CALIDOSCÓPIO E HIPERTEXTO
Sônia van Dijck
(http://www.soniavandijck.com)

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Cunha de Leiradella disse: quando você cria um personagem, você cria muito de você, não que seja você, mas ele tem muita coisa sua. Eu tenho um personagem que percorre toda minha obra e que se chama Eduardo da Cunha Júnior. Ele já foi tudo que eu fui. Já foi jornalista, já foi gerente de bar, de hotel. Quando você cria um personagem, você pega uma vertentezinha do seu universo ontológico e coloca no personagem (1). E Eduardo da Cunha Júnior está diante de nós no mais novo livro de Cunha de Leiradella.

Cunha de Leiradella, português, residiu no Brasil por mais de 40 anos, onde ambienta a maioria de suas obras; integra a Literatura Brasileira e a Portuguesa como dramaturgo, romancista, contista, roteirista, tendo recebido vários prêmios, tais como: Plural, 1987 (México), Cruz e Souza, 1995 (Brasil), Caminho de Literatura Policial, 1999 (Portugal).

Eduardo nasceu em O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1987), e tem certa responsabilidade pelo sucesso de crítica de seu criador, ainda que o autor já não fosse um estreante nas Letras.

A pluralidade temática marca o recente romance. Sob o signo da metaliguagem, desde as primeiras páginas, contempla a relação escritura - leitura e o fazer literário. Mas, logo, nossa atenção se prende ao "enigma": Eduardo da Cunha Júnior morreu no Caraça? Mas, por que essa galeria de homens e mulheres em demanda não se sabe bem de quê ou, talvez, de tanta coisa, que só a liberdade e a felicidade traduzem? Pode ser que o interesse do livro esteja em nos revelar a incomunicabilidade que prende cada um desses homens e mulheres, que, apesar disso, falam do passado, discordam uns dos outros, armam intrigas e falam de Eduardo da Cunha Júnior.

Considerando que Dagoberto Palomar, na abertura da obra, informa que Os espelhos de Lacan é uma narrativa linear, e sempre conduzida pela vontade do autor (p. 15), o melhor é começarmos a ler esse livro a partir do título, visto pelo mesmo Palomar como anúncio de narrativa confusa e impenetrável a uma leitura comum (p.15).

Rica de significados, a palavra "espelho" (speculum = especulação) nomeia um dos artefatos mais antigos. Desde culturas milenares, tanto remete à observação dos corpos estelares, como lembra a verdade, a sinceridade, a pureza, o conteúdo do coração e da consciência. Instrumento de iluminação, simboliza sabedoria e conhecimento. Pode ser símbolo solar e lunar, pois a Lua reflete a luz do Sol. Uno e múltiplo, para os Vedas, fala da sucessão de formas, da duração limitada e mutável dos seres. Na literatura islâmica, lê passado, presente e futuro. Mas, todos sabemos que o espelho oferece a imagem invertida da realidade, isto é: identidade e diferença, sendo que o mundo nele refletido é um aspecto do vácuo. Seu simbolismo liga-se ao da água: nascimento, renascimento, envolvimento dos corpos que dele/dela se aproximam e, evidentemente, Narciso. Sem pretensões de ser exaustiva, lembro que, para o taoísmo, o homem se utiliza do homem como espelho (2).

Não podemos ter certeza de que entendemos esse livro, a partir dessas rápidas considerações sobre os significados de "espelho". Leiradella usa "espelhos", logo, é capaz de ter potencializado todos esse sentidos ao escolher o plural. Além do mais, trata-se de espelhos de Lacan.

Em sua teorização, Lacan usa o espelho para descrever a formação desta ilusão que pode ser chamada de "self", isto é, como a criança dá forma a um ego, um " self " consciente, unificado e identificado pela palavra "Eu". Muitos dos significados acima mencionados informam essa construção. Como estamos tentando penetrar em uma narrativa, seu autor bem que poderia ter-se apropriado de uma lição lacaniana: Não me seria difícil fazer surgir esta perspectiva, esta espécie de jogo de espelhos pelo qual, quando conto uma história, se com isto busco verdadeiramente a conclusão, o repouso, o acordo de meu prazer no consentimento do Outro, permanece no horizonte que este Outro contará por sua vez esta história e a transmitirá a outros, e assim sucessivamente (3).

Não vamos nos deter na possibilidade de espelho remeter a Narciso e nem tomar ao pé da letra o depoimento de Leiradella, citado acima, embora André Serffrin considere que Eduardo da Cunha Júnior (...) tem muito de alter-ego... (4). Com a lição de Lacan, façamos a leitura linear, ditada por Palomar.

Como epígrafes, temos Protágoras, Samuel Joseph Agnon e, é claro, Eduardo da Cunha Júnior (duas citações). No conjunto, esses paratextos anunciam o homem como centro da aventura, a impossibilidade de comunicação, a relatividade da liberdade, da verdade e o inatingível do Absoluto, como se Eduardo estivesse diante de espelhos, que refletem sua imagem e oferecem o vácuo ou um mundo aos avessos e no qual ele não consegue penetrar, embora o veja.

Na linearidade, encontramos o texto de Palomar, convencionalmente publicado no jornal Novo Horizonte, datado de 14 a 20 de maio de 1994. Palomar instaura-se como primeiro crítico de Os espelhos de Lacan, e, assim, o autor estabelece o tempo dos depoimentos que serão conhecidos nas páginas seguintes. Palomar discute a relação escritura - leitura e festeja a chegada da "Era do Botão", graças à qual não se segue mais uma leitura linear, pois estamos na idade do hipertexto. O artigo de Palomar faz-se mesmo como hipertexto: está no pórtico e no encerramento do livro, escolhendo-se ler seu arrazoado de uma só vez ou seguir a linearidade sugerida, e deixar para ler a continuação quando chegar à página 109, que antes foi anunciada como página 105, na rubrica que informa a continuação (p. 15) - o texto está em papel; por favor, relevem a falha dos instrumentos de busca, embora não falte o "botão" Fim (p. 111), que remete à comunicação "internética" na página 112, encimada por @ .

Não vou apontar o tom surrealista de Os espelhos de Lacan, pois o autor já declarou o Surrealismo na base de sua formação. Fico com a idéia de hipertexto, levantada por Palomar e sugiro que se escolha a ordem dos depoimentos de Lúcia, Maurício, Marta, Jussara, Eduardo da Cunha Júnior e outros que habitam esse livro. Eduardo está refletido em cada depoente, e cada depoente invertido no outro, pois cada um viu e conviveu com um Eduardo, do qual reconhece uma identidade e no qual encontra uma diferença, talvez resultante de se mirar no espelho que é o outro. Eduardo vê a si mesmo, vê-se com e nos outros, em um jogo de reflexos, que permite a identidade e favorece a diversidade. Afinal, um homem nunca é nada ele sozinho, como assegura Eduardo em uma das epígrafes.

As personagens são donas da voz narrativa, pois o livro está organizado como fragmentos de discursos de cada uma delas. Falando de seus passados, todas se encontram no presente da narrativa graças à figura de Eduardo, elo da aventura: todas conviveram com ele, perdem-se ou começam nova demanda da liberdade e da felicidade a partir dele. Mas, Eduardo, ainda que não negue os tantos depoimentos, vê a sim mesmo, narcisicamente, como se estivesse refletido nessas tantas vozes.

Organizado como um calidoscópio, Os espelhos de Lacan faz de conta que responde à pergunta que desencadeia a narrativa ou as narrativas: Eduardo da Cunha Júnior morreu, num domingo de dezembro, no Caraça? Para seu calidoscópio, Leiradella reuniu exemplares da humanidade: médica, doutora em Letras, jornalista, putas e mais alguns representantes da raça humana, que amam, odeiam, intrigam, querem a liberdade e a felicidade e são fortemente orientados pelo erotismo. Acima de todos, Eduardo da Cunha Júnior, jornalista e escritor, amou, trabalhou, fez sexo e busca a liberdade e a felicidade e detém o segredo do barracão do quintal. Se ele morreu ou não no Caraça é o que menos importa. Importa saber que ele buscou e que esteve com tantos outros que estavam em demanda.

Leiradella além de fazer da aventura de Eduardo da Cunha Júnior um calidoscópio, faz Os espelhos de Lacan como fragmentos de sua própria obra, retira as epígrafes de autoria de Eduardo de suas falas (que já estão em O longo dia de Eduardo da Cunha Júnior), reafirmando o jogo, e retoma a dúvida desencadeadora da obra de nascimento de sua personagem. Para isso, combina o coloquial com o palavrão e o calão, citações em latim com a mais notória obviedade do lugar-comum, e faz Palomar ser o primeiro crítico deste livro, para que o leitor reencontre essa personagem tão dedicada à obra leiradelliana desde livros anteriores.

Pintando uma atmosfera surreal, Leiradella oferece situações exemplares do homem em busca da felicidade, e, como ainda não a encontrou, Eduardo da Cunha Júnior não pode ter morrido no Caraça. Assumindo uma atitude inovadora, vinda das obras anteriores, o autor oferece um livro em papel que pode e deve ser lido como hipertexto - no caso, cabendo ao leitor a escolha das páginas, para continuar a leitura e até recorrer às obras leiradellianas - na "Era do Botão", basta clicar em http://www.triplov.com/leiradella

Em tom blaguer, Leiradella confirma suas temáticas: a liberdade e a busca da felicidade, na construção do self n' Os espelhos de Lacan. Prefiro dizer que, enquanto speculum, esse livro nos permite contemplar a raça humana, em suas contingências; só nos colocamos como se fóssemos o Hubble se quisermos cruzar anos-luz para alcançar a liberdade e a felicidade, esteja ou não vivo Eduardo da Cunha Júnior.

Enquanto isso, no passado, no presente, no futuro, Eduardo da Cunha Júnior vive, na literatura de Leiradella, lembrando que a sabedoria consiste em saber que minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro.

FONTES E REFERÊNCIAS

1. Entrevista: Jornal impressão . www. jornalexpress.com.br/ oticias/detalhes. php? id_jornal=8185& id_noticia =287 - visita set. 2004.

2. Acerca de "espelho", vejam-se os dicionários: CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain; CIRLOT, Juan-Eduardo.

3. As formações do inconsciente. Seminário 1957-1958, sessão de 11 dez. 1957. Trad. Paulo Roberto Medeiros - www.psicoanalisis.org - visita set. 2004.

4. Um policial barroco. Uma aventura de linguagem. In: www.tanto.com.br/cunhadeleiradella-andreseffrin.htm - visita set. 2004.

CUNHA DE LEIRADELLA
Os espelhos de Lacan
Rio de Janeiro
Ciência Moderna
2004, 112 p.