O Professor DAGOBERTO PALOMAR,
autor do livro A Era do Botão na Travessia do Milênio,
escreve neste espaço na segunda semana de cada mês.

O homem é a medida de todas as coisas.
Protágoras de Abdera

O OBJETO E OS ESPELHOS

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Eduardo da Cunha Júnior morreu em dezembro do ano que passou. Foi encontrado num quarto do Colégio do Caraça, a pouco mais de cem quilômetros da cidade de Belo Horizonte, num domingo de manhã.

Não deixou nenhuma carta, nenhum aviso, nenhuma despedida. E também nada foi encontrado que justificasse, ou esclarecesse, o motivo da sua morte. Amontoados em cima da mesa-de-cabeceira, havia apenas um isqueiro, um maço de cigarros, uma carteira de identidade e duas caixas vazias de Frontal. E, enrolada debaixo da nuca, como a servir de travesseiro, embora na cama houvesse um travesseiro, uma jaqueta velha de jeans.

Nenhum parente ou amigo, ou conhecido, se apresentou no Instituto Médico Legal para reconhecer o cadáver e os jornais também não fizeram nenhuma referência ao ocorrido. Oficialmente, portanto, apesar da morte anunciada, Eduardo da Cunha Júnior não morreu ou morreu com outro nome.

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Se são necessários cento e cinco grãos de milho para decompor um telescópio e mil e doze telescópios para formatar um coração, quantos signos serão precisos para fundamentar uma mulher e quantas mulheres para deletar uma paixão?

Se são necessários cento e cinco grãos de milho para decompor um telescópio e mil e doze telescópios para formatar um coração, quantos signos serão precisos para fundamentar uma mulher e quantas mulheres para deletar uma paixão?

É ótimo escrever em duas línguas.

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Realmente, é ótimo escrever em duas línguas. Além de ser um biglota, numa escrevo o que penso e na outra o leitor lê o que quer. Ou nem lê. Mas, aí, ler ou não ler, já não é mais uma questão, é só uma opção. To be or not to be ainda é uma questão porque Shakespeare não foi um biglota. Se o velho compadre de Windsor escrevesse em duas línguas, ser ou não ser não seria só uma questão, seria também uma opção. Não precisaria tradução e o traduttore, traditore, seria igual ao Big-Bang. Um fator inseminal.

Mas como Deus não joga na roleta e os números nunca mentem, E = mc ² virou lei (o espaço e o tempo unidos pelos sagrados laços do matrimônio e o universo curvado à pressão dos bons costumes) e acabou o nenhenhém. Eliminado o mau exemplo concubínico, globalizaram-se as consciências e os bordéis e todos se tranqüilizaram e ficaram satisfeitos, e praticaram, sem receio, o novo horário de verão.

Com os taquíons prestes a vencer o páreo da velocidade da luz e as sondas espaciais xeretando os sovacos do alfa-ômega, que importância tem, agora, discutir uma questão ou fazer uma opção? Contados os 100 bilhões de neurônios do cérebro humano e os 100 bilhões de estrelas de cada uma das galáxias e medida a profundidade do buraco negro do quintal do vizinho, o homem sabe tudo. E mesmo que não soubesse seria sempre um homo sapiens. Se o Big-Bang explodiu no início, o Big-Crunch só poderia ranger no final. Igual à arte pós-moderna ou ao sensualismo marsupial dos cangurus apaixonados. Embora a concepção seja um tumulto o resultado é sempre previsível. Cada parte é sempre um todo e o todo é sempre genial.

Configurados os pixels e formatados os estilos, nada mais resta aos biguanes senão pular amarelinha nos confins do Infinito ou jogar golfe nos buracos negros de Cygnus X-1. Ou afinar as tubas e os trombones e reger, mesmo sem batuta, as bandas cambiais. Desde que os diplomas estejam carimbados, não importa em que moeda foram pagos. Na verdade, a verdade sempre foi um pormenor. Só que, por menor que seja a distância, há sempre que atentar para a largura do buraco. Aquila non capit muscas, mas se capit, foda-se, sempre foi assim que se escreveu a História. Os outros que se fodam, après moi le déluge.

Liberado O Diabo na Carne de Miss Jones e outros XXX - Rateds, o pecado deixou de ser original e transformou-se em fator de qualidade. O ergo sum virou um erga omnes e a liberdade um quadrilismo. Como o cogito virou circo quando se formatou o Big-Bang. Tudo graças aos taquíons que hão de vir e aos sovacos do alfa-ômega xeretados pelas sondas.

Só que, assim como não há Chanel que sempre cheire nem merda que nunca deixe de feder, logo, logo, os verdadólogos deletarão tudo que é vontade e a felicidade será vendida nos motéis como se vende Prozac nas farmácias. A expansão do Universo (entre cinco e dez por cento a cada bilhão de anos, de acordo com as medidas mais recentes) desentupirá os capilares e os esgotos e esvaziará todos os pneus, mas a clonagem dos silícios não só facilitará o entendimento do leitor como beneficiará também a minha criação: quando não tiver mais o que dizer, já que escrevo em duas línguas, poderei calar também em dois silêncios.

E sem mais afirmações categóricas, e argumentos baculinos, todos poderão sossegar e dormir na santa paz. Ou não dormir e sair por aí e curtir até um desejo inconfessável. Isto, si parva licet componere magnis e a comparação das coisas pequenas com as grandes não for impugnada por nenhum candidato não eleito ou alguém inventar mais opções.

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