CUNHA DE LEIRADELLA
Sentem-se vivos e vivem
Finalmente, após inúmeras hesitações, o homem levantou-se. Arrumou os papéis espalhados em cima da mesa e guardou-os na gaveta, e respirou fundo e puxou as calças na cintura. Vestiu o paletó e ajeitou o nó da gravata, e atravessou a sala em passos decididos. Parou junto da porta e respirou fundo outra vez. Trabalhava há vinte anos naquele escritório e era o chefe do Setor de Contas a Pagar. Respirou fundo de novo e bateu de leve no vidro fosco.

Segundos após a batida, a lâmpada de luz verde por cima da porta acendeu-se. O homem ajeitou o nó da gravata e alisou as lapelas do paletó, e abriu a porta devagar.

- Dá licença, doutor Abreu?

Sentado atrás de uma secretária de mogno, cuidadosamente arrumada, o doutor Abreu lia um jornal.

- Sim?

O homem olhou a figura imóvel, encoberta pelo jornal.

- Doutor Abreu...

- Sim?

O homem pigarreou e apertou o trinco da porta com força. O doutor Abreu fechou o jornal e dobrou-o com cuidado. O homem entrou e fechou a porta. O doutor Abreu colocou o jornal em cima da mesa e olhou a cadeira na frente da secretária. O homem sentou-se.

- Doutor Abreu, eu...

O doutor Abreu recostou-se no espaldar da poltrona e o homem calou-se. No silêncio da sala só se escutava o ronronar do motor do aparelho do ar condicionado. O homem ajeitou o nó da gravata e puxou as calças nos joelhos.

- Doutor Abreu...

- Sim?

O homem pigarreou e passou um dedo por dentro do colarinho da camisa, grudado na pele suada do pescoço.

- Doutor Abreu, o assunto que eu queria...

Fez uma pausa e ajeitou o nó da gravata.

- O assunto que eu queria falar com o senhor...

Fez outra pausa e respirou fundo, e passou as mãos suadas nos joelhos.

- Quer dizer, é um assunto meu, particular, e eu...

Calou-se e desabotoou o paletó. O doutor Abreu acendeu um cigarro e puxou uma tragada. O homem olhou-o e abotoou o paletó. O doutor Abreu pegou um lápis e começou a desenhar círculos concêntricos numa folha de papel. O homem respirou fundo e ajeitou-se na cadeira.

- Doutor Abreu, eu...

Olhou o doutor Abreu e calou-se. O doutor Abreu colocou o cigarro no cinzeiro, e recomeçou a desenhar. O homem pigarreou e baixou a cabeça, e ajeitou o vinco das calças nos joelhos. O doutor Abreu, com gestos vagarosos e precisos, esmagou o cigarro no cinzeiro de porcelana e cruzou as mãos em cima da mesa. O homem passou um dedo por dentro do colarinho da camisa e tentou afrouxar o nó da gravata. Apesar do ar condicionado o suor escorria pelas costas. O doutor Abreu recostou-se no espaldar da poltrona e olhou o teto da sala. O homem levantou a cabeça e olhou o doutor Abreu durante algum tempo, e, de repente, respirou fundo e desabotoou o paletó.

- É que eu tou precisando de um aumento, doutor Abreu. A gente vai casar e...

Calou-se e baixou a cabeça, e alisou as calças nos joelhos. O doutor Abreu não se mexeu, nem disse nada. O homem respirou fundo outra vez e levantou a cabeça.

- Doutor Abreu, a Cilinha é que...

No fim do expediente o homem fez duas coisas que nunca tinha feito. Não arrumou, nem guardou os papéis na gaveta da secretária e pegou um táxi para ir à casa da noiva. Estava tão impaciente que nem esperou o motorista dar o troco e o elevador chegar ao térreo. Subiu, correndo, os quatros lances da escada e colou o dedo na campainha. E só parou de tocar quando uma mulher, envolta numa toalha de banho, abriu a porta. O homem abraçou-a, ainda ofegante.

- Poxa, Cilinha, bem que você tinha razão. O doutor Abreu deu o aumento.

A mulher não respondeu. Fechou a porta e sorriu, e o homem abraçou-a outra vez.

- Como que você adivinhou, hem, Cilinha?

A mulher encolheu os ombros e riu.

- Adivinhando.

Afastou-se e o homem riu também e tirou o paletó, e sentou-se no sofá.

- Você tá feliz, Cilinha?

A mulher não respondeu e o homem afrouxou o nó da gravata e abriu o colarinho da camisa.

- Eu tou tão feliz, sabe?, que nem sei como é que tou. Juro por Deus.

A mulher passou a mão na cabeça do homem e sorriu.

- Então, deixa eu acabar de me arrumar, que hoje é meu dia de manicure.

Saiu da sala e o homem recostou-se no sofá, sorrindo, satisfeito.

- Sabe o quê que o doutor Abreu falou, hem, Cilinha? Que fazia questão de ser o padrinho do nosso casamento.

Fez uma pausa e cruzou as pernas, e olhou a porta por onde a mulher tinha saído.

- Sabe, Cilinha? Eu nunca pensei que o doutor Abreu fosse assim tão meu amigo. Nem mesmo quando você era secretária dele, ele nunca que falou assim comigo, sabia?

 

Cunha de Leiradella n asceu na Serra do Gerês, em Portugal, quase fronteira com a Espanha.

Publicou o romance O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1981), Inúteis como os mortos (1985), Cinco dias de sagração (1993),Os espelhos de Lacan (2004), entre outros. Escreveu também o roteiro de  longa-metragem O circo das qualidades humanas.

 
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