:::::::::::::::::::::::::::::AMADEU BAPTISTA

Quinze Poemas de Amadeu Baptista - Index

Pena agravada
(para Vítor Silva Tavares)

Estou a cumprir pena perpétua.

Na infância, uns filhos da puta rodearam-me
com triângulos escalenos e não pude
fazer mais que emocionar-me. Nesse tempo,
a minha ocupação eram as luzes coloridas e um rio
em que as barcas abrangentes conduziam as almas
para o inferno, sem que dessa escuridão se suspeitasse.
Nos anos cinquenta a miséria absoluta confrontava-se
com um menino inocente, que o alarido dos vizinhos
amedrontava, sendo que alguns deles sangravam dos ouvidos
e dormiam ao relento sob as árvores, e bebiam
até que pelas veias corresse apenas álcool. Com cuidado,
olhava-os nos olhos, a fazer do silêncio um primeiro
recorte obsessivo de palavras, películas vermelhas
que invadiam a nítida frescura do meu pátio.
Estava ali e queria persistir, talvez porque pensasse
que há lugares ilesos um pouco para além
dos gemidos da noite e do chicote
com que a turbulência arrasa certas vidas
que não podem mais que o pão quotidiano,
sobretudo se o desamparo é não o ter.
Agir, por essa altura, era crescer, embora o crescimento
seja uma fortuna inverosímil, que se pega
ao corpo a assinalar o teor que há na dor
de modo mais profundo e explícito, em que a morte
é como um sinal de perigo, mas não exactamente
uma ameaça. Fazia sete anos e era pastor aquando
do passamento da mulher amada, a quem chamei avó
e sei que é um álamo verde nestas margens
em que me reduzo a pó nesta memória
de a lembrar agora a inscrever nas praças do seu tempo
um meneio escandaloso de passar por elas
com os cabelos soltos e a anca em fogo.
Compôs-se então de treva a claridade e aprendi a ler.
Foi-me tormento a escola e o terror
de ter por mestres gente que batia nas crianças
e andava curvada sobre o tempo
que se estendia cinzento sobre os dias,
sem qualquer alegria que a tristeza anódina
dos que perderam para sempre a macieira
mágica. Cheguei a presumir que nos temiam,
sendo as nossas certezas tão escassas
mas tão vociferantes essas figuras
que nos faziam crer que compensava o crime
de nos manterem reféns no estrado,
completamente prontos para a impunidade
de uma régua mortífera nos nós dos nossos dedos.
Mijávamo-nos de pavor pela violência inumerável
da aprendizagem, onde o fulgor coalhava
com notícias do céu tão abstractas
como o facto de sermos navegantes
há tanto tempo que não o lembrávamos.
Até que um dia, já adolescente,
descobri o poder da poesia que, a par com o mar,
aprendi a fitar com imprudência, por serem
revoltosas essas águas em que o dia
e a noite se confundem. Era essa imprudência
o desassombro de ouvir o longínquo e o genesíaco,
com homens e mulheres a recortar-se
da imensidão dos tempos, a cantar a dolência
e o sublime, a invectivar o mistério e a ampliar
o enigma que há entre os enigmas, ou o surto
de sentidos que, num sopro, agrega ao infinito
o infinito, para que haja mais infinito no sentido.
No meu país, então, grassava a guerra
e para os da minha idade só havia
essa promessa como compromisso,
que abarcava a morte pela extorsão
e a posse da terra, e a escravatura
de outros homens em tudo iguais a nós.
Longos anos durou essa aflição, até que um dia
o mais cruel dos meses comportou
a amenidade esperada, dando à paz
um fugaz clarão de expectativa.
Por essa estrada ia a descobrir os gregos
e não tardei a ver com que punhais
trabalha a insídia e aos abutres
se não devem confiar os braços levantados
para a prece comum. Os pobres
estão mais pobres do que nunca e despojado
o mundo pelos roubos que, entre acerto e desacerto,
cada um de nós vai consentindo, por cobardia,
fraqueza, ignomínia. Ainda assim eu quis resistir.
E li mais gregos, e instintivamente olhei o mar.
E fui, contra a corrente, nessa corrente
de vozes subterrâneas e ventanias densas
que me tornaram órfão de tudo quanto amei
e perplexo amante de um recontro tenso
com o poema oculto no poema
em que, mais do que o amor, surpreendi a morte
com que, fora de mim, por dentro me revejo,
agora que, ungido pelo vazio, só mesmo a poesia
sobrevem. Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais
e, tal como na infância, uns filhos da puta me rodeiam.

Não posso fazer mais que emocionar-me.

 

de Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007), 2007

Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.
Obras publicadas, poesia:
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa/2, em col.), Porto, Limiar, 1985
Maçã [Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985], prefácio de Maria da Glória Padrão, Porto, Limiar, 1986
Kefiah, prefácio de Floriano Martins, Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988
O Sossego da Luz, Porto, Limiar, 1989
Desenho de Luzes (edição galaico-portuguesa), Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997
Arte do Regresso (pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993), Porto, Campo das Letras, 1999
As Tentações, Santarém, Edição “O Mirante”, 1999
A Sombra Iluminada (in Douro: Um Percurso de Segredos, em col.), S/l, Instituto Navegabilidade do Douro e Campo das Letras, 2000
A Noite Ismaelita, Guimarães, Pedra Formosa, 2000
A Construção de Nínive, Porto, Edições Mortas, 2001
Paixão (Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Porto, Afrontamento, 2003
Sal Negro (in Sal Negro Sal Branco) Almada, Íman Edições, 2003
O Som do Vermelho – tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro, Porto, Campo das Letras, 2003
O Claro Interior [Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000/poesia], Almada, Íman Edições, 2004
Salmo, Porto, ASA, 2004
Negrume, Lisboa, Edições & Etc, 2006
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982 – 2007), V. N. de Famalicão, 2007
O Bosque Cintilante, [Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama– 2007], V. Nogueira de Azeitão, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, 2007 (fora do mercado)

Organização de antologias:

Quanta Terra!!! - Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea, 2001;
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80, em col. Com José-Emílio Nelson, prefácio de Luís Adriano Carlos, Porto, 2003
Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U. A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Portugal, Roménia e Uruguai.
Poemas seus foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, italiano, inglês, romeno, neerlandês e hebraico.