CUNHA DE LEIRADELLA

A MINHA ÚLTIMA CONSOADA

Lembro-me como se fosse hoje da última Consoada que passei em Portugal. Os jornais, com o indefectível carimbo no canto superior direito da primeira página, VISADO PELA COMISSÃO DE CENSURA, avisando que a Consoada daquele ano de 1957 seria numa terça-feira de lua nova, a neve caindo mansamente nas quebradas do Monte do Crasto e de Merouço, e o velho Padre Alberto de Travassos, que pastoreava também a minha pequenina freguesia de Brunhais, avisando, como sempre, que não haveria Missa do Galo na noite de Natal.

De todos os doces que se serviam na sobremesa da Consoada (e eram muitos) depois de forrados os estômagos com as postas do bacalhau, as batatas e as couves regadas com o doce azeite lagareiro, o que eu mais gostava de saborear eram os pinhões. Não aqueles pinhões que se compravam nos armazéns ou nos empórios, descascados e secos, e embalados em papel de celofane. Pinhões vindos de fora. Da cidade. Pinhões estrangeiros.

Os meus pinhões eram outros. E eram outros porque, além de não serem comprados nos armazéns ou nos empórios, não serem descascados nem secos, nem embalados em papel de celofane, eram meus. Só meus. Era eu que ia varejar as pinhas no pinheiro manso junto da casa da velha Maria do Bernardo, já quase na saída do Lugar do Alto, e as colocava na cinza do borralho para aquecer e abrir, e soltarem os pinhões.

E a alegria de os jogar num alguidar cheio de água, para ver os que eram bons e os que não eram? Os que flutuavam na água eram ocos e eu os atirava nas brasas da lareira onde ferviam os potes que coziam as postas de bacalhau, as batatas e as couves. Os que afundavam e se juntavam no fundo do alguidar, esses eram bons. Eram os meus. O prêmio por esfolar os joelhos e as mãos entre os galhos do velho pinheiro manso, varejando as pinhas perfumadas de resina.

Comi os meus pinhões, pela última vez, naquela terça-feira de lua nova, 24 de dezembro de 1957. Em abril de 1958 sairia de Portugal, rumo ao Brasil, e lá deixava a minha família, a minha capa de estudante, a minha guitarra pendurada num prego da parede e um amor que me ficou para sempre.

Não sei se ainda há pinheiros mansos em Portugal. Sei que aquele pinheiro manso onde eu varejava as pinhas, junto da casa da velha Maria do Bernardo, já quase na saída do Lugar do Alto, há muito foi derrubado e serrado, e só a sua lembrança ainda me floresce na memória. Mas uma coisa eu sei. Um dia ainda há de haver uma Consoada com pinhões, que eu pegarei nem que seja no último pinheiro manso que houver em Portugal, ou no mundo, e o que eu não fui e deveria ter sido, há de ser e ficar para sempre. Para sempre haverá pinhões nas nossas Consoadas e em todas elas nos lembraremos daquela neve e daquela lua nova daquela terça-feira, 24 de dezembro de 1957. E as lembranças, plasmadas na memória, tenho certeza, nos farão ganhar todo o tempo que perdemos.

 
 
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