CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Treze

A floreira tinha as rosas que eu queria, cor de chá, e escrevi no cartão, a tinta verde, agora que já tenho tinta verde, será que você ainda quer ler? Pedi que entregassem às duas horas em ponto e voltei para o hotel, e tranquei-me na sala, sem almoçar. Não tinha fome. Fumei cigarro após cigarro e fiz mil conjecturas. Mas só uma importava. Que Andréa me ligasse e perdoasse.

D. Beth voltou do almoço à uma e meia e quis trazer chá de camomila. Recusei. Não queria, nem precisava de chá. Queria e precisava é que Andréa me ligasse e perdoasse.

- A senhora bloqueia todas as chamadas e deixa livre o meu ramal.

- Sim, senhor. E os cheques? O senhor assina agora?

- Depois.

Tranquei a porta e sentei-me, um cigarro fumegando entre os dedos e os olhos pregados nos ponteiros do relógio. Duas horas. Se nos próximos cinco minutos Andréa não telefonar, Deus que me ajude. Puxo uma tragada e a boca arde e a cabeça dói, de tanto que já fumei. Duas e um. Mais quatro minutos e o meu pedido de demissão será batido e assinado, e enviado à Matriz por malote especial. Não sei o que farei depois, nem para onde irei, mas isso não importa. Se já que não tenho o que mais quero, que importância poderá ter o que não quero? Puxo uma tragada profunda e olho outra vez o relógio. Duas e dois. Coloco o aparelho do ramal na minha frente, bem ao alcance da mão, e fico olhando para ele. Três minutos são cento e oitenta segundos, milhões de porrilhões de não sei quê. Tempo de sobra para saber se Andréa, realmente, não me quer, ou tempo suficiente para a campainha ainda tocar e ela dizer, oi, sou eu, adorei, adorei mesmo, e eu ficar feliz e esquecer tudo que passou. Duas e três. O cigarro treme nos dedos. Vou esmagá-lo no cinzeiro, e a campainha do ramal toca finalmente. Estendo o braço com tanta força que o cigarro voa e cai no chão.

- Alô?

- Oi. Sou eu. Adorei, viu? Adorei mesmo. Me pega às sete.

Escuto o som de um beijo e Andréa desliga. Coloco o fone no gancho e desabo na cadeira, como um saco. Como se estivesse suspenso e, de repente, as amarras rebentassem. O corpo pesa toneladas e não me deixa fazer um movimento. A cabeça cai sobre o peito e um peso de vinte andares esmaga as minhas costas. O coração dispara e os ouvidos começam a zumbir e a vista escurece, e um suor frio escorre pelas costas. A cadeira balança e o chão some dos pés, e um vômito embola na garganta. Fecho os olhos e cerro os dentes, e agarro o tampo da mesa. Meu Deus, agora, que Andréa telefonou, é que tenho que morrer? Respiro fundo e, pouco a pouco, a cadeira pára de balançar e os pés firmam no chão. Fico imóvel alguns minutos e o coração serena, e os ouvidos param de zumbir. Recosto a cabeça no espaldar e abro os olhos. As paredes ainda estão longe e a mesa ainda tem o dobro do tamanho, e tudo parece envolto em neblina. Fecho os olhos e espero mais um pouco, e o suor pára de escorrer. Já estou bem e estou calmo e abro os olhos, e tudo está no seu lugar. Olho o maço de Marlboro e pego um cigarro. Não sei por quê, lembro do Benson, mas é como se fosse há mil anos. Já nem sei que gosto tem. Andréa fuma Marlboro e acabou de perdoar-me. Acendo o cigarro e puxo uma tragada, e a cabeça já não dói. Sorrindo, destranco a porta e chamo D. Beth.

- Vamos trabalhar?

D. Beth olha à volta, cheirando o ar.

- Tá queimando alguma coisa. O senhor não tá sentindo, não?

Olha o chão e, de repente, corre para junto do sofá e apanha a ponta fumegante do cigarro.

- O senhor tá vendo que perigo? Podia até botar fogo no hotel.

Esmaga-o no cinzeiro e mostra o buraco no carpete.

- O senhor tá vendo? Queimou mesmo.

Nem olho. Que me importa, agora, a merda de um buraco no carpete? Assino todos os cheques e aponto o vidro da janela.

- A senhora já cobrou da Manutenção?

- O Sr. Ramyro...

- Não cobre. Esta joça não tem jeito mesmo e o pessoal não tem culpa.

Recosto-me na cadeira e espreguiço-me, satisfeito.

- D. Beth, a senhora já se sentiu feliz alguma vez?

D. Beth não responde. O ramal toca e ela atende.

- Pro senhor. É o Sr. Ferraz.

- Sim, Sr. Ferraz.

Sei o que o Sr. Ferraz vai dizer, mas não me importo. Quando a gente está feliz nunca se cansa de escutar o que já sabe.

- Sr. Eduardo, o senhor nem imagina o quê que aconteceu agora, agora. D. Andréa recebeu uma kombi de buquês e uma corbeille, linda de morrer, e a Recepção tá que só o senhor vendo. E D. Andréa tá que nem uma Nossa Senhora do Bom Parto, Sr. Eduardo. Rindo à toa, à toa.

- Obrigado, Sr. Ferraz.

Desligo e olho D. Beth. Ela continua parada junto da mesa e segura a pasta contra o peito, como se fosse um escudo.

- D. Beth, parece que D. Andréa vai casar. Diz o Sr. Ferraz que recebeu um caminhão cheio de rosas.

Sem me olhar, D. Beth aperta a pasta contra o peito e sai sem responder.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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