CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Oito

Nunca imaginei que pudesse estar assim. Tão bem e tão calmo e tão feliz. E tão sem medo de morrer. Que me lembre, de todas as segundas-feiras da minha vida, esta foi a mais importante e a melhor.

Começou péssima. Mas, de repente, mudou e terminou de uma forma que nunca pensei que pudesse terminar. À noite beijei Andréa. Não fomos à Casa dos Contos, mas não teve importância. Nem lembrei, sequer, do desejo de entrar lá acompanhado.

Passei a tarde no quarto. Fumando e olhando as duas rosas. Era a primeira vez que ia sair e jantar acompanhado, e não fazia a menor idéia do que teria que fazer. Mas uma coisa era certa. Se Andréa não gostasse do jantar não haveria mais encontros. A idéia de perder Andréa assustou-me tanto que passei a maior parte do tempo imaginando situações que me salvassem. Pensei em mil, mas, sem um único ponto de referência, o medo de fracassar me deprimiu. Só que não havia alternativa, ou ia e me arriscava, ou não ia e nunca mais veria Andréa. Às seis horas, com a boca seca de fumo e a cabeça latejando, peguei as duas rosas e saí do hotel tremendo e pedindo a Deus que me ajudasse.

Andréa já me esperava na calçada. E também com duas rosas. Quando entra no carro a blusa abre e os seios aparecem. Grandes, cheios, muito brancos e redondos. Como eu sempre quis que eles fossem. A garganta aperta e os ouvidos começam a zumbir, e as mãos tremem tanto que não consigo ligar o motor. Andréa pega as minhas rosas e olha-me.

- Você também lembrou?

Não respondo. Não posso. A garganta aperta tanto que dói e os ouvidos parecem colméias de besouros. Andréa coloca as rosas no painel e sorri.

- Adorei. Adorei mesmo. Nunca ninguém me deu rosas de presente.

Ajeita-se no assento e cruza as mãos no colo.

- Vamos?

Ainda não consigo falar e Andréa pega uma das rosas vermelhas.

- Vamos prá Brunella?

O meu nervosismo é tanto que nem lembro do desejo de ir à Casa dos Contos. Andréa volta-se e aponta a rua, atrás de nós.

- É logo ali, na Afonso Pena. É só você subir, que vai direto.

Gostei da Brunella. Mas se não tivéssemos saído do carro teria sido a mesma coisa. O que mais importava era Andréa estar comigo. Logo que sentamos um garçom aproximou-se, mas Andréa nem olhou o cardápio. Pediu uma pizza, quatro sabores, bem passada.

- Adoro pizza. Adoro mesmo.

- Bebida?

- Que vinho português vocês têm?

Andréa ri e esfrega as mãos.

- Oba. Adoro vinho. Adoro mesmo.

O garçom consulta o cardápio.

- Português, temos Dão Grão Vasco e Terras Altas.

- Traz uma garrafa de Terras Altas, tinto.

O garçom afasta-se e Andréa coloca duas rosas do lado dela e duas do meu lado. Acendo um cigarro e puxo uma tragada, e fico olhando para ela. Não usa batom, nem qualquer outra maquiagem, e eu gosto do rosto limpo. Não sei o que pensa, nem se está gostando de estar comigo, mas está sorrindo e parece satisfeita. Num gesto vagaroso, levanta os braços e ajeita o cabelo, e os seios aparecem no decote. Um calor repentino sobe pelas virilhas e ajeito-me na cadeira. Andréa sorri e joga a cabeça para trás, e o cabelo espalha-se pelos ombros e flameja, batido pela luz. Fica assim alguns instantes e debruça-se na mesa, e os seios, comprimidos pelo tampo, arredondam-se e parecem dobrar de tamanho. Não consigo tirar os olhos e a garganta aperta, e tenho certeza que ela nota. Mas não diz nada e continua na mesma posição. Não sei o que dizer e os ouvidos começam a zumbir, e Andréa olha-me e sorri, e tira o cigarro da minha mão e puxa uma tragada.

- Foi um exagero.

Puxa outra tragada e esmaga e abana a cabeça.

- Mas eu adorei. Adorei mesmo.

Não respondo. Se lhe disser o que penso tenho certeza que se levanta e vai embora. Só para olhar aqueles seios eu daria todas as rosas do mundo. Andréa puxa mais uma tragada e esmaga o cigarro no cinzeiro, e pega uma das rosas brancas.

- Sabe o quê que disse o Sr. Ferraz?

Faz uma pausa e olha-me.

- Que, se continuar assim, ganhando rosas deste jeito, não tarda muito vou ser pedida em casamento.

Ri e encosta a rosa nos seios.

- Será que vai ser verdade mesmo?

Não respondo. Mas, para pegar aqueles seios, eu daria muito mais do que todas as rosas do mundo. O garçom traz o vinho e serve. Andréa pega o copo dela e aponta o meu.

- Não vai brindar, não?

- Desculpe. É falta de hábito. Nunca jantei acompanhado.

- Jura? Não acredito.

- Palavra de honra. Nunca jantei com uma mulher.

Andréa olha-me durante alguns instantes e sorri, e bate o copo no meu.

- Tim, tim.

Bebemos e ela pega uma rosa e olha-me, e roça as pétalas nos lábios. Não fala, apenas me olha, e aquele olhar me embaraça. Acendo um cigarro e puxo algumas tragadas e Andréa continua olhando para mim.

- Me diga.

Não esperava que falasse, assim de repente, e as palavras me assustam. Andréa olha-me durante algum tempo, imóvel, sem, sequer, pestanejar, e, então, lentamente, coloca a rosa na mesa e estende o braço, e pega na minha mão. Nunca pensei que Andréa fosse capaz de pegar na minha mão, e fico sem saber o que fazer. O coração dispara e a garganta aperta, e os ouvidos começam a zumbir.

- Por quê que você me convidou?

Lembro dos seios, saltando do decote na minha sala e da vontade que tive de pegá-los, e os ouvidos zumbem ainda mais. Andréa debruça-se na mesa e os seios ficam na minha frente. Neste momento, com aquela mão na minha e aqueles seios ali na minha frente, tudo some ao meu redor e eu mesmo esqueço quem sou. Estou feliz. Andréa puxa o braço e os meus dedos encostam na blusa.

- Não vai dizer, não?

Milhões de besouros cavoucam nos ouvidos e a garganta parece um formigueiro. Mas nem sinto. A mão de Andréa está colada na minha e os seios tocam nos meus dedos. Sinto que não adianta mentir e engulo em seco, desesperado. Se mentir, Andréa saberá e nunca mais verei aqueles seios. Fecho os olhos e pigarreio com força, e peço a Deus que me ajude.

- Foram os seus seios.

Andréa não responde, nem se mexe, e fixa os olhos nos meus. O tempo passa e eu tenho medo que, de repente, se levante e vá embora. Penso pedir desculpa, mas o olhar dela não deixa. Está tão fixo no meu que parece até que nem me vê. Sinto um suor frio escorrer pelas costas, mas não faço um movimento. Não quero que Andréa pense no que eu disse e se levante e vá embora.

- Você é um cara muito estranho.

Acende um cigarro e puxa uma tragada profunda, e pega, outra vez, na minha mão. Olha-me durante algum tempo e pega o copo, e bebe um gole, devagar.

- Tomara que seja bom.

A minha garganta já dói menos e já consigo falar.

- Tomara que seja bom o quê?

Andréa não responde. Roda o copo entre os dedos e os olhos quase fecham. Fica assim algum tempo e o silêncio faz-me mal. Apesar de tudo que está acontecendo ainda tenho medo que se levante e vá embora.

- Quê que você não sabe se vai ser bom?

Andréa continua rodando o copo entre os dedos e encolhe os ombros, sem responder e, de repente, tira a mão da minha e coloca o copo na mesa. O gesto assusta-me e sinto que preciso dizer ou fazer alguma coisa, mas não digo, nem faço nada. As palavras rolam na garganta mas não saem, e as minhas mãos estão duras e não consigo mexê-las. Desesperado, peço a Deus que me ajude, e, de repente, Andréa debruça-se na mesa e sorri, e puxa a minha mão de encontro aos seios.

- Ligue, não. Tá tudo bem. Eu é que sou assim mesmo.

Levanta a minha mão e roça os dedos na palma da mão dela, e o garçom traz a comida. Serve e aponta a garrafa vazia. Aceno com a cabeça e ele leva-a. Quase não falamos durante o jantar, mas não havia mais necessidade. Aquele gesto tinha valido por todas as palavras.

Saímos da Brunella de mãos dadas e também não falamos até chegar na casa dela. Parei o carro na porta do edifício e Andréa continuou sem dizer nada. Tinha as quatro rosas no colo e a mão na minha coxa, e parecia estar feliz. Recostei a cabeça no assento e deixei que aquela paz também me rodeasse. Ficamos assim muito tempo, calados e imóveis, e Andréa pegou as rosas.

- Agora eu vou.

Num gesto maquinal aproximei o rosto e Andréa fechou os olhos. Não é fácil dar o primeiro beijo. Os maxilares ficam contraídos e duros, e a boca parece lixa. Andréa não fez pressão, nem eu tampouco. Apenas encostamos os lábios, mas gostei daquele beijo. Era a primeira porta que se abria. Mas se, para cada porta que abrisse outra tivesse que fechar, não demoraria muito e todas as portas dos cinemas estariam fechadas para sempre.

Andréa dá-me duas rosas e sai do carro sem dizer nada. Abre o portão e não se volta, e também entra sem acenar. Mas não é necessário. Agora, nada mais é necessário. Ser ou não ser, não é mais a questão. A questão é poder ser. E, agora, eu sei que posso.

 
 
 

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
São Paio de Brunhais
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