CUNHA DE LEIRADELLA
O CIRCO DAS
QUALIDADES HUMANAS



Longa metragem

INDEX

Nota preliminar
Narrativas
Personagens (ordem alfabética)
Figuração
Perfil dos personagens

ROTEIRO:

01-15
16-18
19-25
26-32
33-34
35-37
38-40

41-43
44-45
46-50
51-58
59-62
63-67
68-70

71-72
73-79
80-83
84-91
92-101
102-110
111-121

 

19 - RUA. EXTERIOR. DIA

 

Ulysses anda pela rua, devagar. Parece não ver nada à sua volta, mas a angústia está patente em todos os seus gestos e expressões, que são total e graficamente explorados pela câmera.

 

20 - ADRO DOS PROFETAS. EXTERIOR. DIA.

 

Ulysses entra no adro e pára junto da estátua do Profeta Daniel. Olha para ela, mas é como se não a visse. Fica parado durante algum tempo e, de repente, abana a cabeça com força.

 

ULYSSES

- Merda!

 

Ulysses passa as mãos no rosto e, com gestos bruscos, acende um cigarro e afasta-se com passos rápidos. Como se, apesar de tanto ter desejado vir a Congonhas, já se sentisse um estrangeiro.

 

21 - TREVO DE CONGONHAS. EXTERIOR. DIA.

 

Um Cavaleiro aproxima-se, o cavalo andando devagar. O corcel de Carioca e Preto aproxima-se também, vindo em sentido contrário, e pára próximo do Cavaleiro. Janaína, com passos rápidos e cantarolando, vem andando pelo acostamento da rodovia.

 

22 - TREVO DE CONGONHAS. EXTERIOR. DIA.

 

A câmera enquadra o corcel pelo lado de Preto.

 

PRETO (Acenando ao Cavaleiro)

- Ei, ô! Por onde é que a gente vai pra Congonhas, hem?

 

O Cavaleiro pára e aponta a estátua do Profeta Habacuc.

 

CAVALEIRO

- Ali, no Aleijadinho...

PRETO

- Alei, o quê, porra?

 

O Cavaleiro esporeia o cavalo e sai a trote.

 

PRETO (Gritando)

- Quê que há, ô?!

 

O Cavaleiro esporeia o cavalo e sai a galope.

 

PRETO (Gritando)

- Filho da puta!

CARIOCA

- Ô...

PRETO

- Fica frio, porra!

 

Preto sai do corcel e aproxima-se da estátua do Profeta Habacuc, olha-a durante alguns instantes, e, num gesto debochado, abre a braguilha e mija no pedestal. Janaína pára, espantada. As crianças param de brincar e riem. Preto ri também. Corta para Preto e Janaína.

 

PRETO

- Quê que há, hem, dona? Nunca viu cacete, não?

 

As crianças aproximam-se, curiosas, e Preto, rindo, aponta o pedestal da estátua, molhado.

 

PRETO

- Só tô lavando, porra.

 

Janaína benze-se e as crianças param de rir.

 

JANAÍNA

- Que sacrilégio, Deus que me perdoe!

 

Preto abotoa a braguilha.

 

PRETO

- Sacrilégio? Sacrilégio tu vai ver agora, sua vaca!

 

Janaína olha Preto, horrorizada. Preto puxa o revólver e atira na estátua. Janaína e as crianças, assustadas, gritam e saem correndo. Preto ri e entra no corcel.

 

23 - CORCEL. INTERIOR. DIA.

 

Preto rindo e Carioca furioso.

 

CARIOCA

- Endoidou, filho da puta?!

 

PRETO

- Afinei, meu irmão. Agora é que eu tô, ó!

 

Carioca dá um murro no volante e o corcel arranca, cantando pneu.

 

24 - CASA DE BOSCO. SALA. INTERIOR. DIA.

 

Classe média baixa. Móveis típicos de cidade mineira do interior. Jussara, sentada, e Marilene, encostada na mesa, conversam.

 

MARILENE

- Jussara, você não acha que eles já deviam ter chegado, não? Fábio falou que...

JUSSARA

- Fábio também foi?

MARILENE

- Não. Fábio, agora, tá por conta de um tal de Dr. Eduardo. Diz que é um engenheiro que veio de São Paulo e Fábio...

JUSSARA

- Foi Fábio que mandou você...

 

MARILENE

- Ele que pediu. Mas eu não queria vir, não.

JUSSARA (Cínica)

- Não? Então por quê que veio?

MARILENE (Ao mesmo tempo)

- Não sei nem como é que Bosco tá.

JUSSARA(Mesmo tom)

- Não sabe, mesmo, ou...

MARILENE

- Ah, Jussara!

JUSSARA (Mesmo tom)

- Eu só perguntei por perguntar. Afinal, você já é da família. Ou ainda não é? Hem?

MARILENE (Tentando apaziguar)

- Bosco, desta vez ficou um ano, não foi, não?

 

Jussara não responde.

 

MARILENE (Continuando)

- Diz que não pode voltar mais, é verdade?

JUSSARA (Seca)

- Quem que...

MARILENE

- Fábio que falou. Diz que Bosco, cada dia, tá pior. Jussara, Bosco tá mesmo...

JUSSARA (Levantando-se, agressiva)

- E se tiver?

MARILENE

- Chi, Jussara!

JUSSARA (Intencional)

- Fábio devia cuidar mais da vida dele.

MARILENE

- Mas não foi Fábio, só, não. Seu pai também...

JUSSARA (Com força)

- Não mete meu pai nisso!

MARILENE

- Quê que você tem, hem? Você tem andado dum jeito... Bem que D. Geralda falou.

JUSSARA

- E quê que ela falou?

MARILENE

- Quer saber mesmo? Sua mãe disse que você devia ter era ficado com Joca. Foi o único que...

 

Jussara olha Marilene tão fixamente, que ela cala-se e afasta-se. A câmera segue-a até à janela, onde Marilene se debruça e olha a rua. Instantes depois volta-se.

 

MARILENE

- Bosco me dá medo. Antes de ser internado, toda vez que saía com a gente, parecia que só queria me comer. Teve uma vez até que...

JUSSARA (Cínica)

- E você? Nunca quis comer ele, não?

MARILENE (Ofendida)

- Jussara, eu sou noiva de Fábio, do irmão dele!

JUSSARA (Mesmo tom)

- E daí? Eu também sou irmã dele.

25 - RUA. EXTERIOR. DIA.

 

O corcel de Carioca e Preto entra, devagar, numa rua e pára na frente de uma casa. A Mulher, que está na janela, olha o carro, desconfiada. A câmera enquadra o corcel pelo lado de Carioca.

 

CARIOCA (Desligando o rádio)

- Bom dia, dona. Podia me dizer por onde eu vou prum tal de Bar do Campo?

 

A Mulher não responde e faz menção de sair da janela. A porta do carona abre e Preto sai do corcel, correndo. Corta para Preto e a Mulher.

 

PRETO

- Ô...

 

A mulher, assustada, fecha a janela.

 

PRETO

- Sua velha fodida, sem educação, tá pensando o quê, hem?

 

Carioca sai do corcel, correndo. Corta para Preto. Carioca aproxima-se, correndo, e segura Preto.

 

CARIOCA

- Ô, Preto, caralho!

PRETO

- Me larga, porra!

CARIOCA

- Tu quer foder tudo, filho da puta?!

PRETO

- Me larga! Me larga, que eu já tô é puto cum essa gente!

CARIOCA (Soltando Preto)

- Tu é burro mesmo, hem, ô?

PRETO

- Burro é a puta que pariu! Ou tu pensa que é pedindo que se arruma o que se quer?

 

Preto olha Carioca, tenso, e bate com força no revólver, na cintura.

 

PRETO

- Esses putos só entende é isto aqui, ó!

CARIOCA

- Vambora. Vambora, que ainda temos muito que fazer.

 

Carioca entra no corcel. Preto resmunga, mas começa andando em direção ao carro.