrar.

Não saberei onde estiveram os meus pés, andando pelo quarto, ainda na penumbra.

Santa Maria do Grão dorme. Agora pela sala. E então já estou saindo para a rua. E o que é rua,

mas não houve rua quando o homem sem memória volta

  para o seu quarto.

Tropeçar.

Cair. Levantar os olhos. Nunca mais será como antes. E as ruas. Talvez a mesma rua

 novamente. Um primeiro passo e de­pois um segundo primeiro passo.

Por esta página se passa diante do sargento Nazareno, que dorme, a cabeça enfaixada com gazes

que as mulheres ataram. E quem é este fantas­ma? No próximo passo eu não passei por ninguém.

Não há a pergunta.

Rever os parentes, rever os amigos, o homem sem memó­ria não quer rever a terra em que nasceu.

Disso está livre. Co­mo está livre do assunto da noite anterior, da mulher que passa ao seu lado

tocada pelo luar, sob os monumentos que espiam a vida na praça de Santa Maria do Grão.

Houve um prazer na

véspera. Não há véspera agora. Não houve a noite de ontem.

Não é comigo que ela fala. Eu não fiz nada ontem. Não conhe­ço este nariz no espelho do quarto,

quando estou de volta. Não houve volta.

 

Mais tarde ainda, andando pelas ruas, escuto:

       Não fui o sargento Nazareno. Não morri e voltei numa tarde. Há apenas um morto nesta praça,

não houve um homem antes. Não se sabe depois. E a próxima palavra, se ela está atrás, então não há

mais nada a dizer.

 

         Por que estas palavras e não outras para contar outra vez a

vocês a mesma história?

         Antes, porém, teremos dois falsos finais para ela, neste

ponto em que chegamos todos juntos.

 

      Meti a mão no passado, mas é um passado que guardo na cabeça sem ter vivido um único

momento dele, eu não estive lá, para extrair um militar assim sem vida, um tanto estragado

e mutilado depois que o matei pela primeira vez. E sujo de terra depois que eu o enterrei

com a ajuda de um cortejo de miserá­veis e infelizes criados pela imaginação, ou sonhados.

Ou é sem dúvida a memória, arte mecânica, uma feira. Os bonecos que­rem dizer tudo o

que não podem, não podem e se revoltam, ar­rancam os cabelos, arrancam os olhos para não ver,

arrancam os dedos das mãos para não escrever mais. Você tem esse olho cego, me perguntam,

 não está revoltado? Pisco para mim mes­mo, para o morto adormecido na praça. Então,

que seja assim. Agora ele será apenas um morto. Nada mais. Não houve um homem antes.

Não devo matá-lo outra vez. É preciso permitir, a ele também, que persiga a felicidade.

Lá fora, a floresta ao redor de Santa Maria do Grão vive dos seus rumores. Não há revolta.

 

Outra vez.

Um jogo.

 

Meti a mão no passado, mas é um passado que guardo na cabeça sem ter vivido um só

momento dele, eu não estive lá, re­pito, para extrair um militar assim sem vida, um tanto estraga­do

e mutilado depois que o matei pela primeira vez. E sujo de terra depois que eu o enterrei com a ajuda

de um cortejo de mi­seráveis e infelizes criados pela imaginação, ou sonhados. Ou dos quais apenas

me lembro desde que me dispus a falar de im­proviso, sem nenhuma realidade sob os pés.

Você tem esse olho cego, me perguntam, não está revoltado? Pisco para mim mes­mo, enquanto

avanço para apunhalar, desta vez em pleno pei­to, o morto adormecido na praça. Então, será assim.

E devo matá-lo quantas vezes forem necessárias. Eu não esqueci, co­mo os outros, e se agora ele

 nos quer outra vez de joelhos, devo recusar a humilhação pela adoração, como recusei a humilha­ção

pelo medo. matá-lo outra vez pela cabeça, outra vez pelas costas, outra vez pelos pés e por seus olhos

 

que tentam essa luz inumana para nos submeter. É preciso não permitir que ele nos

impeça de perseguir a felicidade.

Lá fora, a floresta ao redor de Andara vive a sua revolta contra os esfaqueadores de aves,

contra os incendiários do ho­rizonte.

 

Estamos prontos para recomeçar.

 

Volta à tona o texto no momento exato em que, mudança de tom, humor agora, as páginas

passadas foram bem tristes. Estamos à espera de uma nova festa e que os pássaros despen­quem

outra vez.

Reunidos na praça, enquanto o morto dorme aguardamos a madrugada.

Será quando não for mais noite nem ainda o dia. Espera­mos felizes, todos, essas crianças

esperam a nuvem de asas brancas e estas serpentes que já vêm descendo agora sobre

Santa Maria do Grão.

Fim de A asa e a serpente

A viagem a Andara não tem fim