INÚTEIS COMO OS MORTOS
Cunha de Leiradella
www.triplov.com 16-09-2005

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CENA XIII
Quarto de hotel. Nininha e Eduardo. Deitados. Eduardo fuma, absorto.
 

NININHA

Eduardo. Eduardo. Você não queria vir, não? Se você quiser, a gente... (Eduardo continua fumando, absorto.) Eduardo... (Tira-lhe o cachimbo da boca e abraça-o.) Quê que você tem, hem?

 

EDUARDO

Sabe qual é o meu mal? Acreditar que os outros, às vezes, ainda me dizem a verdade.

 

NININHA

Tá falando nisso, agora, por quê?

 

EDUARDO

Por tudo.

 

NININHA

É por causa daquele seu amigo?

 

EDUARDO

Sabe o quê que eu gostaria de ser? Um cidadão exemplar.

 

NININHA

E isso ia resolver, Eduardo? Eu já fui...

 

EDUARDO

Não sei. Talvez não resolvesse mesmo. Mas, pelo menos, se eu pudesse viver no faz-de-conta e você também pudesse, sabe o quê que ia acontecer? Ninguém nos cobraria nada, nós também não cobraríamos nada de ninguém e todo mundo ficaria satisfeito. Nós aceitaríamos as coisas sem discutir, não questionaríamos nada, nem ninguém, e a paz desceria sobre nós, como você diz que diz o seu marido e a minha mulher também diz. Só que, pra ser cidadãos exemplares, nós não podemos fazer o que fazemos. Não podemos jogar na cara dos outros a merda que nós somos e a merda que eles são. Por isso, nós somos o que somos, Nininha. Transgressores. Inimigos...

 

NININHA

E isso, agora, importa, Eduardo?

 

EDUARDO

Não. Mas desilude.

 

NININHA

Os outros não importam, Eduardo. Você me ensinou isso, ou já esqueceu?

 

EDUARDO

Não são os outros, Nininha. Sou eu. Sabe o quê que eu deveria fazer, se tivesse coragem? Dar um tiro nos miolos. Pelo menos, acabaria a merda da memória. Os outros não importam, não, Nininha. O errado sou eu, que não consigo fazer de conta comigo mesmo.

 

NININHA (Ao mesmo tempo)

Eduardo...

 

EDUARDO (Continuando)

Sabe? Às vezes, eu me contradigo. Mas me contradigo de propósito. Só pra não me repetir. Se a gente pudesse não lembrar, talvez a gente pudesse ser feliz, sabe? Você já pensou? Se a gente não tivesse memória, todos os nossos atos, por mais insignificantes que fossem, seriam sempre descobertas maravilhosas. Você soma numa máquina, ela te dá o resultado. Você soma mil vezes e ela te dá mil resultados. Mas, prá máquina, cada operação é sempre uma nova operação. Mesmo que você acumule os resultados e mande repetir, a própria repetição, pra ela, é uma nova operação. As máquinas não lembram, Nininha. Nós devíamos ser como elas. Mesmo repetindo, nunca repetiríamos. Você já pensou se nos pudéssemos beijar como se nunca nos tivéssemos beijado? Os nossos beijos, mesmo repetidos, seriam sempre os nossos primeiros beijos, Nininha.

 

NININHA (Abraçando Eduardo com força)

Eu não quero que você me deixe, Eduardo!

 

EDUARDO

Então beija-me. Mas beija-me como se nunca me tivesses beijado. Como se este fosse o nosso primeiro beijo, Nininha!

 

APAGA A LUZ

 

VOZ DE CARLOS MANUEL

Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Suicidou-se. Nós, que ainda vivemos, que faremos?