O HOMEM CALADO
Cunha de Leiradella
9-01-2005
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SEGUNDO HOMEM
Não precisa nem pensar. Só de memória são mais de trinta tempos. Quer ver? Tempo astronômico, tempo civil, tempo composto, tempo da janambura, tempo da salga, tempo das efemérides, tempo das vacas gordas, tempo das vacas magras, tempo de acesso, tempo de D. João Charuto, tempo de entrada, tempo de Friedmann, tempo de geração, tempo de Hubble, tempo de projeção, tempo de relaxação, tempo de residência, tempo de resolução...

PRIMEIRO HOMEM
Que é importantíssimo.

SEGUNDO HOMEM
Que é importantíssimo, mas ainda não é o último. Tempo de resposta, tempo do Onça, tempo do rei velho, tempo do ronca, tempo dos Afonsinhos, tempo dos Afonsinos, tempo em que se amarrava cachorro com lingüíça, tempo integral, tempo local, tempo morto, tempo próprio, tempo sideral, tempo simples, tempo solar médio, tempo solar verdadeiro e tempo universal. E, isto sem entrar na bíblia, que se entrar, então, adeus tempo. É tempo de semear, é tempo de colher, é tempo de nascer, é tempo de morrer, é tempo disto, é tempo daquilo, é tempo que nunca mais acaba. Meu amigo, me diga, depois de todos estes tempos, o senhor ainda acha que, no meu caso, o tempo foi mais importante do que a vontade? Hem?

PRIMEIRO HOMEM
Realmente. Comparando o cigarro com o tempo...

SEGUNDO HOMEM
E o senhor? Já experimentou tomar um copo de água em jejum?

PRIMEIRO HOMEM
Eu nunca fumo em jejum, meu caro amigo.

SEGUNDO HOMEM
Pois fume, fume, e me diga se o seu jejum não piorou. E, agora, se me permite... (Pega o cigarro do Primeiro Homem, puxa uma tragada profunda, sopra o fumo com força e esmaga o cigarro no chão com a sola do sapato.) É um favor que lhe faço, meu amigo. Um favor que o senhor nem imagina.

Num gesto automático, o Primeiro Homem mete a mão no bolso e tira o maço de cigarros. Mas, ante o olhar de reprovação do Segundo Homem, guarda-o de novo.

PRIMEIRO HOMEM
O senhor não vai nem acreditar...

SEGUNDO HOMEM
Como não vou acreditar? Eu já lhe disse, eu sou contabilista, meu amigo.

PRIMEIRO HOMEM
E eu sou...

SEGUNDO HOMEM
Não se precipite. Não se precipite, que não vale a pena. Como eu sempre digo, nenhum homem é o que parece.

PRIMEIRO HOMEM
Pois eu sou. Sou mesmo. E o senhor vai ter oportunidade de ver. (Faz o gesto de meter a mão no bolso.) Agora.

Num gesto rápido, o Segundo Homem segura o braço do Primeiro Homem.

SEGUNDO HOMEM
Meu amigo, o senhor não precisa mostrar nada. O senhor já mostrou, ou já esqueceu os girassóis?

O Primeiro Homem abraça o Segundo Homem.

PRIMEIRO HOMEM
Ah, se minha mulher o escutasse.

SEGUNDO HOMEM
Ela não acredita...

PRIMEIRO HOMEM
Diz que a verdade… Lembra da verdade dos tribunais?

SEGUNDO HOMEM
Claro.

PRIMEIRO HOMEM
Pois ela diz que eu engordei. Mas, mesmo assim, aqui onde o meu amigo me vê, já tomei resoluções muito, mas muito definitivas!

SEGUNDO HOMEM
E ela continua dizendo…

PRIMEIRO HOMEM
O senhor não a conhece.

SEGUNDO HOMEM
Não conheço, mas já conheço o marido.

PRIMEIRO HOMEM
Realmente, ela é uma esposa de verdade.

SEGUNDO HOMEM
Meu amigo, todas as esposas já foram, ainda são, ou serão esposas de verdade. A minha, por exemplo, diz que não é, mas é. É professora.

PRIMEIRO HOMEM
A minha não. É paranaense.

SEGUNDO HOMEM
E o senhor?

PRIMEIRO HOMEM
Meu amigo, aqui onde o senhor me vê, eu sou, acima de tudo, um cidadão. E, como tal, sempre disse, sempre digo e sempre direi que a cidadania é a base da formação. Com cidadania, meu amigo, este país não precisa de mais nada. Basta descobrir a sua verdadeira identidade e pronto.

SEGUNDO HOMEM
Agora é que o senhor disse tudo, meu amigo. Este país já foi descoberto mas ainda não se descobriu.

PRIMEIRO HOMEM
Muitos falam em economia...

SEGUNDO HOMEM
Eu sou um deles.

PRIMEIRO HOMEM
Eu também. Mas eu falo porque pago os meus impostos, tenho a minha carteira de identidade, tenho o meu título de eleitor, tenho o meu CPF, tenho o meu passaporte...

SEGUNDO HOMEM
Passaporte eu não tenho.

PRIMEIRO HOMEM
Mas tem título de eleitor...

SEGUNDO HOMEM
Isso, eu tenho. Tenho título de eleitor, tenho carteira de identidade, tenho carteira de motorista, tenho...

PRIMEIRO HOMEM
Meu amigo, com todos os nossos documentos e a nossa força de vontade, nós vamos longe, pode crer. Este país só precisa é de quem acredite nele. O resto...

SEGUNDO HOMEM
Será um mero pormenor...

PRIMEIRO HOMEM
Exatamente. Será um mero pormenor. Mas, repare, será um mero pormenor, mas será um pormenor importantíssimo. Se, um dia, eu fosse candidato, o pormenor seria o meu slogan. Por menor que seja a sua ajuda, eu preciso de você!

SEGUNDO HOMEM
Mas o senhor já é um candidato, meu amigo. Com um slogan como esse, o senhor já é um verdadeiro candidato. (A perta, calorosamente, a mão do Primeiro Homem.) Meus parabéns. Meus sinceros parabéns. Não esqueça que o que falta à nossa política são slogans que digam a verdade.

PRIMEIRO HOMEM
Se cada um fizesse o seu dever... (Tira o maço de cigarros do bolso.) Eu, por exemplo...

SEGUNDO HOMEM
O bom exemplo é a mais significativa das virtudes, meu amigo. (Tira o maço de cigarros da mão do Primeiro Homem.) Para o senhor, deixar de fumar, vai ser facílimo. Primeiro, o senhor dá valor ao pormenor. Segundo, o senhor já tomou resoluções muito, mas muito definitivas. Terceiro, o senhor é um cidadão documentado. Quarto, Demóstenes... O meu amigo, certamente, conhece Demóstenes.

PRIMEIRO HOMEM
O grego ou o...

SEGUNDO HOMEM
O grego. O gago. Como eu dizia, se o meu amigo conhece a gagueira de Demóstenes, conhece a surdez de Beethoven, conhece as dores de Pascal, conhece o homossexualismo de Gide, conhece...

PRIMEIRO HOMEM
Meu caro amigo, antes de mais nada, deixe-me que lhe diga, eu nunca discriminei as minorias.

SEGUNDO HOMEM
Mas não são minorias, meu caro amigo. A gagueira de Demóstenes, a surdez de Beethoven, as dores de Pascal, o homossexualismo de Gide (Tira o maço de cigarros da mão do Primeiro Homem.) são pormenores que passaram à história da força de vontade.

PRIMEIRO HOMEM
O senhor diz isso porque não me conhece. Eu sou sócio do Clube dos Seis a Dez, meu amigo. (Num gesto brusco, tira o maço de cigarros da mão do Segundo Homem e guarda-o no bolso.) Todo dia corro de seis a dez quilômetros.

SEGUNDO HOMEM
Mens sana in corpore sano.

PRIMEIRO HOMEM
Exatamente. A tradução perfeita do perfeito cidadão. Mente sã em corpo são.

SEGUNDO HOMEM
Minha mulher também diz a mesma coisa. Por isso ela diz que não é, mas é! Eu sei que é.

PRIMEIRO HOMEM
Calma, meu amigo. Calma. Hoje em dia, ser ou não ser, já não é mais uma questão. É apenas uma opção. Se ainda fosse uma questão até o velho pecado secreto também ainda seria um pecado.

SEGUNDO HOMEM
E não é? O meu amigo acha que pecar secretamente não é pecar? É pecar, sim. Eu acredito no Juízo Final, meu amigo.

PRIMEIRO HOMEM
Eu nunca, em tempo algum, duvidei do Juízo Final, meu caro amigo. E lhe digo mais. Nunca duvidei, não duvido, e nunca duvidarei. Apesar do que se vê por aí, eu não posso imaginar Jesus Cristo percorrendo a Palestina de helicóptero.

SEGUNDO HOMEM
Nem eu. Por isso é que sempre digo e repito...

PRIMEIRO HOMEM
E eu também não digo? ( Tira o maço do bolso, e o isqueiro, e acende um cigarro. ) A César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

O Segundo Homem faz o gesto de pegar o cigarro, mas o Primeiro Homem não deixa. Puxa uma tragada profunda, sopra o fumo com força, joga o cigarro no chão e esmaga-o com a sola do sapato.

PRIMEIRO HOMEM
Não se preocupe. É apenas o vício do vício. Amanhã largarei este veneno. (Conta os cigarros do maço.) Sete. A conta de hoje, nem mais um, nem menos um.

SEGUNDO HOMEM
E não é só a conta de hoje, meu amigo. É também a conta dos dias da semana, a conta dos sábios da Grécia...

PRIMEIRO HOMEM
A conta dos sábios da Grécia, a conta dos pecados capitais (Guarda o maço de cigarros no bolso.) , a conta das maravilhas do mundo...

SEGUNDO HOMEM
A conta das maravilhas do mundo, a conta das estrelas da Ursa Menor, a conta...

PRIMEIRO HOMEM
Meu amigo, é a conta das estrelas da Ursa Menor e será a conta das decisões definitivas. Veja. (Tira o maço do bolso, pega um cigarro e joga-o no chão.) Vae Victis!

SEGUNDO HOMEM
Ai dos vencidos!

PRIMEIRO HOMEM
Isso! Ai dos vencidos! (Esmaga o cigarro no chão com a sola do sapato.) Ai dos vencidos, meu amigo! (Pega outro cigarro e faz o gesto de jogá-lo no chão.) Ai dos vencidos!

Num gesto rápido, o Segundo Homem segura o braço do Primeiro Homem.

SEGUNDO HOMEM
O senhor não precisa fazer mais nada, meu amigo. O senhor já fez muito.

O Primeiro Homem coloca o cigarro no maço e guarda-o no bolso. O Segundo Homem abraça-o calorosamente. O Homem Calado aparafusa o último sarrafo na cerca e empurra os dois homens, ainda abraçados, para fora do palco, pela esquerda.

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
O senhor já fez demais, meu amigo. O senhor já fez demais. Já facilitou muito a sua conta.